Crónica

Nunca gostei de Elvis

"É verdade. Elvis Presley nunca me disse nada. Escuto-o e não consigo encontrar o que quer que seja que me comova." Crónica de João Cândido da Silva, editor do "Observador", que explica ainda que a "ingratidão é feia": "Sem Elvis Presley, é provável que não tivesse havido Beatles e tudo o que se seguiu na revolução que os quatro fabulosos de Liverpool iniciaram". E porque temos Elvis? O rei (para uns, nem tanto para outros) nasceu há 80 anos.

Texto João Cândido da Silva Fotos Getty Imagens


T udo aconteceu por volta do início dos anos 1990. Numa rádio qualquer ou no canal de música VH1, escutei uma canção que me agradou. Tomei nota do respetivo título e do nome da banda que a interpretava. Num dos dias seguintes, fui à procura de uma loja de discos que me permitisse esclarecer quem era aquela gente, que álbuns já tinha lançado e qual deles incluia a faixa que me tinha agradado.

Na época, Lisboa estava bem apetrechada de estabelecimentos que se dedicavam ao comércio de música. Estava para chegar o período em que a tendência do setor, curta e com finais trágicos, viria a ser a de abrir "megastores". E, quanto a encomendar da Amazon, nada feito. A empresa nem sequer tinha sido fundada. Mas quem estava no mercado com vontade de servir o cliente e de manter o negócio de portas abertas, mandava vir de fora a mercadoria que não estivesse disponivel na hora.

Acontece que, já não me recordo onde, fui ao escaparate da música pop/rock, procurei pela letra "w" e lá estavam eles. Chamavam-se Wonder Stuff e o tema que eu procurava era "On The Ropes", uma daquelas canções talhadas para subir nas listas de vendas, que desencadeiam uma paixão intensa mas de escassa duração. Encontrei o álbum em que a faixa estava integrada, mas descobri outra coisa que achei ainda melhor e mais gratificante.

Um dos discos assinados pelos Wonder Stuff chamava-se "Never Loved Elvis". Era a terceira obra na sua discografia e a que, rezam as crónicas, a tinha lançado em direcção ao sucesso. Aí estava, finalmente, perante os meus olhos, uma banda que contrariava a onda geral e assumia, sem rodriguinhos, que o proclamado "rei do rock" não era monarca a quem estivesse disposta a prestar vassalagem. Finalmente, senti-me apoiado sob o conforto de saber que não estava só, como sucederia com o Manelinho, das tiras da Mafalda, que era olhado com espanto e desprezo por afirmar que não gostava dos Beatles.



É verdade. Elvis Presley nunca me disse nada. Escuto-o e não consigo encontrar o que quer que seja que me comova. Aquela voz de galã com uns truques que se assemelham a soluços, os trejeitos corporais que provocaram terramotos nos corações de milhares de adolescentes e os fatinhos adequados a artistas de variedades num casino de Las Vegas deixam-me indiferente. Se uma dessas brigadas de investigadores e auditores que andam a vasculhar os escritórios da Portugal Telecom e do Grupo Espírito Santo quiser conferir que, afinal, até gosto de Elvis mas tenho vergonha de dizer, pode estar à vontade. Façam uma auditoria a todo o meu percurso enquanto apreciador de música e decobrirão que não tenho, nunca tive e não faço questão de algum dia possuir um disco, em versão vinil ou compacto, ficheiro digital ou outro suporte qualquer que contenha uma canção interpretada por este "rei" que, se me transmite algum incentivo, é o de reforçar as minhas convicções republicanas.

A ingratidão é feia. Sem Elvis Presley, é provável que não tivesse havido Beatles e tudo o que se seguiu na revolução que os quatro fabulosos de Liverpool iniciaram. Mas também é verdade que houve muitos outros que, sem que lhes fosse atribuído qualquer direito a um trono, tornaram possível que Presley existisse e tenha inscrito o seu nome na história da música popular do século XX. A começar pelos músicos de blues, como Muddy Waters, que inspiraram a explosão do rock and roll e sem esquecer aqueles que, nos anos 1950, a era dourada de Presley, fizeram tanto, ou até mais, para virar o Mundo do avesso, com Chuck Berry à cabeça.

Mesmo assim, o título do álbum dos Wonder Sutff continua a merecer a minha assinatura por baixo. Lamento, mas nunca gostei de Elvis.


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