Vem do povo e o povo, de certa forma, está sempre com ele. Muitas vezes, na sala de interrogatórios, refere-se a si próprio como um “humilde aldeão”. Parece fazê-lo como uma provocação. Carlos Manuel Lopes Alexandre, de 52 anos, já era bastante conhecido pelos portugueses, mas 2014 confirmou-o como o juiz mais temido do país. Em julho assinou um mandado de detenção do banqueiro Ricardo Salgado e em novembro fez o mesmo com José Sócrates. Foram dois pontos altos num ano cheio de ação para aquele que, até setembro, era o único juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal.
A detenção de Sócrates, sobretudo essa, foi uma das notícias mais surpreendentes do ano. O Ministério Público não fora capaz, em 2010, de fazer perguntas ao então primeiro-ministro por causa de um processo de corrupção, o ‘Freeport’, e agora um juiz mandava-o deter? Mais: depois de manter um interrogatório de longas horas ao ex-primeiro-ministro — onde nunca tratou o arguido por José Sócrates, mas por senhor José Pinto de Sousa —, Carlos Alexandre colocou-o em prisão preventiva. Nenhum juiz até hoje enviara um ex-chefe de governo para trás das grades.
É um homem que desconfia do poder. Tem dificuldade em acreditar no que lhe dizem os políticos, empresários e gestores de topo que costumam sentar-se à sua frente. É, por outro lado, um homem religioso e encara os seus laços com a religião como um modo de restabelecer energias para as dificuldades do seu trabalho. “Gosto de ir a Fátima. Isso não me diminui. Penso que me fortalece”, dizia há dois anos num vídeo amador filmado por um amigo, antigo assessor do PS, António Colaço, nas ruas de Mação, quando participava numa celebração da Páscoa. Filho de um carteiro e de uma operária da indústria de lãs, cultiva a ligação à terra natal, onde costuma ir com frequência. “Nunca perdi o contacto com a minha origem e é nesta origem que quero manter os meus pés bem assentes no chão”, confessava nesse vídeo.
Na sala de interrogatório, é dominador. Ouve as escutas com atenção, quando elas existem, estuda bem os autos e gosta depois de fazer perguntas. Como há muita coisa a passar-lhe pelas mãos e o país é pequeno, tem um conhecimento cruzado e profundo sobre os calcanhares de Aquiles do regime. Uns acham-no clarividente e despachado, outros pensam que é tendencioso e persecutório. O Ministério Público, responsável pelas investigações e acusações contra algumas figuras do regime, tende a gostar dele, enquanto os advogados, pagos para defenderem suspeitos e acusados, costumam criticá-lo pelo modo como muitas vezes parece colocar-se do lado dos procuradores.
“É combativo e consegue associar a grande experiência que tem à capacidade de aplicar o Direito a cada situação em concreto”, elogia Maria José Morgado, diretora do DIAP (Departamento de Investigação e Ação Penal) de Lisboa. “É um trabalhador sem limites e um homem muito competente, que compreende todas as circunstâncias com que se cruza, sabendo interpretá-las com correção”, reconhece o advogado Nuno Godinho de Matos. “Mas procura suportar as teses e as posições do Ministério Público. Seria um grande diretor da Polícia Judiciária. Acho que essa é a sua vocação”.
O que ninguém lhe nega é a coragem e a dedicação ao trabalho. E, nisso, o ano de Carlos Alexandre foi muito produtivo.
Em abril, ouviu em interrogatório João Alberto Correia e decretou-lhe prisão preventiva. O diretor-geral de Equipamentos e Infraestruturas (DGEI) do Ministério da Administração Interna, responsável pelas obras em esquadras e quartéis, tinha deixado já o cargo mas era ainda uma pessoa influente, filho de um ministro socialista do bloco central, nos anos 80. Foi indiciado por corrupção e participação económica em negócio e, alegadamente, estará envolvido num esquema em que beneficiava com contratos de ajuste direto membros de uma organização de que também faz parte: a maçonaria.
Já em novembro, mandou deter o presidente do Instituto dos Registos e Notariado (IRN), António Figueiredo, e o diretor do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), Manuel Jarmela Palos, em mais um momento inédito para a justiça em Portugal. Foi a primeira vez que isso aconteceu com o diretor de uma polícia. Jarmela Palos, após uns dias de prisão preventiva, acabaria por ficar em casa com pulseira eletrónica, mas Figueiredo não foi poupado e está ainda em prisão preventiva, apontado como o responsável de um esquema para facilitar a atribuição de vistos gold a cidadãos chineses, envolvendo crimes de corrupção, prevaricação, peculato, abuso de poder e tráfico de influências.
Para compreender o protagonismo de Carlos Alexandre é preciso conhecer a história do Ticão, como o TCIC foi batizado no meio. O tribunal surgiu em 1999 para funcionar a par e passo com o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), criado na mesma altura na dependência direta do procurador-geral da República e dedicado exclusivamente a casos complexos. Como o espectro de processos-crime se limitava ao que era investigado naquele departamento, foi considerado como suficiente um único juiz para lidar com tudo. Carlos Alexandre viria a ser o terceiro magistrado a ocupar o lugar, a seguir a Fátima Mata-Mouros e Ivo Rosa. Começou como juiz-auxiliar de Mata-Mouros, em 2004, e dois anos depois estava à frente do tribunal, quando o ritmo de trabalho exigido pelo DCIAP estava a aumentar. Esse ritmo tem vindo sempre em crescendo. E tem contribuído para o reforço do papel do juiz.
Carlos Alexandre podia já ter feito o que era esperado para um juiz preocupado com a carreira: passar a desembargador, mudando-se para o Tribunal da Relação, com um salário maior. Em vez disso, concorreu este ano para continuar no Ticão. Foi o mais bem classificado. O que prova que não quer ir para nenhum outro sítio. E que, na verdade, está para durar.
O mais influente banqueiro do país, outrora venerado, destruiu o banco que estava na posse da família há quase século e meio. O BES arrastaria para o fundo todo o universo Espírito Santo (ou terão sido antes os negócios da família a sequestrar e a sugar o banco). Ricardo Salgado foi o líder do maior centro de poder (político, económico e financeiro) em Portugal, uma hegemonia clara pelo menos desde o início deste século. Afinal, era numa teia perigosa de relações entre políticos e gestores, e entre estes (como o ilustra a agonia da PT). Salgado foi, entretanto, no âmbito do processo ‘Monte Branco’, constituído arguido por burla, abuso de confiança, falsificação de documentos e branqueamento de capitais. Na comissão parlamentar de inquérito ao BES/GES, o ex-Dono Disto Tudo exibiu-se mais como vítima de todo o processo do que como responsável. A BBC considerou-o o pior CEO do ano em todo o mundo.
O socialista que preside à Câmara de Lisboa atacou pela certa. Perante os resultados do PS nas europeias, desafiou Seguro e ganhou em toda a linha, com uma base de apoio muito superior à dos militantes. Saiu do congresso do PS como entrara: escondendo como enfrentará a dívida e o défice. Em relação ao meteorito (Sócrates) caído sobre os socialistas, foi rápido a reagir, estancando o problema. E até subiu nas sondagens.
O futebolista continua a caminhada para pulverizar (quase) todos os recordes. Ganhou a bola de ouro 2013 (atribuída já em janeiro deste ano) e está nomeado para a de 2014 (se vencer, será a terceira). Tornou-se o melhor marcador de seleções no campeonato da Europa (grupos e fases finais), venceu a Bota de Ouro (melhor marcador dos campeonatos nacionais), foi o melhor marcador da Liga dos Campeões (que venceria, a segunda da carreira) e no Real Madrid ameaça já a lenda de Alfredo Di Stéfano. Só houve uma pedra na chuteira (a desilusão portuguesa no Mundial do Brasil), no verão, mas os balanços dos anos são como os jogos: conta mais como acabam. E o Natal coloca Ronaldo nas estrelas: personalidade estrangeira para a BBC, vencedor do Mundial de Clubes e nova sagração na terra que o viu nascer, com a maior condecoração da Madeira e a inauguração de uma estátua no Funchal. Haverá limites para CR7?
Foi a grande surpresa e tornou-se o grande vencedor das eleições europeias, ao rebocar o MPT a uma votação. Se há um desencanto dos portugueses (à semelhança de outros povos europeus) com a política e com os políticos, Marinho Pinto foi tanto um indutor dessa expressão popular quanto beneficiário dela. Mas se depressa “chegou, viu e venceu”, mais rapidamente ainda de incompatibilizou com os seus “compagnons de route” – o que o levou a deixar o MPT e a fundar um novo partido, o PDR. O discurso populista que caracteriza Marinho Pinto teve já várias vezes um efeito “boomerang” (no caso de subsídio pago pela Ordem dos Advogados ou nos avanços e recuos sobre a continuidade no PE). Resistirá a si próprio?
Um ano depois de ter comemorado meio século de vida artística, e poucas semanas antes de celebrar 75 anos de vida, Carlos do Carmo recebeu em 2014 a maior consagração internacional da sua carreira: a atribuição de um Grammy (sendo simultaneamente a primeira vez que tal galardão é concedido individualmente a um artista português). Um tributo que consolida o nome de Carlos do Carmo além-fronteiras, ao mesmo tempo que reforça o estatuto do fado como Património Imaterial da Humanidade, abrindo novos mercados à música que espelha como nenhuma o modo ser lusitano.
O diretor-geral da Saúde comandou no terreno as operações de combate ao surto da legionela – o terceiro maior de sempre em todo o mundo, com 12 mortos entre os 375 casos registados. Já em outras situações críticas para a saúde pública, o rosto de Francisco George se tornara familiar para os portugueses. Mas nunca como agora as suas palavras e recomendações foram tão seguidas. Sempre proferidas num tom sereno, que transmitia confiança à população. Numa conjuntura em que se tornou recorrente um certo discurso contra o Estado, a atuação de George espelhou uma evidência: há tarefas que só o Estado pode fazer. E faz bem.
Ao longo de 2014, a ministra das Finanças foi marcando o seu próprio espaço dentro do Governo, ultrapassando desconfianças acerca da sua capacidade política. Estas haviam começado mesmo dentro do próprio Executivo, por Paulo Portas, no verão de 2013, quando foi chamada a substituir Vítor Gaspar. No ano em que a troika saiu do país, Maria Luís Albuquerque, com total cobertura de Pedro Passos Coelho, continuou a aprofundar uma política de austeridade, expressa no Orçamento do Estado para 2015.
O juiz que mandou prender Sócrates, entre outros casos mediáticos, bateu Costa (32,24% contra 28,93%), mas à beira do fecho da votação estavam separados por menos de 1%. Carlos do Carmo, com 10,67%, fechou o pódio.