Acontecimento Nacional Estouro do BES

A queda do império

Em janeiro, Espírito Santo confundia-se com dinheiro e poder. Doze meses depois, rima com falência. Não foi só um grupo económico, foi todo um sistema de poder que morreu

TextoJoão Vieira Pereira Vídeo João Santos Duarte Foto Tiago Miranda


Desconhece-se o autor da alcunha de Ricardo Salgado. O próprio despreza o título. Numa entrevista publicada no início de 2013, a propósito dos 40 anos do Expresso, foi confrontado publicamente pela primeira vez com o facto de o apelidarem de DDT – Dono Disto Tudo. Reagiu mal: "Isso é um disparate. O nosso grupo procura manter a sua ética e assim tem sido desde sempre. O que temos feito é fruto da vontade de valorizar o nosso país e não com o objetivo de dominar a economia".

Mas se Salgado não se sentia assim, era desse modo que os seus pares o viam. Ainda mais quando 2013 terminou com a sua vitória clara na guerra pela liderança. O ataque veio do seu primo José Maria Ricciardi,que tentou unir os vários ramos da família em torno de um novo desígnio: mudar cúpula do grupo Espírito Santo. Os mesmos familiares, que numa primeira fase lhe deram o apoio, retiraram-no depois. Os mesmos que hoje devem estar arrependidos por não terem acreditado em Ricciardi mais cedo.

Na altura ainda havia algo para salvar. No início deste ano, comentava com um banqueiro português o caso Espírito Santo, dizendo-lhe que havia pouco do grupo para salvar. Como resposta disse-me: "Podem sempre vender o banco". Seis meses depois já nem banco havia para vender.

Ricardo Salgado entra em 2014 com o controlo de tudo. Ou pelo menos do que conseguia. Fora da sua vasta área de influência estava a capacidade de tirar o país de uma das mais graves crises económicas e financeiras. Quando o endividamento do Grupo Espírito Santo começou a crescer exponencialmente o ex-líder do BES Santo não contava que a crise iniciada em 2008 se arrastasse por seis anos. O que começara como uma necessidade, a de esconder perdas de 180 milhões, terminou com a falência da família e a separação do BES em dois banco, o bom e o mau.

Com a falência do Grupo Espírito Santo e o desaparecimento do segundo maior banco privado português terminou mais do que um potentado económico: foi o fim de uma cúpula de poder que moldou os último 25 anos da economia, o fim de um regime.

O início do fim

O véu, ou melhor, a manta pesada e negra que escondia os problemas financeiros do GES começou a ser destapada após o exercício de controlo do Banco de Portugal. A primeira notícia é dada pelo Expresso em Setembro de 2013, referindo o excesso de concentração da dívida do grupo num fundo de investimento gerido por uma sociedade do banco. Em janeiro deste ano poucos apostavam na queda de Salgado.

Nada supunha que os problemas pudessem ser tão graves. No primeiro dia de Fevereiro, o Expresso noticia que está em curso uma auditoria à Espírito Santo International a pedido do Banco de Portugal. Era o princípio de uma bola de neve que se tornou imparável. O BES Santo apresenta pouco dias depois prejuízos superiores a 500 milhões. O último ano em que tinham sido distribuídos dividendos às holdings da família fora em 2011. A situação financeira das empresas estava já muito complicada e veio a agravar com o buraco descoberto na ESI, de 1,3 mil milhões, cujas contas tinham sido manipuladas desde 2008.

O que se passou depois disso foi uma sucessão de erros, decisões e acontecimentos que acabaram por obrigar o Banco de Portugal a intervir. Em meses assistimos a uma tentativa desesperada de Carlos Costa de isolar o impacto que a parte não financeira do grupo pudesse ter no BES e nos seus clientes. Lutando nesse caminho com a gestão de Ricardo Salgado que tentava provar que tudo estava bem. Desaparecimento de milhares de milhões de euros em Angola, garantias, aumentos de capital, pedido de alteração da liderança do banco, novo CEO que nunca chegou a ser, cartas de conforto, e até uma nova administração liderada por Vítor Bento. Meses alucinantes que levaram o Expresso a fazer oito manchetes seguidas sobre o tema.

A queda do Grupo Espírito Santo teve ramificações um pouco por todo o lado. A Portugal Telecom foi de longe a mais importante. Um investimento de 900 milhões de euros em dívida da ESI e depois da Rio Forte contribuíram de maneira decisiva para termos hoje uma PT muito diferente. Em poucos meses a maior operadora de telecomunicações passou de estratégica a dispensável.

3 de Agosto de 2014

A data ficará registada como o dia do fim do BES. A resolução do banco apresentada por Carlos Costa apanhou todos de surpresa. Depois de as portas se fecharem sucessivamente à família Espírito Santo foi-se conhecendo toda a verdade. Muito mais feia do que se podia pensar. O BES apresenta prejuízos históricos de 3,57 mil milhões de euros nos últimos dias de julho. Era preciso salvar o banco. O uso da linha de recapitalização foi afastado pelo Governo, que aliás se manteve sempre muito longe de todo este processo, inclusive quando Ricardo Salgado pediu ajuda direta a Passos Coelho. A Carlos Costa restou apenas a hipótese de resolução, cenário que funcionou como aquilo que ele sempre tentou evitar ser, o carrasco do BES.

Até ao fim do ano Vítor Bento, José Honório e João Moreira Rato ainda bateram com a porta, em rutura com o governador do Banco de Portugal. Foram substituídos por Eduardo Stock da Cunha e o Novo Banco voltou aos poucos a operar dentro da normalidade possível.

O caso GES/BES ainda está para ficar. A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) montou um circo mediático à volta do caso. Os trabalhos começaram há poucas semanas e nem duas dezenas de pessoas foram ouvidas. Ainda faltam mais de 100, sem contar com os que terão de voltar à CPI. Até ao momento há poucas certezas sobre as responsabilidades no caso.

Um a um, os intervenientes foram deixando cair Ricardo Salgado, mas sempre com uma confortável rede para o aparar. As frases que mais ecoam dão conta de um total desconhecimento do que se passava. Era Salgado, o centralizador, que tudo geria. Os outros confiavam. Da mesma maneira como é pouco provável que Francisco Machado da Cruz tenha decidido sozinho falsear as contas da ESI, também é difícil acreditar que Salgado tenha conseguido destruir um império sozinho.

Em 2014 houve o estrondo do BES; os próximos anos serão palco de investigações, acusações e batalhas legais pelos despojos do antigo império. Os estragos vão perdurar por anos.

Se há um ano alguém ousasse desenhar o cenário de um Portugal sem BES o mais provável era receber uma gargalhada como resposta.


Outros acontecimentos votados pelo Expresso



Detenção de Sócrates

Pela primeira vez, um ex-primeiro-ministro é detido para prestar declarações, ficando depois em prisão preventiva (suspeito dos crimes de branqueamento de capitais, fraude fiscal qualificada e corrupção). Desde há muito que José Sócrates se cruzou com situações menos claras (‘Cova da Beira’, ‘Freeport’, licenciatura e ‘Face Oculta’), mas sempre se saiu de forma mais ou menos airosa. Quando os portugueses estão cada vez mais descontentes com a política e os políticos (e os poderosos de um modo geral), a prisão de Sócrates — por alegados crimes cometidos por via do cargo que ocupava — vem minar ainda mais essa confiança. A mediatização do caso (por exemplo, com a cobertura das TV às visitas à cadeia de Évora) dá-lhe uma dimensão ímpar. É uma prova de fogo para a Justiça e também para o PS (estando a gestão do dossiê a correr bem a António Costa). Qualquer que venha a ser o desfecho, há um lugar comum que já é certeza absoluta: nunca mais as coisas serão as mesmas em Portugal (para a política, para a justiça, ou para ambas).

Escândalo dos vistos gold

Nunca um processo de suspeitas de corrupção chegara tão alto no aparelho de Estado. Pela primeira vez em democracia foi detido o chefe de uma polícia (o diretor do SEF, Jarmela Palos, na imagem). Entre os arguidos estão também o presidente do Instituto dos Registos e Notariado e as secretárias-gerais de dois ministérios. O caso teve efeitos políticos devastadores, com a demissão do ministro Miguel Macedo, chamuscando também uma bandeira política do Governo.

Surto de legionela

A contaminação com a bactéria da doença dos legionários provocada por torres de refrigeração de uma unidade fabril da empresa Adubos de Portugal lançou, no início de novembro, o alarme na região de Vila Franca de Xira e a apreensão em todo o país ao longo de vários dias. Na região afetada houve mesmo pânico: em alguns supermercados a água esgotou, pois as pessoas abasteciam-se com garrafões, receosas de abrir as torneiras em casa. Portugal conheceu o maior maior surto de legionela da sua história e o terceiro mais importante do mundo, que fez 12 mortos entre 375 casos de doença confirmados. A resposta rápida e competente das autoridades de Saúde, em colaboração com outros departamentos do Estado, evitou males maiores, tendo o surto sido declarado extinto ao fim duas semanas. Todos os elementos relacionados com a propagação da legionela foram remetidos ao Ministério Público, havendo indícios de um crime de poluição ambiental. Esta prática pode ser punida com pena de prisão até oito anos.

Balbúrdia na colocação de professores

O ano letivo teve um arranque caótico. Um erro de programação do Ministério da Educação levou à colocação errada de milhares de docentes. Houve alunos sem aulas durante mês e meio. A gestão política foi também desastrosa. Após ter garantido, no Parlamento, que nenhum professor seria “prejudicado”, Nuno Crato (na imagem, alvo do protesto dos professores) voltou atrás. Oposição e sindicatos pediram a sua cabeça, mas Passos Coelho segurou-o.

Justiça em estado de Citius

A empreitada era ambiciosa. Paula Teixeira da Cruz disse mesmo que o novo Mapa Judiciário seria a maior revolução na Justiça nos últimos 200 anos. O desastre foi equivalente. No primeiro dia do resto da vida dos tribunais, estes bloquearam por completo. Ao todo, foram 44 dias em que a Justiça portuguesa esteve quase paralisada. A oposição pediu a demissão de Paula Teixeira da Cruz, a ministra deixou no ar a hipótese de ter existido sabotagem por parte de dois técnicos. A PGR arquivaria depois o inquérito.

Caso tecnoforma

Os alegados recebimentos de Pedro Passos Coelho entre 1995 e 1998, do grupo Tecnoforma, quando era deputado em exclusividade de funções, deixaram durante semanas o primeiro-ministro na corda bamba. O silêncio inicial de Passos só serviu para adensar as suspeitas. Mas as declarações prestadas pelo primeiro-ministro no Parlamento foram suficientes para refutar as alegações de quem pedia a sua demissão.

Justiça de mão dura

Em 2014, com a condenação de Armando Vara a cinco anos e meio de prisão efetiva (pena da qual recorreu) e da condenação de Maria de Lurdes Rodrigues três anos e meio de prisão, pena que fica suspensa se pagar €30 mil, a Justiça deu sinais de uma dureza pouco habitual para com antigos políticos. Depois disso, a detenção de Ricardo Salgado no caso BES, o escândalo dos vistos gold e, sobretudo, a prisão preventiva de José Sócrates acentuam uma realidade até agora desconhecida dos portugueses. Estará aí um novo paradigma?

O fim da III república?

Com o caso BES e as suas ramificações (das relações do banco com outras empresas do Grupo Espírito Santos à teia de cumplicidades com a gestão da PT, passando por novo falhanço das autoridades de supervisão), seguido do escândalo dos vistos gold (nunca um caso de corrupção penetrou tão alto no aparelho de Estado), e terminando com a detenção de José Sócrates (nunca tal acontecera com ex-primeiro-ministro, em prisão preventiva por indícios de crimes que em alguns casos terão sido cometidos quando se encontrava no poder e em consequência desse estatuto), ocorre uma sucessão de factos que abanam definitivamente alguns dos pilares em que tem assentado o regime.

Saída da Troika

A 17 de maio terminou formalmente o período de assistência externa a Portugal. Para trás, ficaram três anos de uma austeridade sem precedentes, e de uma quebra de níveis de bem-estar ou de aumento da pobreza como não havia memória em democracia. Ficam também as contas mais em dia. Ficou um país diferente. Contudo, a troika mantém-se por cá, em controlo remoto. Além da prestação periódica de contas a que o país está vinculado, a margem de manobra de um futuro Governo será relativamente curta.


A escolha dos leitores na votação online

Detenção de Sócrates

se decidiram as coisas. O estouro do BES liderou até à véspera do fecho da votação, mas no final foi a prisão do ex-primeiro-ministro o facto mais votado pelos leitores do Expresso (36,48% contra 36,39%). Ou seja: uma diferença 0,09%, resultante de quatro votos. A balbúrdia na colocação de professores ficou em 3º, mas bem longe (6,31%).