Fabrice fez 3788 quilómetros para chegar a Ceuta. Bidills fez 3295. Fazem parte das oito mil pessoas que entraram a 17 de maio numa cidade que separa a Europa de Marrocos e por isso fazem parte das oito mil pessoas que uns consideram ser invasoras, fazem parte das oito mil pessoas que outros consideram ter o direito a procurar uma vida melhor entre nós, fazem parte das oito mil pessoas que uns consideram que devem ser deportadas porque sim, fazem parte das oito mil pessoas que outros consideram que devem ser acolhidas na Europa com dignidade, fazem portanto parte das oito mil pessoas que são consideradas à luz das considerações políticas, humanas, sociais, ideológicas e afins de cada um. Mas Fabrice e Bidills também têm as suas considerações: “Estamos tristes com vocês”. Tristes connosco, os europeus. Esta é a história deles - e não só. O Expresso em Ceuta

Maio 2021

Marta Gonçalves
Texto e vídeos
Tiago Miranda
Fotos

Fabrice fez 3788 quilómetros para chegar a Ceuta. Bidills fez 3295. Fazem parte das oito mil pessoas que entraram a 17 de maio numa cidade que separa a Europa de Marrocos e por isso fazem parte das oito mil pessoas que uns consideram ser invasoras, fazem parte das oito mil pessoas que outros consideram ter o direito a procurar uma vida melhor entre nós, fazem parte das oito mil pessoas que uns consideram que devem ser deportadas porque sim, fazem parte das oito mil pessoas que outros consideram que devem ser acolhidas na Europa com dignidade, fazem portanto parte das oito mil pessoas que são consideradas à luz das considerações políticas, humanas, sociais, ideológicas e afins de cada um. Mas Fabrice e Bidills também têm as suas considerações: “Estamos tristes com vocês”. Tristes connosco, os europeus. Esta é a história deles - e não só. O Expresso em Ceuta

Maio 2021

Marta Gonçalves
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Tiago Miranda
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IAfrica black as white

F abrice ainda não teve coragem de ligar para casa. Não quer nem consegue contar aos pais que o irmão mais novo morreu há dois meses a caminho de Ceuta com ele. “Não os quero preocupados, não quero que me peçam para voltar. Quero e vou chegar à Europa.”

Chegou. Está cá. Na Europa. Ceuta é Europa mas ele ainda diz “vou chegar à Europa”. Porque para ele mas não só para ele Ceuta não é Europa. É uma transição. Mas uma transição para um lugar que ele não sabe onde é. Porque não sabe para onde vai.

No descampado junto à praia, onde cartões servem de colchão e mantas velhas penduradas nos ramos das árvores tentam ser telhados, o futuro de Fabrice é uma interrogação. Mas o presente também: “Veem como estamos a viver?”.

Tem 25 anos e saiu dos Camarões, a 3788 km de Ceuta. Passou por Marrocos, a última paragem até aqui. Encontrou isto: “Não temos comida, não há água. Nada. Eu sei que quando se entra num país sem documentos a primeira coisa a fazer é ir à esquadra da polícia pedir para ser registada a entrada e sermos enviados para um campo de acolhimento. Eu sei isso e fiz isso mas mandaram-nos embora. Estamos aqui, não nos podemos lavar, não podemos comer.”

É à saída do centro da cidade, na praia Del Trampolim, que Fabrice e quase todos os homens da África Subsaariana que passaram a fronteira estão a viver. Dormem encostados aos muros de uma fábrica dessalinizadora ou por baixo dos grandes blocos de cimento à beira-mar. São literalmente buracos.

Chegou a Marrocos há vários meses, saiu de casa em 2018. “Vim a andar.” Foram tantos dias que Fabrice já só é capaz de contar o tempo da travessia em meses. “Foram muitos, oito só para entrar na Argélia. Num sítio levaram-nos para a prisão e tentaram extorquir dinheiro à nossa família porque achavam que éramos ricos. Deixaram passar uns três meses. Como não receberam dinheiro, fomos libertados.” A seguir continuaram a andar. “Noutros países trabalhámos em quintas de tomate ou na construção para termos dinheiro para comer e seguirmos o nosso caminho.” Fabrice fala da rota até Marrocos sempre no plural: ele e o irmão mais novo. O que morreu e os pais ainda não sabem.

Bidills, 32 anos, é o vizinho de Fabrice em Ceuta, dorme num outro buraco entre os blocos de cimento. “Estou muito triste com vocês.” Aqui o “vocês” são os europeus. “Por que razão a Europa paga a Marrocos para fechar as fronteiras?” A seguir repete a pergunta. E depois: “Nós somos um negócio para Marrocos e para a Europa. Os marroquinos nunca me deixaram passar e no dia 18 até a polícia me veio dizer que a fronteira estava aberta. Claro que foi a minha oportunidade e não sei o que se passou, mas não tenho dúvidas de que nós somos uma peça do negócio e isso deixa-me triste.”

Bidills nasceu na Libéria (a 3.295 km de Ceuta), numa aldeia onde muito poucos aprendem a ler e escrever. “Fui eu que fiz isto.” Bidills aponta para um mural onde se lê “Africa black as white”. “Nós somos iguais aos brancos, temos as mesmas capacidades, só não temos as mesmas oportunidades.” Pintou, escreveu e desenhou a frase por onde pode. “Em Marrocos não nos veem como humanos. Preferem dar comida a um gato vadio do que a um africano. Prefiro a morte a voltar. Dormíamos à noite e às 23h a polícia aparecia e levava-nos para outra cidade. Não se dorme em Marrocos.”

Enquanto Bidills conta as histórias que viveu do outro lado da fronteira juntam-se outros homens. Acenam com a cabeça como quem concorda com o que está a ser dito e uma vez por outra alguém reforça com palavras. “Tudo o que estão a contar é totalmente verdade”, garante Youssef, tem 18 anos, é dos Camarões. "Estávamos a viver na floresta, escondidos. Por exemplo, algo que custasse 50 dirhams [11 euros] os marroquinos vendiam aos africanos por 150 [33 euros]. Marrocos é um inferno”, acrescenta Fabrice.

Youssef veste uma camisola azul onde se lê em grande “Ceuta”. Tem-se sentido febril, com dores de cabeça. “Não é covid-19. Quer dizer, não sei porque não fiz o teste, mas acho que não é.” Quase todos os que entraram foram submetidos a testes mas não Youssef. “Disseram-me para ir ter com a Cruz Vermelha mas eles estão ao pé da fronteira. E aí é que não me apanham.”

Os dias custam cada vez mais a passar. Jogam à bola para manter a cabeça ocupada. Vão ao centro da cidade e depois vêm, vão e vêm, vão e vêm, é assim que passam o tempo. “Se paramos ficamos com muito tempo para pensar e isso é perigoso”, diz Fabrice. Foi ao oitavo dia deles em Ceuta que os conhecemos: oito dias sem respostas, cama, banho ou comida certa. A tensão aumenta. E depois vai aumentar ainda mais.

IIO fator Cristiano Ronaldo

A fronteira de arame farpado, rocha e betão patrulhada por polícias fardados e de rosto trancado indica que ali termina Ceuta e também a Europa. Daí em diante tudo é Marrocos. Mas a Europa parece ter acabado há pelo menos três quilómetros depois de ficar para trás um placard publicitário com o brasão e o nome de Ceuta que dão as boas-vindas à cidade ou assinalam a despedida dela consoante o sentido e é ali também que consoante o sentido começam ou acabam os prédios, as palmeiras e as grandes lojas de cadeias comerciais - e naqueles três quilómetros entre o princípio e o fim da cidade e o princípio ou o fim de Marrocos já só há pequenas lojas de rua com hijabs na montra, cafés com chá marroquino e um bairro de ruas demasiado estreitas.

O local onde se bebe “o melhor café de Ceuta” é gerido por Noah e fica naqueles três quilómetros de transição. “Disto não bebem lá no centro”, diz ele enquanto esconde a beata atrás das costas. “Proibido fumar”, lê-se a vermelho num cartaz afixado na parede de azulejos. “Servi mais de cem pequenos-almoços em cada um daqueles dias, eram tantas pessoas que tive de as expulsar porque era impossível cumprir o distanciamento”, continua enquanto se aproxima da estrada e aponta para a praia do Tarajal. “Além, na praia, nem a areia se via, só cabeças.”

Ceuta tem uma fronteira que atravessa a cidade de uma ponta à outra, um espigão em cada lado: a norte o de Benzú e a sul o do Tarajal. As primeiras pessoas passaram ainda na madrugada de 17 de maio (segunda-feira) pelo espigão a norte mas com o nascer do dia as passagens começaram a ser feitas a sul. As imagens desse dia mostravam uma mancha de pessoas que entram pela água, trepam a vedação e entram a pé na praia do Tarajal. Basta sair do areal em Marrocos, dar uns passos ou umas braçadas a nadar, contornar o espigão, virar à esquerda, mais uns passos ou braçadas em direção a terra. Já está. Estão em Espanha, chegam à Europa.

“Havia imensas pessoas a entrar a nado, outras vinham a pé porque a praia não tem muita profundidade e vinham a andar tranquilamente, outras passavam juntinhas ao espigão e nem se chegaram a molhar, outras ainda, como estava mesmo muito cheio, treparam a cerca. O espigão nem se via com tanta gente que ali estava”, explica Isabel Brasero, porta-voz da Cruz Vermelha espanhola naquela região. “Nunca tinha visto algo assim. O máximo de pessoas que tinham chegado a Ceuta num só dia foi de mil e poucas. A quase todos os que agora chegaram aqui foi prometido que iam depois atravessar para a península, a outros disseram que vinha cá o Cristiano Ronaldo.”

A trafulhice do futebol foi dita sobretudo aos mais novos. Duas semanas depois da entrada de milhares de pessoas em Ceuta e ainda há 800 crianças e jovens a cargo da Cruz Vermelha alojados em armazéns que foram adaptados. O próximo passo é agilizar o reagrupamento familiar. “Os menores estão bem de saúde, a maioria chegou muito bem e estão agora a receber os cuidados básicos. Muitos pais e mães marroquinos estão à procura dos filhos porque, como achavam que só vinham ver uma estrela de futebol, muitos nem avisaram os pais.”

A fronteira na praia do Tarajal
Ao lado, a passagem por terra está fortemente patrulhada por polícias da fronteira e militar espanhóis e marroquinos
Em Ceuta a fronteira atravessa toda a cidade

É junto a um passadiço da praia que conhecemos S. - apenas assim porque, além de ainda não ter chegado à idade adulta, não quer ser reconhecido. “Se a minha mãe me apanha dá cabo de mim.” A mãe ficou em Marrocos e não sabia que naquele dia o filho não iria voltar. S. tem 17 anos e só conhece o país onde nasceu. “Um dia quero ir ao Tomorrowland” e logo em seguida enumera uma série de nomes: “David Guetta, Martin Garrix, Sebastian Ingrosso… Conhecem?”

Aproxima-se um pouco mais, curioso por ouvir o que as outras pessoas têm para dizer mas sobretudo quer é falar. “Vi a ‘Casa de Papel’, ‘Prision Break’ e ‘Guerra dos Tronos'.” Nunca está sossegado e enquanto fala balança o corpo de um lado para o outro, muda de posição, encosta-se, depois vai para o corrimão do passadiço. Mas de repente sente-se suficientemente confortável para começar a contar a sua história. “Vim porque quero trabalhar, porque quero ganhar dinheiro.” Quer mostrar o trabalho que fazia em Marrocos. “Fui eu que arranjei isto tudo”, diz enquanto no telemóvel rola um vídeo do antes e depois de uma sala decorada com tecidos nas paredes e no tecto.

Um carro de patrulha da polícia passa na estrada - por este dias tem sido muito comum - e S. cala-se. Sabe que os marroquinos têm sido o principal alvo das autoridades espanholas, sobretudo menores - que são depois levados para centros de acolhimento ou, no caso dos adultos, devolvidos a Marrocos.

— Não tens medo? - perguntamos.
— Não. Sou um bom corredor. Corro mais do qualquer um deles.

Tem um plano. E depois de se certificar que ninguém o está a gravar, levanta o braço e aponta para os navios de carga que se avistam no porto. “Ali.” O plano é o de quase todos: entrar num dos barcos, atravessar o Mediterrêneo e chegar ao continente Europeu pelo sul de Espanha porque para eles Ceuta ainda não é bem a Europa.

“A maioria das pessoas que entrara na cidade desta forma não quer continuar em Ceuta. Todos querem seguir para a península. Ceuta é apenas um lugar de passagem”, explica Isabel Brasero.

Junto ao Porto de Ceuta, vários menores esperam por quem lhes traga comida. Guardam-na. Sempre que a polícia pára, fogem e escondem-se

É raro ver subsaarianos e marroquinos juntos, cruzam-se quando vão buscar comida aos voluntários que ali passam e pouco mais. Se os primeiros ficam perto da praia e à vista de todos, os segundos são mais recatados. Escondem-se na floresta: trepam encostas, escondem-se nas árvores, entre os arbustos e em locais impossíveis de imaginar. Só são vistos se se quiserem mostrar, quando precisam de ir buscar comida à cidade ou se notam a chegada dos voluntários que param junto à estrada com refeições para distribuir. Aparecem por instantes, voltam a subir a montanha e desaparecem. Três homens seguem em fila, um leva o saco das compras na cabeça - assim é mais fácil fazer a subida. Uns segundos bastam para se desviarem do caminho de alcatrão. Onde estão? É como se não existissem.

Num buraco numa colina estão escondidos oito irmãos, o mais novo com 17 anos. Não querem dizer o nome, por estes dias a polícia espanhola tem corrido atrás maioritariamente dos marroquinos para os levar de novo para Marrocos.

Têm o mesmo plano de S. - ir num navio até à península. “Não sei se é hoje, amanhã, daqui a uma semana, um mês ou um ano”, diz o único dos oito irmãos que fala espanhol.

Dentro do Príncipe

Completamente fora do centro de Ceuta está o bairro do Príncipe, onde os transportes públicos não entram e quem quer apanhar o autocarro tem de descer até junto da estrada principal. É por lá que se escondem muitos dos marroquinos que cruzaram a fronteira. “Os que ainda andam deste lado não saem do bairro”, diz Noah, o gerente do café. As imagens que circularam nas redes sociais de migrantes que alegadamente entraram em casas e expulsaram os moradores e que lhes apontaram armas foram lá gravadas. “Mas a história não é bem assim, é mais ao contrário”, conta um morador que trabalha no centro da cidade.

O Príncipe é o bairro mais próximo de Marrocos e onde a grande maioria da população muçulmana vive. As ruas são extraordinariamente estreitas, com carros estacionados nas bermas sem qualquer ordem, pessoas que atravessam a estrada sem olhar, crianças que correm de um lado para o outro, homens que se juntam em grupos e que olham à passagem de cada estranho. Ouve-se o chamamento da mesquita. É hora da oração.

Amir escondeu-se de imediato quando se apercebeu que a polícia se aproximava

Marroquino de Jareda (a 528 km de Ceuta), Amir está sozinho junto à entrada de um bairro perigoso da cidade. Parece bem mais velho do que os 24 anos que diz ter, é agricultor. “Aqui não há nada disso”, comenta o tradutor num tom de voz abafado por um suspiro. Ser agricultor em Ceuta é quase impossível, ali vive-se praticamente de comércio, restauração e serviços.

Amir só fala árabe. Em espanhol consegue cumprimentar e agradecer. É um morador do bairro que aceita ajudar na tradução, ali todos falam as duas línguas porque quase todos são descendentes de marroquinos, de gerações anteriores que deixaram Marrocos e vieram para Ceuta. O Príncipe é bem mais marroquino do que espanhol.

A conversa é interrompida. “Vem lá a polícia”, alguém grita. Amir desaparece a correr. Mas o carro de patrulha não está ali por ele. “Eles estão aqui por causa de vocês”, esclarece o tradutor. “É porque são pessoas estranhas ao bairro e têm medo de que vos aconteça alguma coisa. Não vêm para os apanhar e levá-los para a fronteira e devolvê-los a Marrocos. Isso, quando quiserem fazê-lo, sabem onde encontrar as pessoas.”

Todos os dias, junto aos portões da fronteira no Tarajal, meia dúzia de pessoas tenta passar de Espanha para regressar a Marrocos - seja para um regresso definitivo ou para visitar familiares. Vão pela manhã, algumas carregadas com pertences, encostam-se ao portão e esperam que alguém o abra. “Prometeram que nos deixavam voltar a Marrocos às 10h”, conta entusiasmada uma mulher. O portão não se abriu, talvez esteja atrasado. São agora quase 12h quando dois militares se aproximam e deixam passar quem o quer fazer. Levam as pessoas em fila, param-nas. Fazem perguntas, começa um rebuliço e ao longe apenas vemos nos rostos de quem quer passar expressões irritadas e tristes. Dois homens seguem para Marrocos, os restantes são escoltados de volta ao mesmo lugar: no portão, à espera.

Duas mulheres encostam-se à parede e deixam-se deslizar até se sentarem no chão. Escondem a cara com as mãos e choram.

O Expresso tentou questionar as autoridades sobre os critérios para passar mas não teve qualquer resposta.

Estatísticas: o que é preciso saber

Quase todos andam ou com a máscara no rosto ou na mão ou pendurada no braço. Chegam conscientes de que a Europa está a lutar contra a covid-19 mas para eles a pandemia é outra. “Aqui onde estamos nem conseguimos cumprir as regras de distanciamento”, critica Fabrice enquanto mostra o local onde os subsaarianos vivem. “Mas nós seguimos as regras.” Quando se levantou para nos cumprimentar puxou imediatamente para cima a máscara que tinha no queixo.

Os números da Organização Mundial para as Migrações mostram que as chegadas à Europa sofreram uma quebra nos primeiros meses da pandemia: entre março e abril de 2020 houve uma descida de 3147 pessoas para 1511, um número particularmente baixo quando comparado com os anos anteriores. A partir de maio, o factor covid-19 perdeu impacto e quem queria atravessar o Mediterrâneo para a Europa continuou a fazê-lo e as chegadas voltaram a aumentar a cada mês, tendo atingido o pico máximo em novembro de 2020 (15.202). Este ano os números são ainda mais altos: já entraram mais 7621 pessoas em 2021 do que em igual período de 2020. Há um ano tinham chegado à Europa 20.113 migrantes, agora são 27.734.

IIINunca vi algo como isto

O homem estaciona o carro, sai e deixa o rádio ligado. Caminha um pouco e deixa a porta aberta, a paragem não há de demorar muito. Ali, do alto de um monte, olha a casa amarela a alguns metros de distância. A casa é dele e costuma vir vê-la. Há uma fronteira que separa o homem da casa, literalmente: ele está no miradouro de Benzú, em Espanha, a casa fica em Belyounech, junto à praia, mas já é Marrocos. “Desde que a fronteira fechou só fui lá uma vez e tive de dar uma volta gigante: ir de ferry até à península, apanhar o avião em Málaga em direção a Marrocos e depois vir até ali”, diz enquanto aponta para a cidade já ali à frente. “Gastei uns €500 para chegar à minha casa, uma parvoíce.”

O homem não quer dizer o nome porque não se quer “meter em políticas” mas não se importa de falar com jornalistas. Conta que foi militar no Afeganistão: “Conheci lá vários portugueses. Agora estou reformado.” A fronteira entre Marrocos e Espanha, em Ceuta, fechou em março de 2020 por causa da covid-19 e “isto foi terrível para os dois lados, para as cidades aqui à volta”. Antes as pessoas passavam diariamente, muitas saíam de manhã para trabalhar e voltavam ao final do dia, tal como milhares de pessoas passam todos os dias da margem sul do Tejo para Lisboa ou de Gaia para o Porto. “Muitos marroquinos ficaram sem emprego porque trabalhavam em Ceuta. Não passam, não conseguem vir trabalhar, ficam desempregados. Ao mesmo tempo também não gastam nem fazem as compras aqui em Espanha e isso também se nota no comércio.”

Veste uns calções de banho, uma t-shirt e uns chinelos, embora hoje o dia não chame por uma ida à praia. “Eles vieram todos porque ninguém quer estar em Marrocos, aquilo lá é horrível. Claro que percebo que quando ouviram falar da fronteira aberta tenham vindo todos a correr para Ceuta. Aquilo ali já não era bom, com a pandemia...” E não termina a frase. Com o rádio ainda a tocar, retoma: “Do lado de lá havia pessoas a venderem os móveis de casa para conseguirem comprar o que comer. E quando digo móveis estou até a falar dos pratos e talheres. Vendiam pelo preço mínimo, só o suficiente para irem ao supermercado e pagar uma refeição. A isto chama-se desespero.”

Todos os dias há quem vá até à fronteira do Tarajal para tentar voltar a Marrocos

Para o homem de Espanha com casa em Marrocos a culpa de tudo o que aconteceu há duas semanas é dos reis. “Do de cá e do de lá”, Filipe VI e Mohammed VI. As autoridades espanholas acusam Rabat de ter deixado a fronteira ao abandono. Por sua vez, os marroquinos acreditam que “há ações que não podem ficar sem consequências”, isto porque Madrid aceitou prestar tratamento hospitalar a Brahim Ghali, secretário-geral da Frente Polisário, movimento que reclama a independência de parte do território de Marrocos.

O caminho de uma ponta à outra de Ceuta faz-se por uma marginal. Junto à praia, sentados ou a caminhar com sacos de supermercado na mão, há sempre migrantes. Identificam-se com facilidade pelas roupas gastas, pelo calçado estragado, pelo rosto cansado.

Junto à Praia del Trampolim pára um carro. Cinco mulheres saem e abrem a bagageira. Lá dentro há caixas cheias de garrafas de água e sacos de plástico com alguma coisa que parece ser pão e enlatados. Do lado do mato correm marroquinos que atravessam a estrada em direção ao estacionamento. “Salam.” Estendem a mão e agradecem. Um deles mostra uma ligadura na perna, queixa-se de dor. Gufran Muñoz vai ao porta-luvas e tira uma carteira de comprimidos e dá-lhe um. “Não o tomes de estômago vazio. Toma só depois de comer.”

Dos blocos de cimento vêm a correr os homens da África Subsaariana. Fabrice corre com mais velocidade do que é preciso e trava de forma atabalhoada. Sabe que se demorar muito a chegar ao carro fica sem comer. Estica a mão e também ele agradece. "Distribuímos por dia quase três mil refeições”, diz Gufran. Tem 23 anos e juntou-se com um grupo de amigas quando viu as imagens das milhares de pessoas a cruzarem a fronteira e a chegarem ao Tarajal. “Preparámos tudo num grupo de WhatsApp, não temos qualquer organização nem nada. Quem quer transfere dinheiro, nós compramos a comida e distribuímos."

O grupo não tem locais fixos de distribuição. “Vamos andando e percebemos onde as pessoas podem estar e paramos. Sobretudo junto ao mato e em sítios escondidos, onde há floresta, muitas árvores.” Alimentam sobretudo homens maiores de idade, encontram alguns menores e sabem que há mulheres mas nunca as viram. “Elas não saem e ficam no esconderijo para estarem mais protegidas.”

É frequente carros pararem junto a um grupo de migrantes, abrirem a janela e entregarem sandes e mais alguma coisa de comer. Aliás, em alguns casos já parece que aquilo se tornou ritual: o carro pára, de imediato aproximam-se e estendem a mão. Junto ao porto, por exemplo, um grupo de menores acumula as doações - tanto as podem guardar para si como usar para negociar com outros migrantes.

“Há uma grande maioria de espanhóis que está a ajudar. Muitas pessoas doam roupa, há quem tenha disponibilizado garagens para eles poderem dormir. Ao mesmo tempo há outras pessoas que se aproveitam da situação para mostrar todo o ódio e racismo que têm dentro de si”, diz Gufran.

Não vais falar

Ceuta é a região autónoma de Espanha onde o Vox, partido de extrema-direita, teve mais votos nas últimas eleições gerais de 2019. Dias depois da entrada pela fronteira no Tarajal, o líder partidário Santiago Abascal anunciou uma manifestação pela construção de um muro e a militarização da fronteira para impedir “mais invasões”. Uma comitiva foi a Ceuta mas Abascal nunca chegou a falar, foi reduzido a uma curta declaração aos jornalistas no átrio do hotel onde estava alojado- uma contramanifestação tinha-o cercado. “Não vais falar”, gritaram antes de passarem para os insultos.

“Sou muçulmana, rezo cinco vezes ao dia e sou espanhola até à medula”, diz Fati, de 39 anos, que levou o filho à contramanifestação para lhe ensinar “que temos de lutar pelos nossos direitos”. Os manifestantes continuavam a chegar, como Sirham, espanhola de 24 anos que levou as primas, a tia e umas amigas para o protesto: “Estou aqui para mostrar o meu desagrado com o líder de um partido político que a única coisa que faz é definir a ‘espanholidade’ de cada cidadão de acordo com a sua ideologia política ou religião e que com as suas declarações cria ódio e intolerância. Eu não sou como as pessoas do Vox, que falam sem sair de casa. No dia em que os migrantes entraram em Ceuta, saí de casa às 03h, fui para a rua dar de comida e ajudar argelinos, sudaneses.”

A manifestação acabou por atingir um pico de tensão quando Abascal tentou sair por uma porta lateral do hotel e a polícia carregou sobre os manifestantes - que responderam atirando garrafas de água e pedras. Pelo menos cinco pessoas foram detidas e várias ficaram feridas, incluindo um polícia.

“Este aqui que se escondeu no hotel é descendente de Franco, Salazar e Mussolini. São como nazis”, diz Eduardo, um espanhol de 80 anos que só saiu de Ceuta para ir fazer a universidade a Madrid. “Nunca vi algo como isto. Não tenho memória de ver uma manifestação destas. E aquilo que aconteceu na fronteira… O problema é política. É um jogo”, acrescenta Eduardo, ele que tem duas certezas. Uma: “As portas abrem e fecham quando o rei de Marrocos quer.” Duas: “Agora foram oito mil pessoas que passaram. A questão não é quantas mais serão, é quando será”.

Texto e vídeoMarta Gonçalves
FotografiaTiago Miranda
Edição de VídeoRúben Tiago Pereira
Web DesignTiago Pereira Santos
Web DeveloperMaria Romero
Coordenação editorialJoana Beleza, João Carlos SantoseGermano Oliveira
DireçãoJoão Vieira Pereira

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