Os indígenas têm medo do que aí vem. Medo por eles e pela grande floresta
Uma investigação do Expresso e da Amazónia Real para o Projeto Bruno e Dom, com o consórcio Forbidden Stories
junho 2023
Quando não há uma estrada, como se faz para partir ou voltar? Em Tapauá, as estradas mais estreitas chamam-se igarapés. As mais largas chamam-se rios.
Igarapés são braços de rio. Canais de água onde a floresta mergulha durante o longo inverno amazónico, entre outubro e maio, debaixo de uma chuva ininterrupta.
Juntos, rios e igarapés formam uma vasta rede hidroviária no meio da floresta tropical, inundando-a numa escala difícil de imaginar para um europeu.
Tapauá é um município quase do tamanho de Portugal, com 85 mil quilómetros quadrados, mas apenas 21 mil habitantes. É um lugar isolado. Ainda nenhuma rodovia liga por terra a sede de concelho com o resto do Brasil.
Vista do céu, a vila de Tapauá, o único centro urbano do município, é um deserto minúsculo de casas num gigante oásis.
Tudo em redor é água e floresta.
O município fica no sul do estado do Amazonas e faz fronteira com o trecho do meio da BR-319, uma faixa lamacenta de 405 quilómetros naquela que foi uma das mais ambiciosas estradas construídas pela ditadura brasileira na década de 1970.
Os militares quiseram ligar as capitais dos estados do Amazonas e da Rondônia, dando corpo a uma política nacionalista debaixo do slogan “integrar para não entregar”.
A grande floresta teria de ser colonizada para não cair nas mãos do inimigo.
Mas o único inimigo visível e capaz de oferecer resistência, a própria floresta, tornou o trecho do meio da BR-319 intransitável, fustigado por intermináveis vagas de aguaceiros numa superfície cercada por dois grandes rios, o Purus e o Madeira.
Em 1988 já o alcatrão tinha sido levado pela torrente.
A BR-319, perto da vila de Realidade, com as áreas junto às suas bermas desmatadas
A BR-319, perto da vila de Realidade, com as áreas junto às suas bermas desmatadas
De Manaus a Tapauá, a capital do Amazonas, o comum é fazer 1200 quilómetros de viagem serpenteando para sul no rio Purus durante 60 horas num barco-hotel; ou, na volta para Manaus, serpenteando para norte, durante 35 horas, a favor da corrente.
O isolamento tem ajudado a manter a Amazónia intacta aqui. A distância e a dificuldade de acesso para tratores e camiões funcionam como uma barreira contra invasores que queiram conquistar terra ao mato.
Uma equipa conjunta do Expresso e da Amazónia Real, uma agência de jornalismo de investigação sem fins lucrativos com sede em Manaus, veio a Tapauá ter com Raimundo Amaral — o Amaral, como todos o conhecem — devido à ameaça que existe se esse isolamento terminar. Para escutarmos, guiados por ele, o que os indígenas do município querem dizer-nos sobre como veem o futuro do seu território ancestral se existir, de novo, uma estrada de alcatrão.
Amaral, de 56 anos, é um antigo carpinteiro que se apaixonou pela causa dos povos nativos da Amazónia.
Ele faz lembrar Bruno Pereira, o ativista que foi morto há um ano, com um jornalista britânico, Dom Phillips, numa zona remota do Vale Javari, mais para ocidente, perto da fronteira com o Peru, durante um trabalho de terreno para um livro de Dom sobre como salvar a Amazónia.
Foi por Bruno e por Dom que, na realidade, viemos. Para continuarmos o trabalho que o nosso colega britânico estava a desenvolver, numa perspetiva alargada sobre a maior floresta húmida do mundo.
Viemos integrados no Projeto Bruno e Dom, uma iniciativa do Forbidden Stories, um consórcio internacional fundado para que jornalistas de investigação se juntem para terminar o que outros, por serem perseguidos ou mortos, deixaram inacabado.
Em julho de 2022, no final do governo de Jair Bolsonaro, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, o Ibama, uma agência federal, emitiu uma licença ambiental prévia para pavimentar o trecho do meio da BR-319.
Bolsonaro anunciara antes disso, em 2019, que o projeto ia mesmo acontecer.
A expectativa de haver asfaltamento levou, só por si, a que a área anual desmatada em redor da estrada mais do que duplicasse de 215 km² em 2020 para 479 km² em 2022. O mesmo que todo o território do Principado de Andorra.
Já em 2023, com Lula da Silva de volta ao cargo de presidente, o projeto de reconstrução da rodovia foi incluído nas prioridades do seu governo, que o encara como “vital”.
O novo presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, admitiu em março à BBC Brasil que o seu instituto, munido com o poder de veto, pode ainda suspender a licença, “dependendo das recomendações que foram feitas” entretanto pelo Ministério Público, “se forem acatadas”.
A estrada está eminente, mas ainda pode ser travada.
A BR-319 tem uma extensão de 877 kms entre Porto Velho e Manaus
A BR-319 tem uma extensão de 877 kms entre Porto Velho e Manaus
Começámos a viagem de carro, desde Porto Velho, capital da Rondônia, estado a sul do Amazonas, até Realidade, uma povoação erguida na berma da BR-319 por forasteiros atraídos pelo sonho da estrada.
Daí saímos de manhã de um igarapé que passa por baixo da BR, o igarapé Realidade, a bordo de uma voadeira, o nome que aqui dão às lanchas de casco de metal, chegando já para o jantar, quando o rio Ipixuna, aonde navegámos quase todo o tempo, se encontrou finalmente com o rio Purus, em frente à vila de Tapauá, numa ribanceira descarnada de floresta.
A essa hora, no bairro flutuante que foi crescendo em frente à vila, no encontro das águas negras do rio Ipixuna com as águas brancas do rio Purus, as crianças voltavam para casa de rabeta. Canoas motorizadas. Iam vestidas com o uniforme da escola e navegavam sozinhas, sem a companhia de um adulto.
Bairro flutuante da vila de Tapauá
Bairro flutuante da vila de Tapauá
No lusco-fusco, centenas de casas flutuavam na margem direita do Ipixuna.
No rio não há, como em terra, o conceito de propriedade privada.
À medida que foram imigrando das comunidades ribeirinhas para o único centro urbano da floresta, em busca de oportunidades, as famílias pobres de Tapauá construíram e ancoraram as suas moradias de madeira sobre jangadas feitas de troncos de Assacú, uma árvore que flutua e não apodrece, sem terem de comprar um lote ou pagar uma renda que nunca iriam conseguir suportar.
À nossa passagem, de porta aberta, barcos-igrejas acolhiam os fiéis evangélicos depois de mais um dia de pesca.
Bruno e Amaral, o nosso ponto de contacto, conheciam-se. Ambos trabalharam na Fundação Nacional do Índio, a Funai, e ambos foram afastados durante o governo de Bolsonaro.
Há sete anos Amaral regressou para viver na vila de Tapauá, a sua terra natal, já muito depois de ter começado a trabalhar com indígenas, quando em 2002 foi fazer um serviço de carpintaria numa aldeia indígena Paumari, no lago Marahã, para sul, no município de Lábrea, e acabou a morar com eles durante mais de ano e meio.
A relação dele com o povo Paumari tornou-se tão boa que a Funai contratou-o como piloto de barcos num projeto de demarcação de novas terras indígenas.
“Não consegui mais fazer outra coisa a não ser trabalhar em prol dessa população, pela qual tenho um carinho enorme.”
Em 2012, foi nomeado responsável do Serviço de Gestão Ambiental e Territorial da Funai, o Segat, no Médio Purus, abrangendo quatro municípios do sul do estado Amazonas, incluindo Tapauá.
Amaral estava a morar em Lábrea quando foi enviado para a sua vila natal para mediar um conflito. O plano era permanecer apenas duas semanas em Tapauá.
“A população indígena aqui do município se reuniu e disse: olha, a gente não quer outra pessoa mais para trabalhar connosco.”
Ele então ficou.
Mas com o governo Bolsonaro, as coisas “desabaram” dentro da Funai. Teve dois chefes militares, um a seguir ao outro, que implicaram com ele. Com o último, havia assédio moral. Ameaças.
“Ficava me mandando áudio por WhatsApp, às 10, 11 horas da noite. Acho que ia para os bares, enchia a cara e aí falava um monte de besteira.”
Esse chefe acabou despedido. Mas também ele, Amaral, foi dispensado.
A Funai trocou a função que desempenhava por outra que só podia ser ocupada por um militar ou por um concursado — um funcionário público do quadro permanente. Soube da sua própria saída quando estava de férias, em janeiro de 2021.
Raimundo Amaral, ou apenas Amaral, ex-funcionário da Funai
Raimundo Amaral, ou apenas Amaral, ex-funcionário da Funai
“Eu sempre falava para as lideranças indígenas o seguinte: a minha relação com vocês vai muito além de profissional-indígena. A gente criou uma relação de amizade e de respeito, eu acho que deu para perceber isso. Então, mesmo afastado da Funai, continuei apoiando a população indígena, defendendo os direitos deles.”
Meses depois, em julho de 2021, Amaral passou a trabalhar para o Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazónia, o Idesam. Esta organização da sociedade civil faz parte do Observatório BR-319, uma plataforma de análise científica e intervenção cívica criada em 2017 para “exigir medidas prévias mínimas” que garantam a redução do impacto sobre a floresta do asfaltamento no trecho do meio da estrada, antes de haver luz verde do governo federal para a obra.
Segundo um artigo publicado originalmente em 2021 por uma dúzia de cientistas no Die Erde, o jornal da Sociedade Geográfica de Berlim, “os impactos da BR-319 vão muito além do desmatamento que pode se espalhar ao longo de cada trecho da rodovia, como ocorreu com outras rodovias amazónicas. Um impacto muito maior resultaria da BR-319 por conectar cerca de metade do que resta da floresta amazónica do Brasil ao “arco do desmatamento”, ao longo das bordas sul e leste da floresta, onde a grande maioria do desmatamento da Amazónia brasileira ocorreu até agora”.
Com a estrada, avisam eles, o desmatamento vai chegar ao coração ocidental da grande floresta, onde ela continua preservada.
Os cientistas que assinam o artigo, incluindo Philip Martin Fearnside e Lucas Ferrante, dois investigadores do impacto da BR-319, alertam que “depois que as estradas são construídas na Amazónia, os eventos que se seguem estão, em grande parte, fora do controlo do governo”.
Apesar do otimismo do estudo de impacto ambiental publicado em 2021 pelo Departamento Nacional de Infraestruturas de Transportes, o DNIT, sobre os efeitos da construção do trecho do meio da BR-319, onde as áreas protegidas que rodeiam a estrada são descritas como um “cinturão verde” capaz de proteger a floresta, não tem havido recursos suficientes para fiscalizar.
Existem seis unidades de conservação e 10 terras indígenas no município de Tapauá, que ocupam 44% do seu território.
Sinais alarmantes começam a surgir, no entanto, mesmo antes de a obra de pavimentação da estrada ter começado.
A Floresta Estadual (FES) de Tapauá, que abrange uma área por onde passámos quando descemos o rio Ipixuna, perdeu 1830 hectares em 2022, segundo um balanço feito pelo Observatório BR-319.
Embora seja uma perda pequena para a dimensão desta floresta protegida, com 881 mil hectares de extensão, isso corresponde a um aumento no ritmo de desmatamento de 891% no intervalo de um ano, fazendo dela uma das 10 unidades de conservação mais desmatadas em toda a Amazónia brasileira no ano passado.
E há outros sinais.
Na área de influência da BR-319 monitorizada pelo observatório, foram desmatados 3678 hectares de floresta dentro de 29 terras indígenas durante 2022. Mais do que a superfície de Macau. Um valor recorde.
Uma terra indígena é, formalmente, uma área protegida pela constituição brasileira. Só pode ser pisada pelos indígenas que lá vivem e pelos seus convidados. E os indígenas não abatem a floresta. Precisam dela em pé.
Se o estado não consegue evitar desmatamentos em unidades de conservação, como será então em áreas não protegidas?
Mais de metade das florestas no município de Tapauá são públicas e não têm nenhum uso atribuído. Estão deixadas à sua sorte. São um grande atrativo para os grileiros, criminosos que usurpam a floresta, produzindo documentos falsos e enviando homens armados, para desmatar e vender depois a terra a criadores de gado e agricultores.
“Existe uma consolidação do crime organizado que tem fomentado essas atividades, tanto de grilagem, como extração de madeira ilegal e também de mineração”, diz Lucas Ferrante, doutorado em biologia e em ecologia que investiga o desmatamento em torno da BR-319 enquanto cientista da Universidade Federal do Amazonas.
Por isso estamos aqui, a quase 100 quilómetros da berma da BR-319 mas ainda dentro da sua área de influência, onde o impacto da estrada pode fazer sentir-se sobre a floresta.
Na vila de Tapauá, fora do universo indígena, os ribeirinhos balançam entre o lado bom e o lado mau de terem uma ligação por estrada.
Vista da vila de Tapauá sobre o bairro de casas flutuantes no rio Ipixuna
Vista da vila de Tapauá sobre o bairro de casas flutuantes no rio Ipixuna
Na noite da nossa chegada, em terra firme, num largo com vista sobre o encontro das águas do Purus e do Ipixuna, vários amigos falavam numa esplanada em frente a uma rodada de cervejas sobre o que é viver aqui.
Os doentes graves e urgentes têm de ser evacuados para Manaus num hidroavião que a autarquia freta. Em contrapartida, na vila só trabalham quatro polícias. O serviço é pouco. Os criminosos não têm por onde fugir.
“Os antigos não querem de jeito nenhum que a estrada abra, porque vai vir assaltante, vai vir ladrão, vão fazer as pessoas de refém”, diz o prefeito do município, Gamaliel Andrade, um pescador eleito em 2020 pelo Partido Social Cristão (PSC), de ideologia evangélica e conservadora. “Já para o jovem é um sonho o cara sair de Tapauá de manhã e à tarde estar em Manaus ou em Porto Velho.”
Quem quer fazer dinheiro acaba por falar a favor do alcatrão.
Tapauá não tem uma economia diversificada, mas depende do que vende para fora. Peixe, mandioca, açaí, castanha. “Mais de 60% do peixe que chega na capital do estado do Amazonas vem de Tapauá”, diz o prefeito.
A única fábrica de castanha do Brasil no município foi criada em 2019 por Leonardo Baldissera Santos, um empresário vindo do estado de Santa Catarina.
Baldissera Santos aproveitou a circunstância de a sua família ser dona de duas propriedades florestais em Tapauá com 213 mil hectares para lançar um negócio agroextrativista, a Abufari — Produtos Amazónicos.
A empresa dedica-se a colher, processar e exportar castanhas do Brasil a partir de duas fazendas, Abufari e São Sebastião, onde vivem 450 pessoas que trabalham para essa produção. E compra ainda castanhas de outros mil recoletores, espalhados por 12 comunidades à beira rio.
A castanheira do Brasil, ou Bertholletia excelsea, também conhecida como castanheira do Pará, é uma árvore que chega a ter 50 metros de altura. Nas margens do Ipixuna e do Purus, as suas copas pairam por cima de todas as outras.
“Eu entendo que a BR-319, seria muito benéfica porque reduziria muito o custo de transporte”, acredita Baldissera Santos. “Onde há estrada, há progresso. Por mais que seja uma estrada que corte a Amazónia, ela é perfeitamente viável do ponto de vista ambiental, levando-se em conta medidas também de preservação do meio ambiente. Foram feitos vários estudos para viabilizar a BR-319. Se esses estudos fossem implementados na sua totalidade, haveria condições, sim, de criar uma estrada ambientalmente correta.”
Se tudo for feito como vem no papel.
Mas será possível evitar que, fora do papel, na grande floresta, a estrada se converta numa espinha de peixe?
Amaral faz a ponte com o povo Apurinã de Tapauá. Os apurinãs têm duas terras indígenas demarcadas no município: no igarapé São João, à beira da vila, e no igarapé Tauamirim, a três horas de voadeira para norte.
Os apurinãs de Tauamirim querem ser ouvidos.
Os apurinãs são um povo do rio Purus. Acreditam em Tsora, que é Deus, o criador de tudo, e que vêm de uma terra sagrada onde eram imortais e para onde irão regressar.
A grande floresta húmida é a sua Terra Média, o reino dos humanos. Estão dispersos em pequenas comunidades formadas nas margens altas de igarapés que ligam com o rio.
Deixaram de estar sozinhos no século XIX, quando começou a exploração de borracha nos seringais do sul do Amazonas. Muitos seringueiros vieram de outras regiões para as margens do Purus.
Os descendentes dos seringueiros e os indígenas passaram a coabitar o rio, numa permanente readaptação. Em 2014, havia quase 10 mil apurinãs, não só no estado do Amazonas, mas também em Rondônia e Mato Grosso.
O Purus é sinuoso e branco. Da nascente à foz é como ir de Lisboa a Kiev de barco sempre rodeado de floresta. Nasce no Peru e desagua ao fim de 3300 quilómetros no Solimões. É o seu último afluente, antes de o Solimões se tornar Amazonas, em Manaus.
Três horas a norte de Tapauá, subindo o Purus com um motor potente, acostámos na aldeia de São Francisco ainda de manhã.
Dezenas de apuriñas observavam-nos da margem inclinada.
Muitos olhos de crianças.
Chegada à aldeia de São Francisco, na Terra Indígena Apurinã do Igarapé Tauamirim
Chegada à aldeia de São Francisco, na Terra Indígena Apurinã do Igarapé Tauamirim
A terra indígena do igarapé Tauamirim ia ter uma festa. Uma kenuru, na língua apurinã. Terminara o ano letivo na pequena escola comunitária, e os pais e avós queriam celebrar.
Uma parte deles estava também a chegar de outros lados. Os quase 200 apurinãs das três aldeias da terra indígena iam pernoitar juntos para cumprir um ritual de dança e música, inalando awire (rapé) e mascando katsoparu, uma folha semelhante à coca, capaz de os manter acordados até de manhã.
O cacique da aldeia, Marino Batista, veio receber-nos. Trazia na cabeça um saporenta, uma faixa sobre a testa. Além de chefe de aldeia, ele é também o cacique geral da terra indígena. E fala em nome de todos.
No alto da margem direita do igarapé, passadas duas ou três pequenas clareiras com casas assentes sobre esteios e sem paredes, Marino sentou-se num terreiro largo onde a festa ia acontecer. Pronto para contar o que o preocupava.
“Antigamente, a água era bem limpa. Agora, está tudo barrento.”
O cacique teme pelo igarapé Tauamirim. É dessa água que os apurinãs e os animais da floresta bebem. E é nessa água que pescam.
Marino está convencido de que a mudança na água do igarapé tem a ver com a estrada. E quer ser consultado pelo governo sobre esse e outros assuntos relacionados com a BR-319.
Aldeia de São Francisco, na Terra Indígena Apurinã do Igarapé Tauamirim
Aldeia de São Francisco, na Terra Indígena Apurinã do Igarapé Tauamirim
“A BR-319 é muito longe, mas a nossa preocupação não é com hoje”, diz Marino. “É daqui para a frente. Porque através da BR-319 vão entrar mais agricultores, mais fazendeiros, madeireiros, caçadores. Um dia vai trazer problemas.”
Segundo o cacique, veio uma equipa do DNIT, o departamento de infraestruturas de transportes, apresentar a estrada. “Trouxeram a planta. Disseram que vai ser bom. Vai ser asfaltado. Vai ter passagem para os animais. Que vai ter uma corda lá em cima para o macaco passar.”
Mas não ouviram a opinião dele. “Nós estamos à espera que alguém converse connosco.”
À luz da lei brasileira, a consulta prévia dos povos indígenas é obrigatória.
O igarapé Tauamirim cruza toda a terra indígena.
A área demarcada é um retângulo de 96 mil hectares encostado ao Parque Nacional Nascentes do Lago Jari. Ela termina nas costas da vila de Tapauá, por terra, no lado oposto do Purus, a cinco quilómetros de distância do centro urbano.
Marino Batista, cacique geral da Terra Indígena Apurinã do Igarapé Tauamirim
Marino Batista, cacique geral da Terra Indígena Apurinã do Igarapé Tauamirim
Há um ramal, uma estrada secundária, que está a ser construída entre Tapauá e a BR-319. “Isso está trazendo algumas modificações na água do igarapé”, denuncia o cacique.
Esse ramal é ilegal. Apesar de se inspirar na ideia de uma estrada estadual planeada, a AM-366, ela ainda não foi aprovada e não tem licença emitida.
Uma apurinã da terra indígena Água Preta/Inari que coordena a Federação das Organizações e Comunidades Indígenas do Médio Purus, a FOCIMP, Sandra Batista, diz que o impacto desse ramal é ainda maior na terra indígena de São João, que fica mais próxima da sede de concelho.
“Há alguns anos, houve uns igarapés que foram aterrados, por causa do ramal da AM-366. E aí secou a água e acabaram os peixes”, lamenta Sandra. “A coisa piorou demais. Ficou difícil para pescar.”
O problema arrasta-se há anos. Em agosto de 2020, um cacique apurinã de Tapauá que chegou a coordenar a FOCIMP, Waldemiro Silva, escreveu uma denúncia ao Ministério Público.
O lote C da BR-319 que Waldemiro refere na carta corresponde a 52 quilómetros de estrada, imediatamente a seguir ao trecho do meio, para norte, em direção a Manaus, entre os quilómetros 198 e 250.
Em dezembro de 2020, meio ano depois de a carta-denúncia ter sido enviada, o DNIT contratou um consórcio de empresas para fazer a obra de reconstrução desse lote C sem ter pedido estudos de impacto e sem haver uma licença ambiental prévia.
O ramal ilegal de Tapauá que tenta seguir o traçado da AM-366 continuou, contudo, à margem da discussão pública.
O ramal ilegal que tem estado a ser construído entre Tapauá e a BR-319
O ramal ilegal que tem estado a ser construído entre Tapauá e a BR-319
No papel, a previsão é que a AM-366 ligue a BR-319 a Juruá, a 400 quilómetros de distância de Tapauá, para nordeste, em direção à Colômbia, passando por cima do rio Purus.
É por aqui que o acesso à Amazónia se vai expandir para oriente.
Segundo Amaral, o ramal começou a ser feito entre as décadas de 1970 e 1980, sendo depois retomado em 2014. “Aí eu vim para cá com o pessoal da polícia ambiental e a gente interditou o trabalho.”
Quando o município relançou mais uma vez a obra, em 2016, desviou então o traçado para poder contornar a área de Tauamirim. “Mas se olharmos para o mapa, ainda vemos a estrada original dentro da terra indígena”, diz o ex-funcionário da Funai.
“O ramal está sendo construído por fazendeiros locais com o encorajamento da prefeitura de Tapauá, com o uso de máquinas da prefeitura”, escreveram os cientistas Lucas Ferrante e Philip M. Fearnside num artigo publicado na Amazónia Real uma semana depois da carta de Waldemiro.
“Ouvimos vários relatos em Tapauá sobre um acordo com fazendeiros na margem da BR-319 para que eles construíssem um ramal na direção oposta para encontrar com o ramal que está sendo construído a partir de Tapauá”, revelaram.
Waldemiro partilhou, para esse artigo, várias imagens do desmatamento feito dentro da terra indígena de São João, junto à sede de concelho, para a construção da estrada ilegal.
O cacique queixou-se de que os apurinãs recebiam ameaças. Tinham muito medo de visitar as áreas onde as árvores estavam a ser derrubadas.
Quase três anos depois, na nossa paragem em Tapauá, disseram-nos que só faltam 30 quilómetros para que os dois ramais se unam.
Estas preocupações ficaram de fora do relatório de impacto ambiental (RIMA) divulgado publicamente pelo governo em 2021 e que antecedeu a emissão da licença ambiental prévia no ano passado pelo Ibama, para a obra poder começar. Há uma única referência à AM-366, como parte de uma rede de estradas secundárias: “Esta expansão proporcionará um desenvolvimento das atividades rurais e florestais destas cidades e dos demais municípios da região”.
O que estará a acontecer no terreno e por que é que a versão dos indígenas não consta do relatório de impacto ambiental sobre a BR?
“A consulta tem de ser antes que as coisas aconteçam, porque o errado sobre a BR-319 é não terem sido consultados”, diz Sandra. “Na verdade, até vieram aqui, mas disseram que não tínhamos muitas opções, porque aceitando ou não, ia sair a pavimentação. A mulher que veio com a DNIT falou que a questão das invasões de terra não vai trazer impacto, porque hoje já tem muita invasão.”
Só estariam a travar o vento com a mão.
Sandra Batista, coordenadora da Federação das Organizações e Comunidades Indígenas do Médio Purus
Sandra Batista, coordenadora da Federação das Organizações e Comunidades Indígenas do Médio Purus
Sandra e Amaral, o ex-funcionário da Funai, são um casal. Estão os dois na mesma luta: defender os indígenas.
“Conversando com as lideranças, a gente começa a entender factos que quem está de fora às vezes não entende”, diz Amaral. Como com a contaminação da água. “Tem um igarapé chamado Água Branca, cujas nascentes ficam do outro lado da BR-319, que vem desaguar no igarapé Tauamirim.”
Além disso, segundo ele, “no governo passado, no tempo do prefeito anterior de Tapauá, foram aterrados os igarapés para a construção do ramal da AM-366”. “Os caras meteram o trator e jogaram terra dentro de todos os igarapés, para a estrada passar por cima. Quando dá uma chuva grande, a parte de cima transborda e aí aquela sujeira é jogada toda para as aldeias indígenas.”
No município de Tapauá, aparentemente, só os apuriñas estão preocupados.
O prefeito Gamaliel Andrade não vê o ramal como um problema. Pelo contrário. Para o político local, “com isso, a BR 319 vai ajudar muito o município com exportação”. “É um sonho para o estado do Amazonas e também para o povo tapauense.”
Mas e o povo apurinã?
Celebração dos apurinãs no terreiro da aldeia de São Francisco
Celebração dos apurinãs no terreiro da aldeia de São Francisco
O progresso, como a BR-319 é encarada pelos seus defensores, não parece atrair os indígenas. Não têm desejo de exportar. Na terra indígena, como explica o cacique Marino, não há necessidade de dinheiro porque não há onde gastar. “Pegamos peixe, caça, açaí. Aqui fazemos festa e ninguém paga. Aqui nós estamos de graça, todo o mundo colabora.”
Por isso, o cacique preocupa-se: “Se a BR-319 for asfaltada, quem vai sofrer são os meus parentes”.
Dependem apenas da água e da floresta.
“Daqui para frente, se continuar assim, acaba. Nossa riqueza, nosso remédio, nossa caça, nossa madeira. Se a nossa floresta morrer, nós morremos também.”
Na licença ambiental prévia emitida para a BR-319, o Ibama exige um programa de “vigilância territorial” em que “agentes ambientais indígenas Apurinã” terão de ser ensinados a patrulhar o seu território. Não há nenhuma referência a outros meios de controlo.
O estado brasileiro quer pôr os indígenas a fazer o que já fazem. Sozinhos e por sua conta e risco.
Apurinãs durante a celebração com folhas de palmeiras de buriti
Apurinãs durante a celebração com folhas de palmeiras de buriti
De manhã, depois da longa noite de celebração, os homens desceram até à beira rio, seguidos por uma longa fila de crianças.
Trouxeram as folhas secas de palmeira buriti que usaram durante o ritual. Um grupo pequeno foi numa canoa depositá-las no igarapé, como oferta.
Devolver à natureza o que a natureza dá.
“Realidade” soa a nome inventado, mas não é. A designação do lugar veio de um curso de água que passa debaixo do trecho do meio da BR-319, a 590 quilómetros de Manaus e a 290 de Porto Velho, em Rondônia. O igarapé Realidade.
Forasteiros vindos de outros estados do Brasil transformaram dois quilómetros de estrada numa rua.
Novas ruas desdobraram-se a partir da berma e desde 2019 Realidade é sede de um distrito, o equivalente a uma freguesia. Faz parte do município de Humaitá, que encosta com o extremo ocidental do município de Tapauá, de onde viemos.
Em 2021 a vila já tinha sete mil habitantes, segundo um relatório do Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getúlio Vargas.
Realidade cresceu da ilusão sobre o futuro da estrada. Enquanto não houve ilusão, não houve Realidade.
Durante muito tempo, foi um simples ponto na estrada. Havia residentes, mas poucos e dispersos.
Em 1972, quando Maria de Fátima Santana se instalou com a família, vinda de Cuiabá, no estado de Mato Grosso, havia apenas a floresta e um rasgo de terra.
“O meu pai foi o primeiro”, conta. A família Santana chegou quando a “firma” ainda construía a estrada. Maria de Fátima tinha nove anos. Um primo da mãe dissera-lhes que havia muita terra na Amazónia. “E foi atrás de terra que o meu pai veio.”
O pai morreu aos 97 anos, há poucos meses. Era quebrador de castanha do Brasil e foi disso que viveram. “Quebrávamos castanha e cortávamos seringa.”
Na vila de Realidade, os cartazes de apoio à reeleição de Bolsonaro ainda não tinham sido retirados seis meses depois da derrota
Na vila de Realidade, os cartazes de apoio à reeleição de Bolsonaro ainda não tinham sido retirados seis meses depois da derrota
O lugar só ganhou dimensão quando se tornou um acampamento de migrantes sem-terra entre 2005 e 2008.
Foi uma época de grandes expectativas.
Em 2005, o primeiro governo de Lula da Silva iniciou a reconstrução da estrada.
As obras foram suspensas pouco depois por imposição do tribunal. Não tinha sido feito um estudo de impacto ambiental, apesar de ser obrigatório por lei.
A então ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, aproveitou o momento e anunciou que a estrada teria de obter uma licença ambiental prévia.
Para os pioneiros de Realidade, a fé da estrada ser reconstruída foi redobrada durante o governo de Bolsonaro. Até ele sair e Marina, com Lula de novo no poder, regressar ao mesmo lugar.
Tudo voltou a estar em aberto.
Hoje Realidade é o faroeste, numa versão sul-americana.
Faltam passeios e alcatrão nas ruas. Quando está seco, faz pó. Quando chove, o pó vira lama. E quando a terra alaga, as caixas de esgoto transbordam.
Os edifícios mantêm uma espécie de condição provisória. Parecem inacabados. Lojas de roupa, supermercados, oficinas de reparação automóvel, armazéns agrícolas e restaurantes funcionam como sinais de uma guerra em curso contra a floresta, que vai sendo empurrada para longe.
Vila de Realidade num domingo ao final do dia
Vila de Realidade num domingo ao final do dia
O nosso hotel é um quadrado de terra ensopado em água, com uns quartos à volta.
De manhã, um grupo de motoqueiros preparava-se para sair para norte e vencer o trecho do meio montados em motos todo-o-terreno.
António Bertola, o dono do hotel, de 55 anos, chegou há uma década, durante a presidência de Dilma Rousseff, quando “ela falou que ia asfaltar aqui”, mas não asfaltou.
O governo de então deu início a obras de manutenção do trecho do meio, intensificadas a partir de 2016, ainda que isso não envolvesse a sua pavimentação. “No tempo das águas, o hotel fica muito fraco, porque não passa nada na estrada.”
Como muitos outros residentes de Realidade, Bertola tem as suas próprias plantações nos arredores da vila. Banana, café. “Aqui tem bastante café plantado.”
O governo estadual tem apoiado a produção. Em abril, o Instituto de Desenvolvimento Agropecuário e Florestal Sustentável do Amazonas (Idam) ofereceu máquinas para secar e descascar café à associação de moradores, que reúne 60 produtores de café.
Atualmente, a população está a virar-se também para o gado. Isso acontece “de há dois anos para cá”, segundo Bertola. Primeiro veio o gado de corte, para abate, da raça Nelore, “e agora está começando a entrar o leiteiro”, de raça holandesa.
Novas terras conquistadas à floresta têm sido adquiridas por recém-chegados ao distrito.
André Bispo com a sua família recém-chegada a Realidade
André Bispo com a sua família recém-chegada a Realidade
Há três meses que André Bispo, de 29 anos, se mudou com a mulher e a filha de Presidente Médici, na Rondônia, a 700 quilómetros de distância.
No alpendre da sua nova casa, numa esquina da rua principal de Realidade, a própria BR-319, ele aplainava um tampo de madeira quando o interrompemos. Era parte de um conjunto de mesas que o casal pretendia usar num snack-bar que vão abrir, como um negócio secundário.
André gosta de mexer com gado. “Com o dinheiro que uma pessoa vende lá na Rondônia uma chácara de dois hectares, ela compra aqui quase 90 hectares.” O vaqueiro já comprou o seu quinhão de terra, mas ainda tem de colocar uma cerca antes de comprar gado.
Quando a cerca estiver pronta, André mandará vir um camião com o gado lá da Rondônia, para desembarcá-lo então na BR-319 junto ao caminho que vai dar à sua propriedade e deixar as vacas fazerem o resto do trajeto a pé. “Solto o gado ali e levo tocando. Porque nessa época [de chuvas] não entra camião nem camioneta.”
Se correr bem com André Bispo, outros virão. E com eles, virá uma reação em cadeia.
O gado precisa de terra livre, sem floresta. Para derrubar a floresta, são necessárias máquinas. E as máquinas têm de ter quem as compre e ponha em uso: os grileiros. São eles que vendem depois a terra.
Mas primeiro é preciso haver caminhos para chegar à floresta.
Esse é o efeito espinha de peixe.
Um estudo do Observatório BR-319 identificou, a partir de imagens de satélite, mais de 4700 quilómetros de ramais já construídos até 2021 a partir da estrada. Um terço deles surgiu durante os governos de Michel Temer e Bolsonaro.
No município de Tapauá, em 2016 só havia três quilómetros de estradas secundárias ilegais. Quatro anos depois, já elas percorriam 102 quilómetros.
A relação com a desflorestação é direta. Em 2021, foram desmatados 177 hectares na Floresta Estadual de Tapauá, quase três vezes mais do que no ano anterior e um prenúncio para os galopantes 1830 hectares de 2022.
Quando fomos e voltámos de Tapauá, na subida e descida do rio Ipixuna, atravessámos a floresta estadual.
Comunidade no rio Ipixuna, que passa na Floresta Estadual de Tapauá
Comunidade no rio Ipixuna, que passa na Floresta Estadual de Tapauá
Nas comunidades onde fomos acostando, não pareciam saber da existência da unidade de conservação, apesar de viverem nela.
Falaram-nos de grileiros que têm aparecido junto de moradores ribeirinhos, rio Ipixuna acima, obrigando-os a vender as suas casas, sob ameaça de morte.
“O parque nacional [das Nascentes do Lago Jari] faz limite com a floresta estadual. Juntos formam uma área fechada. Qualquer desmatamento que tiver aqui, vai ter de ser dentro de uma unidade de conservação”, explica Amaral.
O ex-funcionário da Funai e atual colaborador do Idesam vê como natural um salto tão acentuado nos números de 2022. “Os caras viraram loucos para desmatar o que desse enquanto estavam tendo o apoio do governo federal.”
Aproveitaram a capa protetora de Bolsonaro.
O clima de impunidade foi reforçado pelo facto de nos últimos cinco anos, desde 2019, a FES Tapauá não ter tido um gestor no terreno. “Está abandonada, não tem ninguém”, lamenta Amaral.
“Nós já vemos o crime organizado se fixando nessas áreas”, diz Lucas Ferrante, o cientista da Universidade Federal do Amazonas que investiga os impactos da BR-319. “Essa abertura de ramais, que servem para dar acesso a esses criminosos, tem causado desmatamento dentro das unidades de conservação.”
Se cai a árvore protegida, como não cai a árvore que não tem proteção?
Num domingo à tarde, uma pequena gincana de motocrosse fazia levantar lama num descampado de Realidade.
Um grupo de jovens mulheres assistiam à competição dos pilotos e das suas máquinas, cavando mais a terra a cada volta. Ao lado, um carro de tuning debitava uma batida eletrónica para dançar.
Tirar da natureza o que ela tem para dar.
Cidade de Manaus, com a cúpula do teatro Amazonas à direita
Cidade de Manaus, com a cúpula do teatro Amazonas à direita
Manaus vive de costas para o rio. Quem passa de barco no encontro das águas onde o Rio Negro e o Solimões se juntam para formar o Amazonas, não dá pela cidade, apesar dos seus mais de dois milhões de habitantes. Talvez queiram esquecer como estão cercados por tanta água e floresta.
De um dos pisos altos da torre Sky Platinum, Plínio Valério, um dos três senadores que representam o estado do Amazonas no congresso nacional em Brasília, recebeu-nos no seu escritório, onde costuma estar às sextas-feiras, quando regressa da capital federal.
Lá em baixo, um bairro de casas com piscina tem vista sobre um retângulo de floresta. É o Condomínio Aristocrático. A grande malha urbana tem ilhas dessas para os amazonenses abastados.
Valério, de 68 anos, é um antigo radialista eleito senador em 2019 pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), o partido do antigo presidente Fernando Henrique Cardoso, para um mandato de oito anos, depois de ser sido vereador várias vezes em Manaus.
Tal como os outros dois senadores do Amazonas e a maioria dos políticos locais, Valério defende a BR-319.
Para o senador, a estrada já existe. O estrago foi feito há 50 anos.
“É mentira quando diz que vai derrubar árvore. Não derruba uma. Se derrubar, eu deixo de ser senador”, diz, embora admita poderem surgir problemas na área envolvente. “Você não pode é proibir uma população de milhões de pessoas de ter o direito de conhecer o Brasil por via terrestre.”
Manaus tem apenas duas estradas federais. Uma delas é a 174, que vai para norte até o estado de Roraima, e daí liga até à fronteira com a Venezuela. A outra é a 319.
A grande via de acesso da cidade sempre foi o Amazonas.
O rio é largo e fundo o suficiente para receber navios de grande porte, usados para a exportação dos produtos tecnológicos do polo industrial de Manaus. Eletrodomésticos, televisores, telemóveis, aparelhos de ar condicionado.
A indústria local beneficia de um estatuto de zona franca, concedido em 1967 para compensar o isolamento da região, e isso fez da cidade a quinta metrópole com o maior PIB do Brasil.
“O transporte fluvial é muito mais caro do que o terrestre”, adverte Valério. A reconstrução da estrada “beneficia a indústria e o comércio. Todos os custos vão cair.”
O senador Plínio Valério, no seu escritório de Manaus
O senador Plínio Valério, no seu escritório de Manaus
Essa perceção é, no entanto, contrariada por uma tese de doutoramento publicada em 2007 pela Universidade de São Paulo e citada várias vezes em estudos do Idesam sobre o impacto da BR-319: usar a estrada para escoar a produção de Manaus para São Paulo seria 19% mais caro do que no formato atual — de rio até Belém, no Pará, e depois de camião até São Paulo. E se a carga fosse transportada em porta-contentores diretamente até ao Porto de Santos, pela costa atlântica, seria 37% mais barato do que a modalidade mista de barco com camião.
O senador argumenta ainda com as centenas de pacientes mortos por falta de oxigénio nos hospitais de Manaus durante uma segunda vaga da pandemia da Covid-19, em janeiro de 2021: “Se essa rodovia estivesse boa, não tinha morrido tanta gente.”
Mas, mais uma vez, a ciência diz outra coisa. Um artigo científico publicado em maio deste ano por Ferrante e Fearnside no Journal of Racial and Ethnic Health Disparities afirma que o governo estadual do Amazonas tinha conhecimento “desde Novembro de 2020” de um potencial problema de insuficiência de oxigénio — mais de um mês antes da rutura de stock.
Esse artigo reproduz um banner enganador publicado pelo DNIT no Twitter anunciando que a BR-319, apesar de “ainda não pavimentada”, estava a fazer chegar oxigénio a Manaus, como alternativa a seis ou sete dias de barco.
No entanto, os camiões com oxigénio enviados pelo Ministério da Saúde através da BR-319 demoraram quase 100 horas a chegar à cidade, por causa da lama. Em contrapartida, se o oxigénio tivesse ido de balsa pelo Rio Madeira desde Porto Velho teria demorado entre 30 e 75 horas.
O senador admite nunca ter feito uma visita ao trecho do meio, nem nunca ter falado com o povo Apurinã de Tapauá. “Não preciso ir lá. Porque eu conheço a estrada. Já fui até o começo dela, fui até Manicoré.”
Valério crê que a situação dos indígenas é igual em todo o lado. Que a história se repete. “A mesma miséria que tem no meu município, tem em Borba, em Tapauá, em Manicoré. É a mesma situação. E os índios vivem na mesma penúria.”
Antes de sairmos, deu-nos um conselho: “Não ouçam só os dirigentes dos índios. Conversem com dois, três pajés. Vão conhecer a aldeia. Vocês vão ver morcego chupando o dedão de índio. Vão ver índio com frieira.”
São os cientistas que têm vindo a público, constantemente, contrabalançar o discurso dos políticos.
No laboratório da Nova Cartografia Social da Amazónia, um open space a funcionar no último piso de uma das escolas da Universidade do Estado do Amazonas, o antropólogo Alfredo Wagner olha com muita apreensão para o futuro. “Em 2022 a BR-319 tornou-se um epicentro da transformação da Amazónia”, com a intensificação do desmatamento na sua área de influência a partir do momento do anúncio da licença ambiental prévia.
Wagner, coordenador do laboratório, encara a estrada como um elemento capaz de acelerar e agravar um quadro de tensão e conflito social.
O antropólogo recorda o exemplo da BR-163 e do “dia do fogo” em agosto de 2019, quando um grupo de fazendeiros e madeireiros incendiaram de forma coordenada uma área de floresta junto dessa estrada, na bacia do rio Tapajós, no Pará.
“Eu acho que isso nos revela um absoluto descontrolo. Agora, será que o descontrolo é uma forma de controlo?”, pergunta Wagner. “Quando se trata de povos indígenas, descontrolar é uma forma de controlar?”
No Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), William E. Magnusson, um biólogo australiano especializado em biodiversidade a trabalhar em Manaus desde 1979, considera a região ocidental da BR-319 como a mais ameaçada neste momento na Amazónia.
Segundo Magnusson, as áreas secas da região a ocidente da estrada, as que não são alagadas durante o inverno, têm condições propícias para plantar soja e criar gado.
Criação de gado na berma da BR-319, entre Realidade e Porto Velho, mais para sul
Criação de gado na berma da BR-319, entre Realidade e Porto Velho, mais para sul
A existência de áreas protegidas, acredita ele, é a única medida capaz de reduzir a desflorestação. Mas não é uma solução simples. “Uma coisa é demarcar uma área e dizer: isto é uma reserva. Depois temos de ser capazes de a fazer cumprir. Se não for possível aplicá-la, então é escusado tê-la. E para isso é preciso chegar à população local. Se a população local não quiser conservar a área, ela não será conservada.”
Com isso vem outra necessidade: haver governação. Uma presença efetiva do estado nesses lugares. “Levar a governação até lá é barato. Mas é também muito difícil, porque os políticos em Brasília querem usar esse dinheiro onde há um monte de gente, porque é aí que vão buscar mais votos”, resume Magnusson.
Nada disto é novo. Era o que se dizia já no tempo da primeira presidência de Lula, quando o seu governo resolveu avançar com a BR-319.
A criação de reservas e a sua implantação ao longo da rota da rodovia é uma medida importante que evitaria o desmatamento”, escrevia Fearnside em 2006. “Ela precisa ser implementada antes que a estrada seja aberta e que os efeitos de expectativas de uma futura pavimentação corroam as possibilidades de criar tais áreas.”
Marina Silva, então ministra do Meio Ambiente, deu ouvidos aos cientistas. A maioria das áreas protegidas do município de Tapauá, incluindo o Parque Nacional Nascentes do Lago Jari e a floresta estadual, foram criadas entre 2005 e 2009, há uma década e meia.
O momento presente deveria corresponder ao futuro tal como foi idealizado então.
Mas e como evoluiu a governação?
Gamaliel Andrade, o prefeito de Tapauá, estava de passagem por Manaus quando conseguimos marcar uma entrevista com ele.
Estava rodeado de meia dúzia de assessores, todos homens, num escritório de rés do chão que parecia ser o seu local de trabalho habitual nas suas vindas constantes à capital do estado.
O político local assume que o próprio município tem estado envolvido na construção do ramal ilegal que preocupa os apurinãs.
“São aproximadamente 90 quilómetros de distância entre Tapauá e a BR-319”, diz, acrescentando que a autarquia já fez 26 quilómetros de estrada. “Hoje nós temos mais de 500 moradores nesses 26 quilómetros.”
Gamaliel contou-nos que ouviu falar que já está feita “uma boa parte” do ramal aberto do lado da BR-319 em direção a Tapauá, mas garantiu não ter conhecimento direto do assunto. “Eu não conheço essa região.”
O prefeito não tinha mais para dizer. Não conhecia, não sabia.
Lucas Ferrante, com quem tivemos uma conversa depois, recordou a investigação que ele próprio fez sobre esse caso. “Nós verificámos que aquilo lá são terras declaradas pelos próprios invasores. É um desmatamento recente. Não existem produtores”, diz o cientista. “O prefeito de Tapauá tenta passar pano, como se diz popularmente no Brasil, para viabilizar esse tipo de atividade.”
Mas e o governo do Amazonas, o que faz perante isto?
O secretário de Estado do Meio Ambiente do Amazonas, Eduardo Taveira, confessa-se preocupado com essa falta de governação no trecho do meio da BR-319.
Numa entrevista concedida na sede da secretaria de estado, a 300 metros do estádio Arena da Amazónia, Taveira descreveu a Floresta Estadual (FES) de Tapauá como uma unidade de conservação onde há “uma pressão de desmatamento”. Com a ajuda do próprio estado.
Segundo o secretário de Estado, o gabinete do prefeito de Tapauá emitiu licenças de autorização de uso da terra dentro da área da floresta estadual. “A prefeitura pode fazer concessões, desde que não seja em áreas estaduais ou federais”, diz Taveira. “Essas licenças foram canceladas e agora a gente está fazendo um monitoramento um pouco mais permanente com a equipa de gestores que cobrem essa área”.
Estas sobreposições são facilitadas pelo facto de o registo de propriedades rurais na Amazónia ser caótico.
Apesar de haver no Brasil um Cadastro Ambiental Rural obrigatório, para se poder entender se uma determinada propriedade está eventualmente sobreposta com uma unidade de conservação, e assim ajudar a salvar a floresta, isso pode ser contornado.
Além disso, até abril deste ano apenas 2% das propriedades rurais registadas no CAR tinham sido analisadas.
Na Floresta Estadual de Tapauá, o aumento exponencial no desmatamento aconteceu só depois de, em dezembro de 2020, uma portaria do governo federal ter passado a dar aos municípios o poder de regularizarem títulos de propriedade em terras de domínio público.
Para agravar o panorama, não há coordenação entre o governo federal, o governo estadual e os municípios. “A nossa determinação, de que o governador tem falado, é que a gente possa dar todas as garantias ambientais necessárias para evitar que a BR-319, que é um problema, seja um problema cada vez mais grave”, diz Taveira, “e que a gente possa investir nessa coordenação integrada, em especial com o governo federal, de termos mecanismos eficientes de monitoramento, de comando e controle para aquela área.”
Eduardo Taveira, secretário de Estado do Meio Ambiente do Amazonas
Eduardo Taveira, secretário de Estado do Meio Ambiente do Amazonas
Uma operação desencadeada em julho de 2022 pelas autoridades de Manaus levou à detenção de um indivíduo dentro da FES. Nessa ocasião, foi identificado o ramal ilegal que estava a ser aberto em direção a Tapauá.
Foi uma ação pontual.
“Chegar no monitoramento dessas áreas é extremamente difícil”, diz Taveira.
Depois de duas tentativas falhadas por terra, em que três carros ficaram imobilizados, os agentes foram de barco. “Obviamente, quando a gente passou pelo rio já foi dada a informação que uma equipa de fiscalização estava chegando no local”, recorda o secretário de Estado.
Tiveram tempo de fugir.
O governo estadual comprou, entretanto, um camião-tanque para poder fornecer combustível a helicópteros no trecho do meio, de modo a terem autonomia e passarem a ser usados em ações futuras.
Isso não vai ser suficiente. O secretário de Estado ocupa o cargo há quatro anos e não conseguiu até hoje ter equipas com uma presença superior a 15 dias no terreno.
No interflúvio entre o rio Madeira e o rio Purus, parte da floresta está mergulhada na água durante a época das chuvas
No interflúvio entre o rio Madeira e o rio Purus, parte da floresta está mergulhada na água durante a época das chuvas
Numa sexta-feira, no largo de São Sebastião, no coração antigo de Manaus, em frente ao teatro do Amazonas, um violonista tocava, um pouco desafinado, o hino do estado. Soava a uma despedida. Chegávamos ao fim sem conseguir unir todos os nós e já sem tempo para voltar à estrada.
Mas os apurinãs têm razão para ter medo.
Na grande floresta, contornando a lei, a espinha de peixe revela-se.
Pedimos uma entrevista com a ministra do Meio Ambiente, Marina da Silva, mas não houve disponibilidade dela a tempo da nossa reportagem.
Já de regresso a Portugal, tentámos questionar Lula da Silva, quando o presidente brasileiro veio a Lisboa numa visita oficial que coincidiu com as celebrações do 25 de Abril.
Nos eventos em que participou em Lisboa, Lula esteve sempre resguardado dos jornalistas, que foram mantidos à distância, e não mostrou abertura para duas ou três perguntas sobre a Amazónia, apesar de ter sido abordado por nós num elevador.
Na verdade, só tínhamos uma questão para Lula: por que fez da BR-319 uma das prioridades do seu governo?
Semanas depois, a 8 de maio, Gamaliel Andrade foi detido no Aeroclube de Manaus por agentes da Polícia Federal com 100 mil reais em dinheiro vivo, quando estava a embarcar num avião. O prefeito de Tapauá acabou por ser libertado horas depois. Segundo a imprensa local, as autoridades mantêm em aberto uma investigação, depois de terem recebido uma denúncia anónima sobre alegadas irregularidades cometidas por ele.
Ainda em maio, os moradores ribeirinhos e indígenas de Tapauá começaram a protestar contra a presença de uma balsa no rio Purus que chegou para fazer garimpo de ouro. A balsa recebeu uma licença do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas para operar, mas os manifestantes exigem a sua proibição.
Entre 1988, ano em que a BR-319 tornou-se intransitável, e 2022, a floresta amazónica brasileira perdeu 481 mil quilómetros quadrados, o equivalente ao tamanho de Angola e mais de cinco vezes o território de Portugal continental.
No estado do Amazonas, onde a floresta tem sido mais bem preservada do que noutros estados, 2022 foi um ano recorde: 2607 km² foram desmatados.
Texto de Micael Pereira
Fotografia de Alberto César Araújo / Amazónia Real
Vídeo de José Cedovim Pinto
Animação Gráfica de Carlos Paes
Infografia de Jaime Figueiredo
Design de Mário Henriques e Tiago Pereira Santos
Webdevelopment de João Melancia
Coordenação de Joana Beleza e Pedro Candeias
Direção de João Vieira Pereira
Texto de Micael Pereira
Fotografia de Alberto César Araújo / Amazónia Real
Vídeo de José Cedovim Pinto
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e Mário Henriques
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Direção de João Vieira Pereira
Expresso 2023