Elvis Presley

Crónica

Elvis? Gritem por eleo

Ele nasceu há 80 anos, provavelmente nunca morreu ou certamente já não estará vivo - cada um que se socorra da teoria que lhe parecer mais devida (ou invente outras). Mas porque ele é Elvis e realeza, temos de escrever sobre a matéria - que é boa, vasta e trágica. Nicolau Pais, músico e professor na Escola das Artes da Universidade Católica do Porto, explica-nos como é.

Texto Nicolau Pais Foto EPA


"I love America
But boy, can she be cruel;
I know how tall she is,
Without her platform shoes"
David Byrne, "Miss America" in "Feelings" (1997)



"A guitar man"

A nove de Setembro de 1956, Elvis Presley aparece pela primeira de três vezes no "Ed Sullivan Show". À data, o pacote de aparições foi vendido pela soma astronómica de 50.000 USD. As instruções da produção para a realização do programa eram para só o filmarem "da cintura para baixo" - a revolução sexual estava só a começar, bem entendido. Mas a partir dessa porta escancarada - a do poder de divulgação discricionário da televisão, que o seu "manager", o Coronel Parker, tão bem adivinhava como proveitosa - foi sempre a subir. Essa seria, também, a exacta proporção acelerada da queda, em mais uma história demasiado longa para uma vida demasiado curta.

Elvis Presley nasceu a 8 de Janeiro de 1935 em Tupelo, no Mississipi. A sua família mudou-se para Memphis, no Tenesse, quando adolescente Elvis tinha 13 anos. Foi ali, junto ao gigante delta desse incomensurável rio que desce até Nova Orleães, que Elvis começou a ouvir e cantar música. Se quiserem alinhar pelo preconceito original, música negra - os Blues - e música branca - o Folk. Numa lógica menos deslumbrada, a simbiose destas duas formas de expressão, a sua reinvenção performativa, são o legado musical inatacável de Presley - por muito que tal afirmação faça cócegas aos "habituées" da neurose didáctica anti-iconográfica. Duas formas de expressão "populares", note-se, no sentido mais preciso do termo; formas que passam de geração em geração, molhos de conhecimento empírico transmitidos pela osmose da oralidade. De quando em quando, essa tradição - como com Amália e o Fado - encontra, em raros intépretes, um novo contexto e inevitável relevância. Do vestido negro da Lisboeta, até ao fato de couro do Americano, os símbolos eternizam-se, provocatoriamente alheios, à ditadura que deprecia, conforme lhe convém, ora o "sucesso", ora o "talento".

No quentinho do pós-Guerra - em 1950 - Sam Phillips começou um negócio em Memphis. Chamou-lhe "The Sun Studio". A casa na Union Avenue sobreviveu, nos primeiros tempos, como qualquer outro estabelecimento do comércio tradicional - os freguêses consumiam e gostavam do mote "gravamos qualquer coisa, a qualquer hora, em qualquer lugar". É que Phillips não tinha qualquer pudor em registar casamentos e baptizados para manter viável a sua ideia de "estúdio"; ideia essa que, logo em 1951, viria a viver à altura das suas implícitas ambições. Ike Turner - o ex-marido de Tina que para ela perdeu tudo, inclusivé o nome - orquestrou, nas teclas, o primeiro single da história do Rock: "Rocket 88" de Jackie Brenston. Não por acaso, Jackie Brenston - o líder da banda - surgia marketizado como "Jackie Brenston and the Delta Cats", numa alusão que tentava trazer o valor acrescentado da tradição local, a do "Mississipi Delta Blues". Howlin' Wolf ou B.B. King também gravaram naquela casa no início dos anos 50. Jerry Lee Lewis, Roy Orbison ou Johnny Cash engrossaram a lista de artistas representados durante os anos 50 - e mais além.

Pouco importa se foi como reza a lenda - para "gravar uma canção para a sua mãe" - que Elvis primeiro se apresentou, tímido, de guitarra em riste, no "Sun Studio". O aspecto novelístico cor-de-rosa é irrelevante. Quando o produtor de serviço, naquela tarde quente do verão de 1953, perguntou ao jovem titubeante "com o que é que o teu som se parece", a procura de pistas para uma direcção musical "fast-food" complicou-se... "Não se parece com nada", disse Presley. O "Sun Studio" tinha uma banda residente, que acompanhava - ou melhor, iniciava - os jovens artistas que ali se propunham gravar. Scotty Moore era o "guitarra" de serviço. Já lá vamos.

"The voice"

Elvis Presley

"Sail on silver girl
Sail on by,
Your time has come to shine,
All your dreams are on their way
See how they shine...
If you need a friend,
I'm sailing right behind;
Like a bridge over troubled water,
I will ease your mind"
Simon&Garfunkel, "Bridge Over Trouble Water", in "Bridge Over Trouble Water", 1970



À velocidade inusitada dos "inícios", sete anos são uma eternidade. Quando, em 1960, Elvis regressa do serviço militar, o seu principal temor era perceber de que forma os céleres eventos do final dos anos cinquenta poderiam - ou não - ter alterado a percepção do seu trabalho musical. Isto admitindo que o pavão tinha noção, no seu primitivismo, dos inevitáveis efeitos da sua plumagem. É neste contexto que veste um anacrónico "smoking" para aparecer - e cantar - com Frank Sinatra, em 1960, no "The Frank Sinatra Show". Ao lado de "The Voice", portanto. Alguns mitos atribuem a Elvis a autoria do cognome de Sinatra; verdade ou não, o facto é que Presley nutria por Sinatra um respeito invulgar, um reconhecimento que diz mais sobre o candura do próprio Elvis, do que sobre o mito de Sinatra em si. É ao desengano desses sonhos que Elvis decide dedicar a parte final da sua energia a Las Vegas, onde enriqueceu materialmente em troca da sua morte espiritual, não sem antes deixar gravadas algumas das mais excelentes e planetárias interpretações de toda a sua carreira. "Bridge Over Troubled Water" de Simon&Garfunkel, por exemplo, só é comparável em virtuosismo à revelação que é ouvir Aretha Franklin dedicar-se religiosamente ao tema. Isto está tudo no YouTube, não é preciso ter um curso em como evitar as armadilhas contemporâneas da vulgaridade das filas de trânsito, com as rádios todas a tocar supostos clássicos, para disfarçar a pobreza franciscana das suas programações.

Há toda uma panóplia de ignorantes de vária espécie disponível para resumir Elvis; o que não é fácil é parar para ouvir. Mesmo no seu pior gosto, continuou a cantar como ninguém, acompanhado dos melhores arranjos, os melhores músicos e algumas das melhores canções alguma vez escritas. Las Vegas, penso, terá sido o mais cândido e provinciano dos palcos para a redenção impossível deste "rockabilly". Esses inevitáveis anos setenta são, no entanto, precedidos por um momento de síntese de tal maneira invulgar que só pode ser explicado pelo tédio a que o cinema foleiro - a exploração gratuita da imagem, sem o talento - tinha conduzido o moço. Ainda antes de Elvis Presley se despenhar do alto de tudo isto, a televisão - o tal pode discricionário - tinha outras ideias.

"THAT´S ALL RIGHT , LITTLE MAMMA"

Elvis Presley

"Everything has improved over the last 10 or 12 years: the sound has improved, the musicians have improved, the engineers have improved, and the overall sound is much better today; but it all stemmed from Gospel music, or Rythm&Blues, and that's where I got my singing style from... from Rythm&Blues and Gospel, mixed with country and western. And that's all I've got to say."
Elvis Presley, '68 Comeback Special, NBC

Os formatos de produção de sucesso são como o dinheiro que dão a ganhar: não caem do céu.

O que há a dizer sobre o programa de 1968 com que a NBC anunciou o regresso à música, depois das figuras tristes que Elvis andou a fazer no cinema, é que a ideia é, em si, é genial. Genial porque não inova no som ou na tecnologia - bem pelo contrário, para bem do resultado final, as opções de captação e mistura do som são até bastante "old school", como é também a luz ou o sóbrio décor. É genial pela forma como dramatiza Elvis a partir do músico, do conteúdo do ícon, da reinvenção do cânone.

Decidiu a NBC por Presley acompanhado de regresso aos seus músicos do costume - e Scotty Moore lá estava, 15 anos depois, com a sua guitarra. Elvis grava dois concertos distintos, ambos no cenário do já mítico palco quadrado de luz, com público a toda a volta. Um primeiro concerto, conhecido como o "stand up show", tem a banda nos bastidores e Elvis sozinho, cantando, acompanhado por orquestrações em linha com as produções discográficas daquela fase da sua carreira. O outro, é qualquer coisa: Elvis está sentado no mesmo quadrado, mas desta feita, à sua volta, estão os músicos dos "Sun Studios". Este ficou conhecido como o "sit down show". A bateria é improvisada numa caixa de guitarra, os instrumentos são maioritariamente acústicos, o compasso do baté-pé no chão para aguentar o ritmo foi deixado transpirar para a grvação, pura, pouco editada, sem efeitos especiais. Para alguns, nasceu aqui o formato "unplugged", tão celebrado enquanto forma íntima de conhecer os artistas. Elvis grava várias récitas de cada um destes concertos; o programa final é transmitido num "mix" entre prestações de ambos, e ainda algumas pequenas sequências produzidas em estúdio, incluindo a famosa versão de "Trouble", com Presley em frente a umas gigantes letras vermelhas a dizer "Elvis". "Are we on TV? No, we're on a train heading for Tulsa", diz-lhe o guitarrista cheio de humor, num dos sit-down shows. Há lugar para o lado humano, mesmo quando a dimensão da fama e fortuna atingiram valores literalmente obscenos.

"Digam lá onde é que se faz televisão assim?", é questão que fica. Zero, em lado nenhum. Olha-se para o caixote hoje, e é só putos aos gritos, a imitarem o que não conhecem, ladeados por uns tais júris que se supõe sabem do que falam porque estão "na TV". Quem achava que o hedonismo frívolo do "king" era uma ameaça, coM certeza ainda não tinha visto nada da desqualificação obscena e descartável em que o "show-biz", entretanto, se transformou. Elvis? Gritem por ele.


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