Acontecimento internacional Surgimento do Estado Islâmico

A milícia que quer ser Estado

Desagregação da Síria e do Iraque abriu portas a um grupo radical ainda mais ameaçador que a Al-Qaeda. Milhares de jovens ocidentais integram as fileiras jiadistas

TextoMargarida Mota Vídeo Joana Beleza Foto REUTERS


Surgiu como um ramo regional da Al-Qaeda, mas em poucos anos o autodenominado Estado Islâmico (Daesh) tornou-se um movimento mais rico, mais influente e muito mais cruel do que a organização fundada por Bin Laden. Esta nova ameaça fez-se anunciar a 9 de junho, quando milícias do grupo radical Estado Islâmico do Iraque e do Levante tomaram edifícios governamentais, prisões, postos da polícia e o aeroporto internacional da cidade iraquiana de Mossul.

A debandada das forças de segurança iraquianas, assustadas com o avanço de jiadistas armados até aos dentes e impiedosos para com populações não-muçulmanas (cristãs e iazidis, por exemplo) e muçulmanas não-sunitas (como os xiitas), mostrou uma primeira razão para o surgimento deste fenómeno: as forças armadas iraquianas não estavam à altura de garantir a segurança de um território em estado de guerra crónico desde a invasão dos EUA, em 2003.

Uma segunda explicação decorreu da discriminação de que a minoria sunita foi alvo após o fim do regime de Saddam Hussein (sunita) e a subsequente subida ao poder da maioria xiita, que enveredou por uma governação sectária. Incapazes de servir sob as novas autoridades, ex-militares sunitas aderiram às hostes do Daesh, não tanto por afinidades ideológicas e religiosas (ainda que todos sejam sunitas), mas porque combatiam um inimigo comum: o poder central.

A situação do Iraque era apenas um dos lados da moeda. Na vizinha Síria, os sonhos de liberdade e democracia nascidos em 2011 no contexto da primavera árabe deram lugar a um rigoroso “inverno” de guerra, opondo o regime de Bashar al-Assad a uma galáxia de fações rebeldes. Estas, com o arrastar do conflito, acabaram se voltar umas contra as outras.

O jiadista invisível

Beneficiando da desagregação dos dois países, os extremistas consolidaram as suas conquistas territoriais. A 29 de junho, espantaram o mundo ao anunciar a instituição de um califado (“sucessão” em árabe), recuperando uma histórica entidade político-religiosa criada, pela primeira vez, após a morte do profeta Maomé, no século VII. Daí em diante, os muçulmanos de todo o mundo deveriam obediência a Abu Bakr al-Baghdadi, autointitulado califa. O grupo mudou de nome e passou a chamar-se Estado Islâmico (Daesh é o seu acrónimo em árabe), expondo assim toda a sua ambição política no sentido de instituir um Estado governado pela lei islâmica (sharia).

Abu Bakr al-Baghdadi não era um total desconhecido no Ocidente — apesar de ser chamado “jiadista invisível”. Durante a guerra no Iraque, estivera quatro anos detido em Camp Bucca, prisão administrada pelos Estados Unidos no sul do Iraque. Foi libertado em 2009 e, no ano seguinte, ascendeu à liderança da Al-Qaeda no Iraque, após o anterior chefe da organização ter sido abatido por forças americanas.

Filmes de terror

Sob as ordens de Al-Baghdadi, o Daesh impôs-se, recorrendo ao terror, com execuções coletivas, apedrejamentos e crucificações em público, filmadas e postas a circular na internet. A barbárie arrebatou as manchetes da imprensa internacional quando, a 19 de agosto, surgiu no YouTube um vídeo mostrando a decapitação do jornalista norte-americano James Foley, desaparecido na Síria desde 2012. O primeiro de um total de cinco ocidentais: três americanos (além de Foley, foi o caso de Steven Sotloff e Peter Kassig) e dois britânicos (David Haines e Alan Henning).

O Ocidente chocou-se duplamente quando, nos vídeos, a liderar os rituais de decapitação, surgia um homem vestido de preto, de cara coberta e faca na mão esquerda, a falar inglês com sotaque britânico. “Jihadi John”, como passou a ser conhecido, dirigia mensagens de carácter político ao Ocidente. A seus pés, ajoelhados, os reféns vestiam fatos laranja como os usados pelos detidos em Guantánamo.

Muitos países admitiram a existência de cidadãos seus nas fileiras da jihad, maioritariamente jovens. A apreensão chegou também a Portugal, onde as autoridades identificaram pelo menos 12 cidadãos com passaporte português (alguns com menos de 30 anos) no Iraque e na Síria, em grupos radicais. Uns são lusodescendentes, filhos de emigrantes residentes na Europa; outros nasceram e cresceram em Portugal, na linha de Sintra, tendo saído do país já adultos.

A execução encenada de cidadãos ocidentais e as preocupações relativas ao regresso aos países de origem de cidadãos com experiência de combate e ideais extremistas levou o Ocidente a reagir. Com a capital regional curda, Erbil, ao alcance das armas do Daesh e refugiados em perigo no Monte Sinjar, os EUA formaram uma coligação com europeus e países árabes cujos aviões começaram a intervir em agosto.

A brutalidade das ações do Daesh levou Ayman al-Zawahiri, o egípcio que sucedeu ao saudita Bin Laden na liderança da Al-Qaeda, a rejeitar qualquer fusão com a nova organização. Em meia dúzia de meses, o Daesh obteve sucessos com que a Al-Qaeda apenas sonhou: controla uma área superior à de muitos países, domina milhões de pessoas na Síria e no Iraque e rentabiliza infraestruturas económicas.

Jürgen Todenhöfer, alemão de 74 anos, foi o primeiro jornalista ocidental a receber autorização para visitar o território jiadista. A visita durou dez dias, tendo terminado a 16 de dezembro. “O Daesh pode comprar quase qualquer arma”, escreveu no Facebook, junto a uma foto sua em Mossul na companhia de um jiadista com uma metralhadora MG3 de fabrico alemão. “É mais poderoso e perigoso do que muitos políticos ocidentais imaginam”. Contudo, nas últimas semanas os ataques aéreos e a resistência curda puseram-no em xeque em Kobane e no Monte Sinjar.


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Conflito na Ucrânia

A aproximação à União Europeia dividiu os ucranianos. As manifestações da praça Maidan (pró-Europa), que vinham de 2013, forçaram o Presidente Ianukovitch (pró-Moscovo) a sair. Tropas russas entraram no leste do país, apoiando os separatistas e um avião malaio foi abatido por um míssil. O cessar-fogo é precário. Um referendo não reconhecido internacionalmente na Crimeia redundou na anexação desta península pela Rússia.

Independentismo na Europa

O referendo para a independência na Escócia (na imagem, partidários do “sim” numa ação de campanha) foi um calafrio enorme para o Governo de Londres e uma séria advertência para a União Europeia. Além das Ilhas Britânicas, a pulsão independentista continua bem evidente na Catalunha, entre outros pontos da Europa. O receio maior em Bruxelas é que uma primeira independência possa ter um efeito dominó nos demais nacionalismos.

Surto de Ébola

Uma epidemia de febre hemorrágica fez, até dezembro, 7400 mortos na África Ocidental (em 19 mil infetados). O Ocidente só despertou quando houve mortes nos EUA e Espanha. Desde 1976 que o vírus está identificado, mas andara sempre longe das zonas urbanas e das prioridades dos países ricos e instituições internacionais. O pessoal médico teve 365 mortos (em 649 internados), sendo os países afetados (Libéria, Serra Leoa e Guiné) dos mais pobres de África.

Desencanto com a Europa

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Desaparecimento do avião da Malaysia Airlines

A 8 de março, um avião da companhia aérea Malaysia Airlines, desapareceu ao largo do Vietname. O Boeing 777 tinha 239 pessoas a bordo, de 14 nacionalidades. Uma situação sem paralelo, pelo número de passageiros, na história da aviação comercial. As autoridades malaias informaram mais tarde que a aeronave terá caído no Oceano Índico, a 2500 quilómetros da costa australiana. O mistério permanece.

Conflitos em Hong Kong

Manifestações populares pró-democracia inéditas desde a transferência de soberania do Reino Unido para a China constituem um desafio ao poder central em Pequim. Em causa está o processo de eleição do chefe do executivo de Hong Kong: a China quer escolher os candidatos, os manifestantes uma escolha livre. A situação é seguida atentamente em Taiwan, que começa a olhar com ceticismo para a possível unificação com a China.


A escolha dos leitores na votação online

Surgimento do Estado Islâmico

A mais recente, e cruel, frente de batalha aberta pelas ondas de choque da Al-Qaeda foi para os leitores, como fora para os jornalistas do Expresso, o acontecimento do ano. Com uma margem confortável sobre o conflito da Ucrânia (36,99% contra 19,09%). Já o desencanto com a Europa — vivido também em Portugal, a avaliar pelos resultados das eleições de maio — fechou o pódio (15,22%).