Rodrigo nasceu com uma malformação grave no crânio e na cara, que não foi detetada na gravidez. Ficou conhecido como o bebé sem rosto e deram-lhe poucos dias de vida. Hoje tem três anos e, com ajuda, já anda e começou a dizer as primeiras palavras

Texto Marta Gonçalves Fotos Ana Baião Vídeo José Cedovim Pinto

26 de dezembro de 2022

I

Asimplicidade do pedido para desenhar a sua família desaparece quando Fabiana se senta à mesa com os marcadores e a folha em branco. Haveria de demorar quase uma hora. Agarra na caneta bege e, com o cuidado do artista que leva anos a aperfeiçoar a obra de arte, a menina de sete anos arrasta a tinta pelo papel até formar um círculo. Será a cabeça da mãe: faz-lhe o cabelo a castanho, desenha a roupa e até uma mala. Depois é a vez de David, que não é o seu pai mas é o pai do seu irmão mais novo e também o homem que todos os dias cuida dela e brinca com ela. Quando termina, segue para o autorretrato. Com força, risca em espiral o seu cabelo; é a única com caracóis. Por fim, “o mano”: é assim que Fabiana fala sempre de Rodrigo. O rosto dele tem uma boca redonda em vez de um só traço arqueado em forma de sorriso. O meio triângulo que nela, na mãe e em David é o nariz não existe em Rodrigo.

Está sozinha no quarto. Volta a endireitar o corpo na cadeira e, num sussurro, anuncia envergonhada: “Já está”.

O irmão de Fabiana é o mesmo menino que, há três anos, ficou conhecido como “o bebé sem rosto”, que nasceu com uma malformação na cara e no crânio sem que nada tenha sido detetado ao longo da gravidez. “As malformações do seu filho são incompatíveis com a vida”, ouviu Marlene Simão, a mãe de 28 anos, logo nas primeiras horas de vida do filho. Passaram-se horas, dias, semanas e meses, chegou o primeiro aniversário, veio o segundo e festejaram todos juntos o terceiro em outubro. Rodrigo Ribeiro está vivo e ninguém sabe muito bem explicar como.

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Os olhos de Rodrigo nunca se abriram. Estão trancados com longas e negras pestanas, afastados do centro do rosto, descaídos. É cego. No lugar do nariz tem uma pequena saliência de alguma coisa que nunca acabou de se formar; na testa, estão dois canais, como narinas. Não é seguro que tenha olfato. É pela boca que respira. O palato é ogival e a dentição está alterada. Pelo gosto com que come arroz e pelas (algumas) caretas que faz de cada vez que lhe dão massa, supõe-se que Rodrigo tenha paladar. Ouve bem. Na cabeça, do lado esquerdo, o cabelo comprido esconde a falta de osso e uma “bolha” de meninge que está a superfície.

“A cara do mano é muito fofinha, gorducha e redonda. Os olhos são fechados, muito pequenos. A boca é redonda, muito aberta e também me dá graça porque ele pode fazer sempre assim”, descreve Fabiana enquanto bate com a mão na boca e imita um índio. E continua: “O nariz é pequeno, não é como o dos outros, e também não é redondo nem nada”.

FALA, ANDA, BRINCA, RI

Os gritos de Rodrigo começam assim que a música no carro pára. Nas mãos agarra o biberão com leite que vai bebendo na viagem entre casa, no Pinhal Novo, até à Dom Maior, a associação de Lisboa onde é diariamente acompanhado em fisioterapia, terapia da fala e terapia ocupacional. “Calma, Rodrigo, já vai.” Marlene volta a ligar o rádio e aumenta o som. Passam os dois muitas horas dentro do carro (pelo menos 80 quilómetros por dia, 400 por semana e mais de 1700 por mês). “Há qualquer coisa na música que o acalma”, explica a mãe. 

Fui ao mercado comprar café
E a formiguinha subiu para o meu pé
Eu sacudi, sacudi, sacudi
Mas a formiguinha não parava de subir

Rodrigo volta logo ao silêncio; com o pé, marca o ritmo da música e deixa-se estar. Olha pela janela do carro sem ver a paisagem do rio Tejo que parece correr e fugir.

Marlene no carro com Fabiana e Rodrigo

Marlene no carro com Fabiana e Rodrigo

“As crianças com doenças complexas são sempre uma incógnita. O Rodrigo tem uma malformação crânio-facial encefálica grave, mas tudo indica que vai ser capaz de se desenvolver muito melhor do que estávamos à espera inicialmente.” Cristina Lírio Pedrosa é pediatra do Centro Hospitalar de Setúbal e coordena a equipa intra-hospitalar de suporte em cuidados paliativos pediátricos. Por uma troca de última hora, não estava de serviço na noite em que Rodrigo nasceu. Conheceu-o logo nas primeiras horas de vida e tem-lo seguido desde então. “Inicialmente, não tinha grande parte da calote craniana e tinha uma parte, a que a Marlene chama a bolha, que ninguém sabe como não infetou. É praticamente impossível aquilo não infetar e, infetando, tem uma morbilidade e mortalidade altíssimas”, explica.

O menino desenvolveu também hidrocefalia, tendo sido submetido a uma cirurgia para controlar o crescimento da cabeça - a única intervenção a que foi submetido. Tem também epilepsia e um atraso no desenvolvimento. “Com a escassa terapêutica que tem, está perfeitamente estável e a ser muito bem cuidado e estimulado em casa e com as terapias. Se há coisa que não falta naquela casa é amor, que é o que precisam todos.”

Assim que abre a porta do carro e tira Rodrigo, os corpos de mãe e filho encontram o encaixe perfeito. Ele encosta a cabeça junto ao pescoço e apoia-se no ombro da mãe; ela, com o único braço livre, atravessa-o pelas costas dele. Há três anos que o colo de Marlene são as pernas de Rodrigo.

“Olá, olha quem está aqui.” A cabeça do menino desencosta-se de imediato à procura da origem do timbre que tão bem conhece. “Como estás hoje?”, questiona a mesma voz, agora a pouco centímetros de distância. E Rodrigo atira-se com confiança para o som com a certeza de que há um par de braços estendidos à espera. São de Tiago Melo, o terapeuta que o acompanha há mais tempo. “Isto é também um problema porque deixa de ter medo. E é preciso ensinar-lhe o que é perigo e o risco”, comenta o fisioterapeuta assim que entra na sala.

“Quando chegou, tinha muitas dificuldades em manter-se em pé apoiado ou encostado a uma superfície fixa e, neste momento, já o faz com alguma autonomia. O Rodrigo está deitado e se eu vou buscar uma coisa qualquer já se põe de joelhos, deita-se, vira-se e vai explorar as coisas que quer. Essa autonomia de exploração é talvez a principal coisa em que notamos melhoria. Depois, há um bom fortalecimento muscular e a aversão ao lado esquerdo do corpo está quase controlada”, detalha Tiago.

Passou as usar mais as mãos do que os pés para explorar. Ganhou força e autonomia. Nota-se que já conhece o corpo.

Item 1 of 5

Depois de alguns exercícios de repetição, de se levantar e de se sentar, abdominais e elevação da cintura, vem a parte que ele menos gosta. “Marlene, tem aí os ténis dele?”, pergunta o fisioterapeuta. Rodrigo nunca anda calçado, as meias e os sapatos deixam-no arreliado. Tiago calça-o. Enquanto começa no pé esquerdo, já Rodrigo arrancou a sapatilha branca e a meia do pé direito. “Ó, Rodrigo! Então?” E ele, sentado no colchão colorido, gargalha muito alto. É daquelas gargalhadas que enche uma sala. Sabe que fez asneira e gosta de a ter feito.

 Os elásticos suportam o peso de Rodrigo, Tiago prepara e monta a passadeira. “Vamos lá”, anuncia, enquanto o menino aproveita a elasticidade e salta alto-alto-alto como se voasse. “Ele não gosta nada disto”, avisa. E quando não gosta, Rodrigo grita e choraminga e, quando vence os outros pelo cansaço, volta a gargalhar.

“A parte de trabalhar a marcha apoiada, ou seja, sempre que o pomos na passadeira, com os elásticos, em que fica com o peso ligeiramente suspenso, é o que o deixa mais descontente. O brincar tem de fazer sempre parte da sessão. Conseguimos fazer coisas muito sérias dentro de uma brincadeira, tentar incluir uma brincadeira ou uma coisa que ele goste dentro de uma atividade complicada ou difícil”, diz Tiago. Com música, por exemplo, faz tudo com maior alegria.

Inesperadamente, Rodrigo está hoje a gostar de andar na passadeira. Não se sabe bem porquê, mas o menino caminha, caminha e caminha, a canção da formiguinha sai das colunas do telefone de Tiago e ele acerta o passo à batida. “Nunca fez isto tanto tempo.” A cantiga termina e os passos também. Grita, esperneia. Já não quer mais.

Andar é um objetivo, mas a palavra tem de ser usada com cuidado para gerir as expectativas de todos os que estão à sua volta. “Queremos que se consiga deslocar sozinho e em segurança, o que é diferente”, diz o fisioterapeuta. 

Ainda Rodrigo não largou o andarilho e continua sob as ordens de Tiago, já Catarina da Isabel espreita pela porta: “Olá, Rodrigo”. O menino esboça mais um sorriso: é mais uma voz que conhece bem. Hoje o tema da sessão de terapia da fala será a água. “Já vai dizendo algumas palavras, tem muita intenção comunicativa. Está numa fase de querer mostrar a sua voz, o que quer e não quer. Do ponto de vista da intervenção, é uma fase ótima para estimularmos competências”, refere a terapeuta.

“Dá cá”, diz Catarina à espera de resposta. Silêncio. “Dá cá”, insiste. Nada, nenhuma reação, Rodrigo está quieto. Outra vez: “Dá cá”. E, num impulso repentino, Rodrigo solta “Gá cá”.

Além da fisioterapia, a terapia da fala e ocupacional, Rodrigo é ainda seguido por uma equipa de reabilitação da cegueira da Santa Casa da Misericórdia e pela intervenção precoce. Esta é a única disponibilizada pelo Estado. “Comecei sem ter como pagar. Se era para fazer, íamos fazer”, recorda Marlene. Hoje o custo mensal ultrapassa os mil euros.

Rodrigo tem direito a uma Pensão Social para a Inclusão no valor de €130, enquanto a mãe, por prestar apoio, recebe mensalmente mais €110.“Há uma conta aberta em nome dele. Agora começamos a fazer rifas e cabazes para angariar mais algum dinheiro, fazemos as vendas nas redes sociais. Também recolhemos tampinhas, que vou buscar e entrego na Valorsul, que depois paga diretamente à Dom Maior.” Cada tonelada - equivale a cerca de seis sacos enormes, daqueles que habitualmente se encontram junto de edifícios em construção com o lixo da obra - é convertível em €350. Depois, há mais de uma dezena de pessoas que apadrinham Rodrigo através da associação “As Meninas da Suíça” e asseguram mensalmente cerca de metade dos custos terapêuticos.

“Não havendo terapias, o mais natural é acabar por perder algumas competências.” Rodrigo terá de continuar as terapias durante toda a vida, com adaptações em cada fase do crescimento. Parar significa regredir. “Vai perdendo força e depois, em vez de conseguir estar em pé agarrado ao sofá dez minutos, já só consegue sete, depois só cinco, depois dois e depois já não consegue”, sublinha Tiago Melo. O mesmo se aplica à fala. “Vai precisar sempre desta ajuda, porque com o desenvolvimento haverá sempre necessidade de adaptar a intervenção às necessidades”, acrescenta Catarina da Isabel.


II

Pediu uma torrada e um galão, ainda tinha tempo. A indução do parto marcada para aquela tarde de segunda-feira faria de Marlene mãe pela segunda vez dentro de algumas horas. Mas agora não a iam apanhar desprevenida. “Na gravidez da Fabiana fui para lá sem comer e não ia fazer o mesmo”, conta. Não foi preciso indução: rebentaram-lhe as águas ali mesmo, no café em frente a sua casa. Ligou a David. “Acabei de comer tranquila, não tinha dores, nada. Fui tomar banho a casa, mudei de roupa e depois é que fui para o hospital.”

Às 22h54 de 7 de outubro de 2019 nasceu Rodrigo.

“Foi parto normal, um momento tranquilo.” Quando lhe puseram o filho no peito, algo pareceu estranho. “Disse ao David que o miúdo não tinha nariz”, diz Marlene. Desvalorizaram. “Comecei logo a stressar com ela, claro que o miúdo tinha nariz. Ela começou a chorar e os médicos tiraram o bebé de cima dela”, continua David. A médica pegou no Rodrigo ao colo, virou-o e ficaram frente a frente. “Eu olhei para a médica e ela estava em choque.” Chamaram o pediatra. David saiu do lado de Marlene e aproximou-se da caminha onde o filho estava deitado. “Olhei para ele e de pouco mais me lembro.” Saiu porta fora. 

“Parecia cena de filme, porque ouvia tudo, mas não entendia nada. Voltei a entrar e as enfermeiras meteram-se à minha frente, mas nenhuma me agarrou.  Estavam só a dizer ‘cuidado, o pai vai aí, cuidado, o pai vai aí. Não deixem o pai ver o miúdo.’” Minutos depois, entrou no bloco de partos Artur Carvalho, o obstetra que acompanhara toda a gravidez de Marlene na clínica Ecosado, a poucos metros do Hospital de Setúbal. Olhou para Rodrigo e disse qualquer coisa que hoje já ninguém sabe precisar.  

“Eu estava encostado a um canto, chegou-se ao pé de mim, pôs-me a mão no ombro e disse: ‘Peço desculpa, mas não vi’.” O corpo de David descaiu, escorregou até encontrar o chão. Artur Carvalho foi-se embora e David ficou ali, medicado, até se acalmar. É no corredor de casa, novamente encostado à parede, que relembra a história do dia em que se tornou pai.

Ecografia de Rodrigo em julho de 2019

Ecografia de Rodrigo em julho de 2019

David não aceita ser filmado, é a custo que deixa que as suas palavras fiquem registadas num gravador. Nunca se sentiu confortável com a exposição e, desde que o filho nasceu, menos ainda. Há uma série de medos, ansiedades e receios que ficaram com tudo o que lhes aconteceu. À noite deixou de conseguir dormir com as voltas que a cabeça dá, recusa-se a entrar em hospitais e evita acompanhar o Rodrigo às terapias: fica angustiado com todo o aparato que rodeia o filho. Toma medicação e tem ataques de pânico.

Artur Carvalho ainda chegou a ir ter com o casal ao quarto uma vez. Desde aí, nunca mais o viram. “Nós devemos ser os últimos, mas não fomos os primeiros. Temos conhecimentos de vários casos relacionados com o doutor Artur”, diz David.

ESTE É UM CASO ESPECIAL

Pum
Pum 
Clap
Clap
Pum

Os pés de Rodrigo nunca param, as mãos também não. Procura sempre algo onde tocar, onde bater e quanto mais barulho fizer, melhor. Mantém um ritmo. Quer perceber onde está e fazer ouvir-se. Pum Pum, com o pé descalço na parede do elevador. Clap Clap com as palmas das mãos. Pum, outra vez com o pé. 

Marlene conhece de cor o caminho até à pediatria do Hospital de Setúbal; passou lá demasiados dias, já lá regressou tantas outras vezes. O elevador fica ao fundo de um corredor quase deserto, sem luz. As portas abrem-se. Fica no último andar.

Pum
Pum 
Clap
Clap
Pum
Plim.

As portas voltam a abrir-se, a viagem foi direta ao destino sem entradas de novos passageiros. Pelas janelas entra a luz de um dia que tão depressa está solarengo, ora teima em ser chuvoso. “É por ali”, indica Marlene. 

Foi por fotografia que a pediatra Cristina Lírio Pedrosa viu Rodrigo pela primeira vez. Quando acordou já tinha várias mensagens sobre o caso que durante a noite foi internado na unidade de neonatologia. “O que me chamou à atenção ainda no bloco de partos foram as faciais porque é o que dá nas vistas”, recorda. “Já tinha visto várias crianças com malformação facial, mas este é um caso especial, com múltiplas malformações associadas. É claro que impressiona qualquer pessoa que não esteja à espera de ver e, por isso, os relatos que tenho do choque inicial justificam-se perfeitamente”, continua.

Quando a pediatra conheceu o casal, havia uma série de perguntas sem resposta. A única certeza naquele instante  - e até hoje, na verdade - é que o bebé apresentava um quadro clínico estável. Os pais queriam conhecer o filho. “Fui eu, a minha mãe, o David e a minha sogra”, relembra Marlene. “Só eu e a minha sogra ficámos. O David e a minha mãe não conseguiram.” O choque inicial afastou-os do menino que há nove meses desejavam. “Sinceramente, eles descreveram o Rodrigo e não fiquei em choque. Ou melhor, não me fez diferença as diferenças dele.”

Item 1 of 5

Rodrigo passou rapidamente da neonatologia para os cuidados paliativos pediátricos. Uma zona do hospital um bocadinho diferenciada, onde crianças e famílias fazem dos quartos uma pequena casa. Podem trazer molduras, as visitas prolongam-se um pouco mais. “No começo, quanto mais exames fazíamos, mais coisas descobríamos”, diz a pediatra. “Parecia ter tudo para correr mal. Mas, vá-se lá saber como, tem corrido muito melhor do que qualquer um de nós esperava.” Cristina vinca três vezes a palavra “muito”.

Ninguém sabia como cuidar daquele bebé que nascera sem rosto. Tal como os pais, também os médicos aprenderam a alimentá-lo, a dar-lhe banho ou a trocar uma fralda. Aquilo que já tinham feito centenas de vezes com outros recém-nascidos nem sempre fazia sentido com Rodrigo. O internamento durou cerca de um mês e gradualmente os pais foram levando o filho para casa. Primeiro, um dia, depois uma noite, a seguir um fim de semana. Até que chegou o momento. 

“Não tivemos alta assim ‘olhem, vão ter alta amanhã’. Foi diferente, a equipa dos paliativos, pôs-nos à vontade, sugeriu-nos a alta quando nos sentíssemos preparados e conhecêssemos o nosso filho o suficiente para lidar com ele em casa. Depois ganhei aquele vício de estar em casa e estava bem. E viemos.” Desde então Marlene não trabalha e vive em função dos horários, consultas e marcações de Rodrigo. “No banho, temos de ter mais cuidado com aquela parte esquerda da cabeça, com a bolha. Não se pode tocar e temos de fazer a limpeza. A alimentação foi mais tarde que o habitual. Bebia leite, mas tínhamos medo da reação às papas e às texturas da comida. Experimentamos com uma papa e correu super bem.” Come tudo, é preciso algum cuidado porque a boca é também o meio de respiração. Consistências como a de um iogurte, por exemplo, exigem outro cuidado. “Ele sempre foi muito despachado.”

NÃO HOUVE CRIME

Tânia Contente fez-se madrinha de Rodrigo. É ela que conta a história assim: foi por brincadeira quando Didi - como os mais próximos lhe chamam - ainda estava na barriga de Marlene. Foi ela a primeira voz e rosto a denunciar o caso, dez dias após o nascimento. “Nunca pensei levar isto para o campo público, obrigaram-me”, diz. Procurou ajuda e resposta junto do hospital, da Ordem dos Médicos e apresentou queixa no Ministério Público. “Parece que, às vezes, temos de recorrer a tratamento de choque para sermos ouvidos. Não devia acontecer, mas obrigam-nos a isto.” Quando apresentou o nome do obstetra que acompanhou a gravidez do afilhado ao organismo que tutela os médicos, Tânia ficou a saber que havia queixas há pelo menos oito anos e os casos tinham sido arquivados.

“Um médico obstetra que não tem competência para fazer ecografias e faz, para mim, só tem um nome: negligência. Pura e grosseira”, acusa. Artur Carvalho foi suspenso da Ordem, impedido de exercer funções. Recorreu da decisão e perdeu. Este ano, entregou os papéis para a reforma.

O processo-crime foi arquivado pelo Ministério Público, que considerou que não houve crime por parte do obstetra. Ou seja, como as malformações de Rodrigo não foram provocadas pelo médico, este não era culpado. Decorre agora o processo-civil, em que a família exige uma indemnização de cerca de 300 mil euros. Até à publicação desta reportagem, ainda não havia decisão.

“Foi arquivado porque não há lei. Vai seguir para o civil, para chamar à responsabilidade todas as pessoas que são de direito e temos de ter isto bem ciente: todos são culpados”, insiste a madrinha de Rodrigo. “Para mim não faz sentido, não é fácil compreender o arquivamento. E só quando tudo isto acabar da parte dos tribunais é que acho que vou conseguir digerir tudo, até agora ainda não sei como fazê-lo”, acrescenta Marlene.

O CAMPEÃO

“Rodrigo, Rodrigão
És o nosso campeão”

A cantiga foi inventada numa das muitas sessões de terapia. É repetida vezes sem conta por todos, tornou-se a música dele.

“Ele gosta muito”, conta David. Nos primeiros meses de vida, Rodrigo distraía-se com o som e ficava tão vidrado naquela que era uma das poucas formas de percecionar o mundo que se esquecia de respirar. “Era complicado porque ficava sem ar, os lábios ficavam roxos… Agora já não acontece. Fica entretido, quer ouvir música constantemente. Na Internet conseguimos ver tudo e, sobretudo desde que ele nasceu, vejo muitas pessoas com problemas que cantam, tocam música e têm uma vida saudável. Conseguem ser pessoas independentes. Eu acredito nisso: que um dia ele será independente.”

“Dá beijinho”, pede Marlene quando recebe Rodrigo ao colo no final de mais uma sessão terapêutica. “Dá lá”, volta a dizer. O menino encosta a boca aberta à bochecha da mãe. Tem tanto de amoroso e beijoqueiro como de malandro. E quando se farta de mimo ou não lhe fazem as vontades, procura com mãos os cabelos compridos. “Aí, Rodrigo! Já te disse que não se puxa cabelos”, ralha a mãe. 

“Ele a mim não puxa”, atira Fabiana, com vaidade. 

Marlene habituou-se aos olhares. Evita levar o filho para locais com muita gente, mas apenas por uma questão de saúde.  Como diz David, já todos sabem como e quem é o Rodrigo. “Não causa grande impacto. Todos me perguntam pelo Didi.” Fabiana é a que fica mais incomoda. Olha desconfiada para cada pessoa que passa na rua e fixa o rosto do irmão por mais do que breves segundos. Ela tranca a expressão e responde da mesma forma: não pára de as olhar até que a curiosidade em Rodrigo morra. 


III

- Não vou responder. Já sei o que me vai perguntar.

Pela primeira vez, Marlene nega uma resposta. Fica agitada na cadeira, mexe no cabelo e insiste que não vai responder. “Não sei. Não quero responder a essa pergunta. Nunca respondi.”

A pergunta que fazemos à mãe, repetimos a David. “A gravidez do Rodrigo não foi planeada. Falámos milhões de vezes, até porque namorávamos há pouco tempo e decidimos que tínhamos de assumir.” Hesita e mede cada palavra que em seguida lhe sai da boca. “A realidade é complicada, quanto mais para uma criança com problemas de desenvolvimento. Se soubesse que ele nasceria com problemas, eu e a Marlene tínhamos de falar.”

Marlene e David não se conheciam há muito tempo quando o teste marcou positivo. Cruzaram-se pela primeira vez num restaurante, fizeram conversa e a vida aconteceu. Hoje vivem para Rodrigo. Os planos que tinham de comprar casa estão em pausa. Não fazem ideia de quando vão ser retomados.

“Aprendi com o Rodrigo a não planear muito. Já só penso no dia de hoje e só lhe posso dar as condições para ele evoluir. Ele manda, ele é que sabe, é o que ele conseguir. O que fizer é uma vitória para nós, só temos de dar o conforto e as condições para ele evoluir”, diz Marlene.

David dorme de dia e trabalha à noite na Autoeuropa , mas não é por isso que não está presente nas terapias de Rodrigo. “Faz-me impressão, mexe-me com o psicológico, faz-me reviver tudo”, diz. Desde o nascimento do filho que evita hospitais, basta ver o filho a tirar sangue e tem de sair. “É a Marlene que faz isso tudo com ele.”

“ADORAVA QUE FOSSE PARA A ESCOLA”

Rodrigo pode ir à escola. Nada o impede.

Os médicos têm receio que outra criança com uma brincadeira mais brusca possa fazer alguma ferida na “bolha”. Os pais também. “Uma vez o Afonso parecia que lhe ia dar um beijinho e tentou ir lá tocar.” Fabiana denuncia de imediato um amiguinho mais curioso que se aproximou do irmão com as mãos prontas a tocar onde não devia.

“Adorava que ele fosse para eu voltar a trabalhar e recuperar a minha rotina também.” Por agora, por segurança, não é uma opção. “O meu filho não vai para uma escola qualquer, tem de ser apropriada para ele. Eu não quero impedi-lo de lidar com crianças normais, não é isso. Trata-se de ele ter o tempo dele”, acrescenta David.

Fabiana com Rodrigo ao colo, acompanhados por Marlene

Fabiana com Rodrigo ao colo, acompanhados por Marlene

Assim que David se senta e pega o filho ao colo, Rodrigo aconchega-se. Bastam uns minutos para adormecer. É sempre assim, dizem. É mais refilão com mãe, que o leva de um lado para o outro todos os dias, que o deixa nas terapias e o acompanha aos médicos. Só tem o pai algumas horas por dia. É para o mimo e para a brincadeira.

“Nem sei explicar quem é o meu filho. Honestamente, sei lá”, diz David. “É super bem-disposto, está sempre pronto para cantar, para brincar, adora música, adora fazer barulho”, continua Marlene. “Todas as pequenas coisas que ele faz de novo, para mim, já é uma felicidade. Para mim e para qualquer pai de uma criança com necessidades especiais. Uma criança normal, com desenvolvimento normal, é normal andar, bater palmas, chamar papá. Para nós é uma festa.”

Acompanhado por uma equipa multidisciplinar no Hospital de Setúbal e no Hospital Dona Estefânia, em Lisboa, que inclui neuropediatria, neurocirurgia, genética, neuroimagiologia, oftalmologia, otorrino, entre outras, o caso de Rodrigo continua sem explicação concreta. Porque nasceu assim? Ao certo, ainda não se sabe explicar. Como vai ser daqui em diante? Outra resposta que ninguém tem.

Embora a parte estética seja a mais visível, foi aquela que até ao momento menos preocupou os médicos. Ainda assim, já foi começado o estudo para reconstruir o rosto de Rodrigo. “Quando exatamente não sei dizer, mas está a ser estudado. É uma situação complexa e não é uma coisa que veem agora as imagens e decidem operá-lo para a semana. Não faço ideia quando vão operar o menino”, garante Cristina Lírio Pedrosa.

Rodrigo está estável, superou todas as perspetivas que os médicos lhe traçaram: as pernas estão mais fortes, as pequenas palavras saem mais articuladas, os assobios estão mais audíveis. “Espero que se mantenha esta ótima evolução, espero um dia passá-lo para a consulta de cuidados paliativos de adultos, como já passei alguns miúdos”, diz a pediatra. “O Rodrigo é uma incógnita.”

Aqui há dias, quando o Expresso concluía esta reportagem, o telemóvel vibrou. O nome de Marlene apareceu no ecrã. “Recebeu um vídeo”, lia-se na notificação. Abrir mensagem, descarregar, play. “Vamos, para cima. Bora! Boa! Que lindo!”, ouve-se. A imagem é na sala da fisioterapia, o protagonista é Rodrigo que se levanta sozinho e fica de pé por alguns segundos antes de se voltar a sentar sem qualquer ajuda.

Há seis meses nada disto acontecia.

DOCUMENTÁRIO

Créditos

Texto Marta Gonçalves
Fotografia Ana Baião e Arquivo da família
Vídeo José Cedovim Pinto
Animação gráfica Carlos Paes
Webdesign Tiago Pereira Santos
Apoio web João Melancia
Coordenação Joana Beleza, João Carlos Santos e Pedro Candeias
Direção João Vieira Pereira

Expresso 2022