“É melhor um fim terrível
do que um terror sem fim”

O que os russos deixaram escrito nas cidades que ocuparam

26 de setembro de 2023

“É melhor um fim terrível
do que um terror sem fim”

O que os russos deixaram escrito nas cidades que ocuparam

26 de setembro de 2023

Texto de Ana França

“Wall Evidence”, ou “Provas na Parede”, é um projeto de recolha fotográfica de mensagens que as tropas russas deixaram escritas nos sítios por onde passaram durante os meses em que ocuparam os arredores de Kiev, partes do leste da Ucrânia e dos distritos de Kherson e Zaporíjia, a sul. Em casas particulares, carros, tratores, cartazes de publicidade nas autoestradas, bares, vedações, escolas, igrejas, supermercados, por todo o lado é possível ler a história da presença invasora.

A ideia surgiu a meio de abril de 2022, poucos dias depois do fim da ocupação dos arredores de Kiev. Na altura, o filósofo e autor ucraniano Olexander Filonenko tinha visitado uma dessas localidades, Gostomel. Impressionou-o a quantidade de frases que viu escritas nos quadros de ardósia da escola secundária local. Ligou à associação cultural Mizhvukhamy, que está hoje por trás da recolha das fotografias, e pediu ajuda para preservar estas provas da ocupação o mais depressa que conseguissem, caso contrário iriam perder-se para sempre. Quando os ucranianos começaram a regressar às suas casas, às suas cidades, a prioridade natural foi limpar os vestígios, as memórias daquele tempo.

Das fotografias que Filonenko tirou nos primeiros dias até ao acervo de 500 registos disponíveis agora no site passou ano e meio de guerra. Roksolana Makar e Anastasiia Oleksii são as duas coordenadoras do projeto, ambas com 27 anos, formadas em História da Arte e Sociologia Cultural. Está nas suas mãos a tarefa de tentar extrair sentido às frases que os soldados russos foram escrevendo. Algumas inscrições soam a pedidos de perdão por antecipação, outras são exemplos óbvios de incitação à violência.

Não há uma lógica clara em todas elas, e às duas investigadoras faltam muitas das referências que sustentam a cultura popular russa. A era soviética já acabara quando nasceram. O passo seguinte do projeto vai ser chamar outros especialistas: linguistas, professores de História Militar, veteranos do exército do tempo da URSS.

“Conseguimos ver que, com o passar do tempo, a atitude das tropas russas vai mudando. No início diria que os soldados pareciam mais perdidos, com mais dúvidas sobre o propósito das suas missões. Nas inscrições desses primeiros tempos lemos coisas como ‘não queríamos fazer isto’, ‘não sabíamos que ia ser assim’”, começa por explicar Roksolana, ao telefone com o Expresso a partir de Kiev.

Não acredita que estas frases sejam bons instrumentos para aferir a robustez do arrependimento dos soldados. E explica porquê. “Encontramos estas expressões de suposta culpa nas paredes de casas que foram roubadas, vandalizadas, queimadas e também em locais onde foram encontrados cadáveres, ou em caves que serviram para a torturar civis.”

Por outro lado, as imagens que a equipa recolheu em Kherson e Kharkiv, quase um ano depois do começo do conflito, “mostram muito menos esse tipo de sentimentos penitentes ou de quem não sabe bem o que está a fazer. São mais violentas e quem as escreveu parece saber perfeitamente que a missão é conquistar”, diz Roksolana. “É sobretudo aí que encontramos frases como ‘Todos os mísseis sobre a Ucrânia’ ou ‘Tudo é Rússia’.”

Vê nas mensagens um exemplo de “dinâmicas do poder”, ou seja, a forma como a autoridade exercida dentro de uma determinada hierarquia afeta o comportamento de cada pessoa sujeita a esse poder. “Os soldados russos parecem dividir-se em dois grupos: os que usam as mensagens para se posicionarem como poder dominante, e os outros, que tentam deixar claro que a responsabilidade pelo que se passou não é sua, para o caso de alguém um dia querer levá-los a tribunal”, prossegue Roksolana.

De início, nenhuma das duas coordenadoras do projeto pensou que estas imagens pudessem vir a ser utilizadas por investigadores de crimes de guerra. Queriam apenas “captar em fotografia o pensamento russo em determinado momento, saber o que eles estavam a pensar no momento em que ocuparam as cidades, para que não se perdesse a História”, explica Anastasiia. “A televisão russa pode, por exemplo, mostrar um pedaço de um corpo humano e dizer que foram os ucranianos que mataram aquela pessoa. Mas estas mensagens nas paredes estão fotografadas, existe o dia e hora, e muitas vezes os militares russos até deixam escrito o regimento a que pertencem ou o nome no Instagram”, acrescenta Roksolana.


Foi aí que começaram a perceber que o material que iam eternizando num arquivo online organizado em forma de mapa poderia, um dia, ajudar a provar, por exemplo, que as tropas russas ocuparam instituições culturais e igrejas - o que é ilegal ao abrigo do Direito Internacional. Ou que se divertiram em edifícios onde também torturavam pessoas. “No julgamento de qualquer crime, muitas vezes o fator ‘remorso’, ou a ausência dele, é tido em consideração na sentença. Estas frases podem ser importantes na determinação desse facto, para evitar que quem cometeu estes crimes acabe por sair ileso.”

Um dos exemplos mais coléricos da presença russa em Kharkiv ficou escrito nas paredes de um bar na localidade de Velyka Komyshuvakha, na região de Kharkiv. A interpretação de parte dessas inscrições surgiu por sorte. Roksolana estava em casa com o marido quando ouviu uma canção em russo, vinda do telemóvel dele, com a frase “(...) verão e disparos com arco e flecha”.

Era precisamente a frase que lera na foto que lhe chegou da parede do bar. “Nós seguimos várias contas de propaganda russa no TikTok, precisamente para entender como pensam os propagandistas. Ouvi aquilo, reconheci a letra, fui investigar e era uma canção dedicada aos Wagner, composta por um nacionalista. Nela existem referências às atividades do grupo na Ucrânia, mas também em África.”


Kiev


“Ucrânia! Por que é que precisam da NATO???”
Parede no quartel-general dos homens do líder checheno Ramzan Kadyrov. Bucha, Kiev
Fotografia: Pavlo Bishko do site de notícias locais da região de Kiev Zaborona


“O Bandera [Stepan Bandera, líder nacionalista ucraniano no início do século XX considerado pela Rússia um colaboracionista nazi] está lixado! Federação Russa!”
Parede de uma escola. Borodyanka, Kiev
Fotografia: Emissora Next


“A Ucrânia é uma nação irmã da Rússia e nós vamos protegê-la do fascismo e dos Banderas. P. S.: Pessoa bem educada”
Num quadro de uma escola. Gostomel, Kiev
Fotografia: NizhynNEWS


“É melhor um fim terrível do que um terror sem fim”
Parede de casa. Gostomel, Kiev
Fotografia: "Mizhvukhamy" / Roman Timenko


“Cumprimentos da Sibéria. Não queríamos mesmo fazer isto. Desculpem, fomos forçados”
Quadro de uma escola. Gostomel, região de Kiev
Fotografia: "Mizhvukhamy"/ Roman Timenko


“Ocupado V”
Porta do psicólogo da escola. Gostomel, Kiev
Fotografia "Mizhvukhamy" / Roman Timenk


“Boa sorte com os vossos estudos. A guerra vai acabar e vocês vão reconstruir a vossa nação. Sejam justos e honestos uns com os outros. Ajudem todos aqueles que estiverem a passar por necessidades. Tornem-se médicos, engenheiros, professores, pessoas de paz! Deus vos abençoe, e mais uma vez desculpem termos ocupado a escola. Russos! Crianças, desculpem a confusão, tentámos salvar a escola mas fomos alvo de um tiroteio. Vivam em paz, tomem conta de vocês mesmos e não repitam os erros dos vossos antepassados. A Rússia e a Ucrânia são uma única nação!!! Paz para vocês, irmãos e irmãs!”
Quadro de uma escola em Katyuzhanka, Kiev
Fotografia Volodymyr Runets


“STOP não fumem. Há um sniper a trabalhar”
Quadro de escola em Katyuzhanka, Kiev
Fotografia: Kateryna Sergatskova / Zaborona


“O Zelensky vendeu-vos à NATO”
Pichagem numa parede em Shevchenkove, Kiev
Fotografia: site de notícias Obozrevatel


Chernihiv


"Deixemos que aquele que duvida do nosso amor pela paz se afogue em sangue. A nossa misericórdia será impiedosa”
Parede em Polubotky, Chernihiv
Fotografia: site de notícias CheLine


“Aqui esteve um soldado russo. Obrigado pelo ninho”
Quarto em apartamento privado, Nova Basan, Chernihiv
Fotografia: site Rivne.Media


Sumy


“A Rússia é poder. Irkutsk [Sibéria]”
Trostyanets, Sumy
Fotografia: Exército da Ucrânia


"Nós não precisamos desta guerra. Também nós fomos enviados. Perdoem-nos. Seguimos ordens. Sorri [sorry]. Paz russa. Glória à Rússia e ao povo russo. Vamos viver como amigos, vá lá. Sorri. Deixámos isto de pernas para o ar. Mas tudo bem, os americanos vão ajudar-vos. Limpem isto :D
Trostyanets, Sumy
Fotografia: Tetyana Ovcharenko


“O Zelensky é um maricas”
Parede de casa destruída. Trostyanets, Sumy
Fotografia: Tetyana Ovcharenko


Donetsk


“Nós somos russos!!! A Ucrânia tremeu quando a Rússia chegou!!! Que se foda a Ucrânia”
Casa particular. Sviatohirsk, Donetsk
Fotografia: Viktor Kovalenko


“Crianças, perdoem-nos por termos estamos aqui. Só vos desejamos o melhor. Com amor, dos russos”.
No fim da mensagem: “Navio russo, vai-te foder”. Tanto esta frase como o “X” por cima da mensagem russa foram provavelmente escritos por ucranianos, que terão encontrado este quadro já depois do fim da ocupação

Quadro de uma escola. Iarova, Donetsk region
Fotografia: Viktor Kovalenko


Kharkiv


“Tipos maus, não entrem - vão ser mortos. Estamos todos aqui! Quem vier para cima de nós com uma espada vai sair daqui com essa espada enfiada no traseiro”
Esquadra da polícia em Lурtsi, Kharkiv
Fotografia: Volodymyr Tymoshko


“Vamos erguer-nos sobre as ruínas das cidades caídas e vamos escrever os vossos nomes no livro dos mortos [inscrição comum em locais onde o Grupo Wagner esteve presente]”
Estação de comboios em Kozacha Lopan, Kharkiv
Fotografia: Oleksandra lefymenko, Hromadske Radio


“Balas e macarrão
Verão e tiros de arco e flecha” [versos que fazem parte de uma música pró-Wagner]
“07/14/2022”
“Departamento de luta contra os ukrop [palavra depreciativa para “ucranianos”]”
“Se te divertiste a fazê-lo, não conta como crime de guerra”
“Cães do regime”
“A alvorada vai chegar em breve”
“Parem de dizer merda o tempo todo”
“Vão-se foder ukrop”
“Vou queimar as vossas vilas com um sorriso de contentamento”

Parede de um bar em Velyka Komyshuvakha, Kharkiv
Fotografia: Ministério de Defesa da Ucrânia, Twitter


“Há duas respostas para todas as perguntas sobre a Ucrânia:
1- Nunca aconteceu
2- Eles merecem
Ambas estão corretas”

Casa particular, Velyka Komyshuvakha, Kharkiv
Fotografia: site de notícias militares ucranianas armyinform.com.ua


“Todos os mísseis em cima dos khokhol [outro termo pejorativo para os ucranianos]”
Casa particular em Kamianka, Kharkiv
Fotografia: Sashko Brynza / site de notícias Mediaport


“Obrigada pela hospitalidade. Vamos ganhar”
Escrito com batom em casa particular. Kamianka, Kharkiv
Yuriy Votianov


Kherson


“Morte aos nazis! Glória à Rússia”
Quarto onde ucranianos foram presos durante a ocupação russa na cidade, Kherson
Fotografia: Mykhailo Palinchak


“Bom trabalho Khokhols [termo pejorativo para um homem ucraniano] mas vocês são maricas corruptos”
Casa particular em Liubymivka, Kherson
Fotografia: Tetiana Fedornak-Chorna


Mykolaiv


“Não somos nós, é a vida” Z Força Aérea
Casa particular. Snihurivka, Mykolaiv
Fotografia: Anton Kudynov


“Ukrops [palavra depreciativa usada para designar um ucraniano] são maricas”
Portão de uma casa com cores e símbolo da Ucrânia riscado. Snihurivka, Mykolaiv
Fotografia: Anton Kudynov


Zaporijia


“Putin está em todo o lado”
Num quadro de uma escola em Basan, região de Zaporíjia
Fotografia: Tymofii Berezhnyi





Um dia, estas frases e símbolos podem fazer a diferença no momento de provar a presença dos mercenários em localidades específicas onde foram cometidos crimes, como já aconteceu em Bucha, através da recolha de invólucros de balas que só são atribuídas a brigadas de elite. A acreditar nos dizeres na parede do bar, quem ocupou a vila foi a Segunda Brigada Mecanizada, mais especificamente a Divisão Taman.

As duas académicas estão também a tentar recolher provas da presença de “pensamento imperialista russo” noutros lugares do mundo. Dizem ter fotografias tiradas em Paris e Bruxelas, onde têm aparecido símbolos associados às tropas do Kremlin. “Não existe apenas a ocupação física nesta guerra. A influência da propaganda russa vai muito além-fronteiras e há toda uma panóplia de códigos, símbolos, frases de apoio à Rússia em países europeus. Estas mensagens são também importantes para nós porque mostram que a Rússia quer espalhar a sua influência através do contágio mental”, diz Anastasiia.

Na página online 'Wall Evidence' pode aceder a todo o arquivo de inscrições que os militares russos deixaram durante a ocupação dos territórios da Ucrânia desde fevereiro de 2022. Pequenos pontos vermelhos, num mapa interativo, revelam os vestígios da 'cultura russa' em tempos de guerra.