Usam palavras simples para descrever o que é demasiado complicado. “Uma coisa má.” Contam como ficaram meses sem ir à rua ou como à sua volta se forçavam casamentos. Esta é a história de oito mulheres que estudavam ou estavam prestes a começar a trabalhar quando Cabul foi tomada pelos talibãs. As suas vidas foram levadas de arrasto para dentro de casa. Escaparam ao Afeganistão e há um ano estão em Portugal
Hoje a “coisa má” está ainda pior: se tivessem ficado, não podiam falar ou cantar em público, o rosto haveria de estar sempre tapado para “não tentar” ninguém e nem perfume poderiam usar.
A 6500 quilómetros de Portugal está a acontecer o que as Nações Unidas definiram como um apartheid de género
Outubro 2024
“E stá bem?”, pergunta preocupada com que algo não esteja do jeito que lhe ensinaram que era suposto estar. Leva constantemente as mãos à cabeça. Puxa o lenço negro para a frente, compõe de um lado e arranja do outro. Volta a questionar se está bem e se tudo está bem. Dá mais um jeitinho. Todos os fios de cabelo devem estar impecavelmente cobertos pelo hijab que usa na cabeça. Fayeza Yosoufi tem 24 anos e é afegã. Tinha chegado há dias a Portugal.
Pouco mais de uma semana depois, no final do ano passado, encontramo-nos outra vez.
“Olá”, cumprimenta de imediato. Por segundos, é difícil reconhecê-la. O cabelo está solto. fica-lhe um pouco acima dos ombros. É fino e castanho-claro, ganha um tom arruivado com o reflexo do sol. Fayeza sorri, sabe que está uma mulher um bocadinho diferente.
“Uso quando quero, quando não quero não uso. Quero estar como me sinto bem.”
Nada lhe foi pedido, dito ou exigido. Não foi pelo desconforto do olhar dos outros ou por sentir-se diferente de quem a rodeia na universidade, na rua ou nos transportes. Foi só ela que assim quis. “Na minha província [em Herat, a mais de 800 km de Cabul, a capital do Afeganistão] diziam que tínhamos de cobrir completamente o nosso cabelo, sobretudo nos últimos dois anos.”
Foi em agosto de 2021 que os talibãs voltaram ao poder e as forças dos EUA deixaram o Afeganistão. Ao contrário das promessas e garantias deixadas inicialmente, aos poucos, meninas e mulheres foram arrastadas para dentro de casa e proibidas de estudar ou trabalhar. Fayeza tinha acabado há semanas a licenciatura em arquitetura na Faculdade de Engenharia da Universidade de Cabul, estava prestes a começar a trabalhar.
A primeira vez que conversamos foi numa videochamada que teimava em falhar constantemente, em que a sua voz se ouvia aos soluços e a imagem congelava demasiadas vezes. Era verão de 2023, Fayeza estava fechada em casa e a meio do processo de seleção para o projeto Restart, desenvolvido pela Associação Setare e cujo objetivo era trazer para Portugal mulheres afegãs que quisessem continuar os estudos e formação. Na altura, faltavam vistos e autorizações de saída.
Fayeza desligou a câmara num gesto repentino e sem hesitação. Enquanto o fazia, já a mão lhe escondia o rosto e ouvia-se um sumido “desculpem”. A videochamada terminou, do nada. Falava de como queria voltar a ser livre e de reencontrar-se, contava que se perdeu quando os talibãs tomaram o poder. “Desculpem, não consigo.” Mais tarde, por mensagens escritas e após sucessivos pedidos de desculpa, disse que não queria que a conversa acabasse daquela forma.“Há muito tempo que não pensava em quem era, no que fui e no que vivi. Gosto de falar dos meus sonhos, mas ainda é tudo demasiado difícil”explicou.
As paredes do novo quarto nos arredores de Lisboa foram pintadas de branco e azul, o chão de madeira coberto com tapetes para poder caminhar descalça. Ao canto, há um fervedor de água - é um dos utensílios mais usados por ali. “Querem um chá?” De dentro de um malão negro tira um saquinho de plástico transparente com ervas secas que trouxeram de casa.
- Já és quem querias ser?
- Sim, estou agora a começar.
“Estou mais esperançosa, não tenho ninguém a tomar decisões por mim nem a pressão dos outros ou do ambiente à minha volta, do que devo ou não usar, ou do que posso estudar.” Perdeu conta às vezes em que foi questionada por estar em engenharia e arquitetura em vez de se formar para ser enfermeira ou parteira. “Acho que agora posso dizer: a minha escolha estava certa, eu estava certa e posso prová-lo.”
No total são oito jovens mulheres que vivem naquela casa. Chegaram a Portugal com um visto especial de refugiado e cada uma delas deixou o Afeganistão por via terrestre em direção ao Paquistão ou ao Irão, consoante a segurança e a proximidade, e de lá voaram para Lisboa. Um detalhe: a viagem não podia ter escalas em qualquer país do espaço Schengen já que, por definição dos acordos europeus, seriam forçadas a pedir asilo logo nesse país.
Dentro de alguns dias, a Setare (que é um nome feminino persa que significa estrela ou destino) vai acolher mais cinco jovens afegãs.
O plano é o mesmo: estudar, estagiar e, talvez, trabalhar em Portugal. Arquitetura, engenharia, urbanismo ou finanças são alguns dos mestrados em que estão integradas. “O que queremos é que elas se emancipem e se tornem independentes o mais depressa possível. Isso é feito de duas maneiras: com sucesso académico e integração no mercado de trabalho”, explica Luís Evangelista, fundador e presidente da Setare. “Não são meninas, não temos de tomar conta delas; são mulheres que têm o seu próprio espaço.”
A escolha das jovens foi feita após apresentação de candidatura e algumas entrevistas. “No instante em que começámos a ter projeção nas redes sociais, fomos contactados sistematicamente por elas. Diziam-nos coisas como ‘ajuda-me, o meu pai quer casar-me’ ou ‘sou artista plástica e estou a viver presa em casa’... Estamos a falar de situações relativamente complicadas.” Admitindo que o projeto possa precisar de profissionalização nos seus processos de divulgação e seleção, a urgência de responder com rapidez dificulta esse passo. “Os timings delas não são compatíveis, não dá.”
Atualmente, o projeto Restart é financiado sobretudo por mecenato, contando ainda com um “uma importante fatia” de fundos da Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA).
Os meus sonhos? Os normais
No quarto de paredes amarelas está Tamana Azhir. Tem 26 anos e estuda sentada na cama e não à secretária. De todas, é a mais desconfiada. Mas quando começa a conversar é a que mais se alonga, embora medindo sempre cada palavra.
Antes - e o antes é sempre a vida pré-regime talibã -, licenciou-se em Biologia, trabalhava como assistente de laboratório na Universidade de Cabul e estagiava para uma empresa britânica. Mudou tudo. A vida passou a limitar-se a dar aulas de inglês a amigas e vizinhas, sem nunca se afastar muito de casa.
“Ficar significava desperdiçar o meu talento, a minha paixão e não aproveitar a minha energia para algo útil. Posso estar entre a pequena percentagem de pessoas que pode realmente fazer a mudança.” Quer trabalhar em indústria e segurança alimentar. “O meu sonho é descobrir algo novo, fazer algum tipo de descoberta.”
- Quais são os teus sonhos?
- Para ser honesta, os meus sonhos são os de uma pessoa normal: ter um trabalho de que goste e uma boa vida.
Tamana não tem dúvidas de que o Afeganistão está pior hoje do que quando o deixou no final do ano passado. “Estou 100% certa disso. Antes ainda podíamos ir saindo de casa.” As notícias chegam-lhe pelos telefonemas com os pais ou em conversas com amigas. “As raparigas que saem de casa sem usar… que saem só de calças e t-shirt ‘perdem-se’ e ninguém as consegue encontrar.” Hesita um pouco. “Sim, elas desaparecem e isso não aparece nas notícias de lá, mas há casos desses.” Tamana ainda conseguiu trabalhar à distância para empresas nos EUA e na Austrália, em ambas ajudava nos trabalhos administrativos.
O sol de começo de primavera aquece a conversa. Sentada na escada de cimento no pátio da casa onde as oito agora vivem recorda o dia em que chegou. Lembra-se que fez o pequeno-almoço. “Fiz omelete.” E ri. “Os ovos são linguagem universal”. Foi das primeiras a começar as aulas, por agora microbiologia médica é a cadeira preferida, tem um grupo de amigas com quem costuma fazer os trabalhos em conjunto.
“Os portugueses são bons a falar. Têm conversa e falam bem inglês, articulam muito cada palavra.” Já está tranquilizada com a maior presença de homens, à qual não estava habituada. “Começo a estar mais confortável e a falar com toda a gente. Acho que estou mais relaxada.”
Entre risos envergonhados, conta que um dia entrou no autocarro sem saber o destino. O painel eletrónico estava avariado. Fayeza já nem se lembra para onde ia, apenas se recorda que só falava inglês e o motorista apenas português. Depois de algumas tentativas até se entenderem, ele perguntou-lhe: “Made in China?”. Fayeza, que tem os olhos mais rasgados e amendoados, conta a história com graça, como um exemplo daquilo que diz ser o à-vontade dos portugueses.
“As pessoas identificam que sou estrangeira e o comportamento é muito mais amigável e simpático do que o dos homens do meu país.” Apressa-se a explicar que não é uma crítica, mas uma consequência do meio. “As pessoas no Afeganistão não podem ser acusadas de ser assim, é o ambiente. Têm de se comportar dessa forma para se adaptarem à sociedade.” E continua: “Lá, mesmo sendo afegã, sentia que estava a mais, que era adicional. Aqui, tendo acabado de chegar, estou segura”.
O hijab estava perfeito, não se via um fio de cabelo.
“Porque estão eles a olhar para mim?”
Estava a seguir todas as regras que lhe eram impostas, ainda assim parecia chamar demasiado a atenção.
“Há algo de diferente em mim?”
Eles, os talibãs, tinham os olhos fixados nela, Elaha.
“O que se está a passar?”
Estava com medo. “Mesmo muito medo.”
Nos meses seguintes, não voltou a sair de casa. “Tinha medo que me detivessem ou me dissessem algo, que me perguntassem porque estava ali no caminho.” Durante duas ou três semanas não foi à rua.
“Foi o meu último dia.”
Preparou-se como quem se prepara para a guerra, foi ao supermercado e trouxe comida imperecível, que a alimentasse durante dias. Pão, feijão, alguma carne. “Não sabia o que ia acontecer, não sabia se as lojas iam fechar.” Quando voltaria a sair de casa?
Dias antes, Elaha dava aulas na faculdade de Cabul, ia à casa de amigos para festejar um aniversário, regressava a casa já pela noite. “Depois veio o dia do colapso. Acabou tudo.” O colapso foi o dia em que os talibãs tomaram o poder no Afeganistão. “Foi muito sombrio.” Recorda-se das pessoas que fugiam em desespero para o aeroporto, do turbilhão de gente que deixava tudo para trás para sair do país.
Elaha sai todas as manhãs para correr. Veste o fato de treino e vai em direção a um campo de jogos ali da vila. A 6500 quilómetros de Helmand, a província no sul do Afeganistão onde nasceu, vai para a rua quando ainda é noite - “tipo umas 6h” - e corre, corre, corre. “O fresco da manhã dá-me uma sensação de felicidade”.
É a mais velha do grupo, tem 29 anos. Está noiva do homem que acredita que um dia vai conseguir vir para Portugal, mas só quando acabar os estudos e encontrar um bom emprego. “Ele e o meu irmão foram os que mais me encorajaram a vir.” Já quando estava no Paquistão para pedir o visto de viagem, pensou em recuar. “Vai chegar o dia em que os talibãs não vão permitir que nenhuma mulher saia à rua. Quando esse dia chegar, vais ficar doente e deprimir por teres de ficar num canto em casa. Esta é a tua oportunidade, tens de sair”, disse-lhe o irmão. Deu-lhe garantias que fora do Afeganistão conseguiria ajudar muito mais a família do que ficando.
“E, pronto, eu disse ‘ok, vamos’”, conta.
O pai está doente, a mãe já tem uma idade avançada. O irmão prometeu-lhe que tomaria conta dos dois.
Nas mãos tem uma máquina fotográfica não muito nova, nem muito antiga. Não sabe bem como funciona e pede ajuda. Foi um dos fundadores da Setare que lha deu. Zainab Alawi, 24 anos, é a mais curiosa em perceber porque quando clica no botão não há disparo nem retrato guardado. Carrega a máquina e as lentes como se embalasse um bebé ao colo. Quer perceber como pode voltar a usá-la. Afinal, era só um problema no temporizador e, quando resolvido, há uma explosão de entusiasmo contido. Claramente haverá sessões de fotografia em breve e Zainab vai ser a artista.
Quase como pena de prisão, não saiu de casa durante dois anos. Setecentos e trinta dias. “Proibiram tudo: de estudar e trabalhar.” Procurou trabalho na área em que se licenciou, em arquitetura, mas esses eram trabalhos que não se podiam fazer exclusivamente a partir de um computador num quarto isolado da vida exterior. “Não consegui encontrar nada.” Uma das irmãs está a estudar na Turquia, outra continua fechada em casa e as duas mais novas são ainda demasiado pequenas para serem tratadas como mulheres.
“A minha educação permite-me ter um futuro mais brilhante.” A frase de Zainab parece ensaiada, saída de um tutorial de como dizer tudo certinho. Não é, ela acredita mesmo no que diz. Mais: ainda tem bem presente o que é ter apenas a escuridão como expectativa para a vida.
Casa a tua filha
Uma filha é um fardo, muitas filhas uma carga enorme para a família. Era com a argumentação de que ajudavam a diminuir a despesa que se aproximavam dos homens e faziam a proposta: casar as filhas com um dos talibãs. “Se vissem um pai com mais filhas do que filhos, forçavam os casamentos.”
Neda é uma das cinco filhas dos seus pais.
Neda Ravazi escapou antes da indesejada proposta de casamento lhe bater à porta. Tem 18 anos, é a mais nova do grupo. Quando os talibãs começaram a recuperar território no Afeganistão, os habitantes de Helmand, onde vivia com a família, foram aconselhados a deixar a cidade. Quando regressaram, tinham perdido tudo. “A nossa casa estava destruída.” Mudaram-se para o Paquistão.
- A tua família está segura?
- Não. Vão tentar ir para outro lugar.
Há mais de 21 milhões de mulheres, raparigas e meninas no Afeganistão (48%). Vinte e um milhões é o dobro do total da população portuguesa. “O nível chocante de opressão das mulheres e meninas afegãs é incomensuravelmente cruel”, disse no final do ano passado Volker Turk, alto-comissário de Direitos Humanos das Nações Unidas (ONU). “Lamentavelmente, o Afeganistão tornou-se um lugar onde as vozes das mulheres desapareceram completamente”, continuou. A ONU considerou a perseguição das mulheres afegãs como um “apartheid de género”.
Já em agosto deste ano os talibãs aprovaram nova legislação para a “propagação da virtude e prevenção do vício”, que torna obrigatório para as mulheres o uso do hijab e impede-as de falar em locais públicos. A legislação, reagiu a ONU, “alarga as restrições já intoleráveis aos direitos das mulheres e raparigas, e até o som das vozes das mulheres fora das suas habitações é aparentemente uma falha moral”.
Os homens são agora obrigados a deixar crescer a barba.
Maliha Asadi não tem grandes memórias de viver num país “sem problemas”. “Por vezes, não estávamos em segurança porque os talibãs ou o Daesh atacavam.” Tem 26 anos, e nasceu e cresceu em Ghazni, não muito longe da fronteira com o Paquistão. “Tudo isto é normal porque quando nascemos no Afeganistão, sabemos que há um conflito interno, mas depois os talibãs vieram e tomaram o poder…” Formou-se em Geologia, vai continuar os estudos num mestrado na mesma área.
“Agora estou feliz por poder fazer tudo aquilo que quero. É importante que cada um de nós faça aquilo que quer. Tenho uma boa vida aqui.”
Quatro ou cinco delas querem experimentar uma aula de zumba. Algumas, antes dos talibãs, iam ao ginásio ou praticavam desporto. Roubaram-lhes o direito de o fazer. “A zumba é muito diferente das danças do Afeganistão, mas o resultado é o mesmo: é bom para a saúde e estamos felizes a fazê-lo ”, diz Maliha. “Não quero ser boa dançarina, quero ter saúde e ser feliz.”
Zainab usa - todas elas, na verdade - palavras simples para descrever o que é demasiado complicado. “Uma coisa má no Afeganistão é que não podia fazer as coisas que gostava, como o basquetebol. Não podia jogar basquetebol lá e aqui posso.” Nunca jogou, só via na televisão. Agora juntou-se a um clube e joga todas as segunda-feiras. Às 20h começam o treino.
- Estás a gostar?
- Sim - responde com prontidão.
- E jogas bem?
Esta resposta é bem mais hesitante e demorada. “Hum.” Pensa mais um pouco. “Não, não sou lá muito boa.”
Há borboletas espalhadas pelas paredes cor de rosa de Neda. Foram folhas de papel que ganharam forma com o recorte da tesoura e a cor dos lápis. Está sentada à secretária encostada à janela, com as costas completamente curvadas, continua a fazer mais e mais. “Gosto de borboletas e gosto de decorar o meu quarto”.
Divide o quarto com Elaha. Além de mais nova e mais velha do grupo, respetivamente, partilham também a família, são primas e isso dá-lhes uma força extra para lidar com a mudança.
“Bôm día” é bom dia, “bô-a tardi” é boa tarde. Elaha tem que recorrer ao pequeno caderno de apontamentos para se lembrar do que tem aprendido nas aulas de português - uma exigência da AIMA, mas também da Setare, que sempre considerou essencial para a integração a aprendizagem da língua. “Páaô” é pão.
“Éu me chamare assi.”
Ela sabe que está errado, folheia as folhas pautadas todas escritas a caneta. “Chama assi.” E enquanto procura pela frase correta, os olhos prendem-se noutra palavra. “Ótôcarro”, diz de imediato a rir. “Mas há uma que eu acho muito complicada: bein… beinjinos”. São beijinhos.
“Eu gosto muito da língua. É difícil, mas estou a tentar aprender”, diz Neda. Têm aulas duas vezes por semana.
Na máquina a roupa acabou de lavar. Fatima Tanin (25 anos) enche o alguidar e carrega-o até ao terraço, onde estende cada uma das peças. Há calças de ganga, t-shirts, camisas, fatos de treino, pijamas. É um banal estendal ao sol. As coisas especiais, aquelas que as lembram de casa, estão guardadas nas malas de viagem ou penduradas cuidadosamente nos armários. São vestidos, normalmente de cores fortes, mas escuras, uns verdes e bordeaux. Quase sempre feitos à mão e adornados meticulosamente com missangas, chapinhas e outros berloques.
Fatima, ao contrário das restantes, não trouxe nada. “Apenas roupa para vestir no dia a dia, o computador, alguns livros e coisas que podia precisar. Não trouxe nada de especial.” Está a ler um livro sobre economia, a área em que se formou no Afeganistão e onde agora, em Lisboa, vai continuar a especializar-se.
“A situação lá é mesmo má para as meninas e mulheres afegãs, passámos muitos dias bem sombrios.” E lembra-se de uma história: “Estava numa aula de línguas quando os talibãs apareceram e disseram aos professores que se não deixassem de ensinar as raparigas, eles seriam castigados.”
As três irmãs de Fatima ainda conseguiram concluir os estudos na universidade, casaram todas depois.
- Queres fazer o mesmo?
- Não sei, talvez.
Consegue falar com os pais todos os dias, fala-lhes sobre o que fez e como se sente. “Conto-lhes dos sítios onde vou, as pessoas que vejo e como estas são muito educadas e simpáticas”, diz Fatima. “Estou aqui e estou feliz com o meu futuro.”
Elaha nunca tinha ouvido falar de Portugal. Não sabia onde era, só tinha ouvido o nome de Cristiano Ronaldo um par de vezes. “O meu sobrinho é que sabia quem ele era e quando soube que eu vinha para cá pediu para arranjar um autógrafo e enviar-lhe.” Ri-se. É um pedido bem mais complicado de concretizar do que alguma vez o miúdo pensou.
Na mesma secretária onde corta as borboletas, Neda faz agora uma videochamada. É a primeira vez que vive longe dos pais. “Às vezes sinto a falta deles, mas falamos várias vezes.” Da mãe, trouxe um blusão. “Eu digo-lhes que tudo é perfeito, sou livre, posso fazer o que quero e sonho. Posso ir ver o mar e caminhar à noite.”
Afegãos são os que mais pedem asilo
São do Afeganistão as pessoas que fazem mais pedidos de asilo na Europa. A realidade é a mesma em Portugal, onde os menos de dois mil refugiados acolhidos representam quase uma insignificante fatia (0,2%) do acolhimento na União Europa. A maioria encontra-se na Alemanha, em França e em Espanha.
De acordo com os dados o Relatório de Asilo 2024, da Agência da União Europeia para o Asilo (EUAA), entre os pedidos que chegam a Portugal, os afegãos são os mais presentes (13%). Seguem-se colombianos e gambianos.
“Tudo é novo para mim.” Wahida Hussaini tem 26 anos. “Tudo isto é melhor para mim.” Estudou ciências ambientais quando ainda lhe era permitido estudar em Cabul. Agora quer fazer o mestrado em urbanismo. “É um novo começo.”
Os pais deram-lhe todo o apoio para fugir e continuar os estudos longe do Afeganistão, onde toda a gente lhe dizia o que tinha de fazer. E aqui, conta, ninguém força nada e é livre de todas as formas. “Acho que os meus pais estão seguros, mas lá ninguém está verdadeiramente seguro. Mas, sim, estão numa situação normal.”
Sentaram-se à beira-mar, gritaram, cantaram e partilharam as batatas fritas que compraram. Ficaram só ali na praia dos pescadores, na Ericeira. Para muitas era a primeira vez que viam mar, outras tantas nunca antes tinham estado numa praia com oceano. Já ali voltaram várias vezes. “Lembro-me que logo ali senti algo diferente, senti-me livre”, recorda Wahida. “Senti-me livre de todas as formas, exatamente como quero ser.”
Regressamos com as sete à mesma praia - Tamana estava na universidade, tinha uma aula nessa tarde -, recriaram o que fizeram naquele primeiro dia. Só faltou o pacote de batatas fritas. Neda vai caminhando afastada das restantes jovens; ora vai mais à frente, ora deixa-se ficar para trás. Não se descalça. Na areia molhada, com o sol de fim de dia, escreve um nome com as mãos e desenha um coração. Fotografa com o telemóvel e depois, com os pés, apaga-o. “É o nome da minha amiga, vou enviar-lhe a foto.”
A amiga de Neda continua no Afeganistão. “Nós somos as que tiveram sorte”, diz Fayeza. Dentro de dias, mais cinco jovens mulheres afegãs vão juntar-se a elas em Portugal.
Elas são as que tiveram sorte.
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Texto de Marta Gonçalves
Fotografia de Matilde Fieschi
Vídeo de Rúben Tiago Pereira
Animação Gráfica e Infografia de Carlos Paes
WebDesign de Mário Henriques e Tiago Pereira Santos
WebDevelopment de João Melancia
Coordenação de Joana Beleza, João Carlos Santos, Pedro Candeias e Rita Ferreira
Direção de João Vieira Pereira
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Expresso 2024