Desterra enviuvou há três anos. Aos 81, só escolhe o preto nas roupas que lhe cobrem o corpo. Nas partes destapadas a pele surge enrugada e queimada pelo sol. De casa sempre viu o mar. Nunca ia nos barcos, mas tudo o resto ligava à pesca. Neta, filha e viúva de pescadores da Póvoa de Varzim, foi toda a vida uma mulher “pescadeira”.
Entre doze irmãos - seis rapazes e seis raparigas - não faltou exemplo feminino para que aos dez anos tricotasse a primeira camisola poveira. E assim fez enquanto se manteve solteira. Depois impunha-se o dever de governar a casa. Mesmo se o marido “pescava bem”, de quando em vez não resistia à tentação: tirava as agulhas de debaixo da cama e era às escondidas que nascia outra camisola.
Os homens pescadores mergulhavam as lanchas, lançavam redes à água e enfrentavam a incerteza. No balouçar do mar, só redes prenhas de peixe lhes sossegava a madrugada. Algumas vezes enganavam a morte, outras vezes eram enganados por ela. Para muitos o mar foi jazigo.
Em chão firme, sem rádio, rede, telefone ou internet capaz de as sossegar, ou poupar as avé-marias, as raparigas faziam-se mulheres a temer o pior. No lado sombrio da costa, esperavam. Sob o breu das casas e o ziguezaguear dos filhos, sempre muitos, teciam a esperança no calor da lareira em tempo frio. Por entre o vaivém das ondas, tentavam adivinhar o regresso. Esperavam pousar o olhar nos rostos duros dos seus homens. Cansados. Chegados a terra, sãos e salvos.
“Mas elas temiamIsabel de Sáin Penélopes
temiam sempre que o mar
fosse o jazigo”
Noite dentro, a Póvoa era delas. Deitadas as crianças, apagado o lume e terminadas as lides domésticas, se o sono não lhes pegava, erguiam as agulhas na lã que servia de roupa para os filhos, maridos e para elas mesmas. Eram escuras, mescladas ou de um branco sujo. À luz do dia, de pés descalços na areia à espera dos barcos, mantinha-se o costume. Elas bordavam para eles não gelarem no mar.
Começaram por apresentá-las lisas. Depois vieram os desenhos. Pretos e vermelhos. A forma ganhou corpo com o tempo, perfilada pela moda. E assim, de um matrimónio entre os bordados e o mar, nasceram as camisolas poveiras, famosas desde que, em março de 2021, um emigrante português na América identificou as raízes da Póvoa de Varzim num site americano de vestuário de luxo.
Uma reprodução da camisola poveira aparecia à venda por mais de 600 euros na página da estilista Tory Burch. Não fazia menção a Portugal e citava inspiração mexicana.
Nascidas no século XIX para aquecer os corpos de homens, mulheres e crianças, as simples peças de lã que permitiam aos poveiros aquecerem-se passam depois por um desuso quase total, para ressurgirem, nos anos 30, pelas mãos do etnógrafo António Santos Graça com nova roupagem.
Nos anos 40 já o mercado se estendia até além fronteiras. Os primeiros exemplares já haviam sido aprimorados. Com raízes familiares piscatórias, o também jornalista da Póvoa de Varzim, autor de “O Poveiro” e “Epopeia dos Humildes”, sobre a vida dos “lobos do mar”, quis criar um grupo folclórico à moda da terra. “Lembrou-se de reproduzir a camisola da infância, mas já não se usava”, recorda Deolinda Carneiro entre as paredes do Museu Municipal de Etnografia e História da Póvoa de Varzim.
Um grande naufrágio, em 1892, havia colocado os poveiros de luto e nada disponíveis para as cores berrantes das camisolas. Desde então começaram a cair em desuso na terra. Até que um dia, narra a diretora do Museu, Santos Graça “viu passar uma criança na rua vestida com a camisola poveira e perguntou-lhe onde a tinha arranjado”.
Das mesmas mãos de onde saíra aquela, passaram a sair todas as réplicas destinadas aos membros do rancho fundado em 1936. Os símbolos tradicionais ligados à natureza, como flores e pássaros, foram trocados por outros evocativos da pesca, em homenagem aos homens da Póvoa de Varzim. Bastou lançar o isco para a peça arribar na terra de um dos portos mais importantes do país, o maior da zona norte. E consegue-o com tanta força, que chega a protagonizar as silhuetas do premiado filme “Ala-Arriba!” (1942), de José Leitão de Barros.
O salto do país para além fronteiras foi tão fácil como peixe a nadar no oceano. “As pessoas começaram a querer camisolas”, assevera Deolinda. Não foi preciso muito para que os pedidos de todo o lado chegassem ao regaço das mulheres.
E elas, assim como antes faziam renda de bilros, na praia, e coziam redes - às vezes até fora do país -, para além de comandarem uma sociedade estranhamente matriarcal para a época, organizam-se e começam, também, a fazer camisolas.
De alguns comerciantes locais vinham as lãs, juntamente com os pedidos. Primeiro era a malha cor creme, especialidade de algumas. Depois de montada a base, faltava a minúcia dos desenhos bordados, saídos das mãos de outras. Com testemunho a ser passado de casa em casa, ganhou força a exportação e o essencial da produção desaguava nos países nórdicos.
Até ao início dos anos 70 era tamanha a produção, que Deolinda considerou ter aquela arte vivido uma espécie de tempo “pré-industrial”, embora se mantivesse artesanal. Apertaram-se as regras. Meia dúzia de escudos por serviço eram escassos para governar a casa e por isso não havia na Póvoa rapariga que escapasse a desde cedo ocupar as horas mortas com a arte do bordar.
Se chegava uma grande encomenda, era o cabo dos trabalhos. As agulhas pareciam voar, e nem para dormir sobrava tempo. Entrelaçavam as expectativas com as obrigações de filhas. “E logo que chegasse o dinheiro da venda, havia alteração da dieta alimentar para melhor”, recorda Carmen Flores. A doze escudos e quinhentos (o equivalente hoje a €3,53) por conjunto de cinco camisolas, “quantos pães isso não dava” quando o temporal no mar deixava os pescadores a ver navios.
Habituada a passear a infância pela centenária e poveira Casa Espanhola, uma retrosaria do avô que vendia lãs, e onde “o povo era tanto, tanto, tanto, que parecia o barulho do mar”, foi já na condição de reformada, após 27 anos como professora de Geografia, que Carmen recuperou o cenário da sua meninice. Inevitavelmente, emprestou outros olhos à peça da qual se deixou de ouvir falar desde meados dos anos de 1970. Consequências da aposta industrial, que tornava o fabrico artesanal um luxo demasiado caro.
“Teço, teço, teçoMárciain Penélopes
Mas o tempo não é de fiar”
A reformada remou ao encontro das mulheres que, como ela, em novas ajudaram a criar a figura da camisola poveira. Mas notou “uma repulsa das pessoas”. Outrora teriam bordado camisolas, mas já não se mostravam disponíveis para retomar aquele labor. Ai de quem lhes falasse na ideia peregrina de voltarem ao fado de outros tempos. Não deixavam de associar as camisolas ao trauma provocado por um trabalho feito em tempos de miséria.
A relutância não inibiu Carmen de tentar puxar a brasa à sua sardinha. A poucos anos de se reformar, em 2000, começou a recolher os desenhos que hoje, vinte anos passados, compõem um livro ainda por terminar sobre os motivos e as regras da camisola poveira. Pelo caminho, encontrou mais de 400 mulheres dos três bairros da cidade - o bairro norte, conhecido por alugar casas, o bairro sul, mais piscatório, e o bairro da Matriz, o mais pobre, onde “toda a gente fazia camisolas”.
Não há um número certo das que conseguiu convencer a bordarem de novo, para que a tradição não se perdesse na corrente do tempo. Umas vezes dez, outras cinco. Mas é só graças à tenacidade do grupo “Uma tarde no Museu”, hoje “O Grupo dos Amigos do Museu”, todas as sextas-feiras reunido desde 2008, que o símbolo poveiro tem visto o tempo acompanhar o perpetuar dos costumes.
Quase todos os símbolos representam apetrechos marítimos. Um barco, um lampião, peixes, lagostas, caranguejos, âncoras, cordas, remos… Tempos houve em que a figura central era replicada nas mangas, e outros em que os nomes dos barcos ou das famílias eram escritos por baixo da figura principal da camisola. A moda foi ditando algumas alterações, enquanto outros aspetos se mantiveram inalteráveis: desenho feito de um lado, tem de ver o seu espelho do lado oposto. A manga deve ser cosida a direito, tornando-se descaída sobre o braço.
E se em tempos as peças se exportavam para os Estados Unidos, para a Alemanha e para a França, “até para a Rússia no tempo da Guerra Fria”, lembra Carmen Flores, também ao ex-Presidente Barack Obama foi enviada uma. E para o Papa seguiram várias. “Ainda há dias foi uma para o Marcelo, o Cavaco Silva tem para aí três, e o arcebispo de Braga também deve ter duas ou três”, anuncia.
Antes usadas para identificar a quem pertenciam os instrumentos marítimos, quando os barcos voltavam à costa, as siglas eram como brasões para uma comunidade analfabeta. Se um primeiro pescador talvez tenha desenhado uma cruz nos seus pertences, para os distinguir dos demais, um segundo optou por marcar outra figura. E assim sucessivamente até ser criada uma linguagem própria da terra, usada até como assinatura nos casamentos, como memorando nas lápides, e passada de pais para filhos.
A partir de uma matriz, um radical simples escolhido pelo pai, a imagem inicial da família ia evoluindo. O primeiro filho acrescentava-lhe um traço. O segundo outro e o terceiro outro. Até que o último herdava a marca do pai, por ser mais provável começar a trabalhar quando a geração anterior já havia deixado o mar e por ser quem se encarregava de lhe dar apoio na velhice. As mulheres herdavam as siglas dos maridos.
Hoje há centenas. Nas placas com os nomes das ruas, na cidade, a rodear as letras estão siglas das famílias que noutras núpcias ali viveram. 68 estão catalogadas no livro “O Poveiro” de Santos Graça, o responsável também pela sua inscrição nas camisolas poveiras, qual entrelaço das duas linguagens simbólicas da Póvoa de Varzim.
O hábito ficou de tal modo enlaçado que não há camisola nenhuma que Carmen borde em que falte uma sigla. Uma das primeiras personalizadas foi-lhe pedida por um rapaz de Matosinhos de ascendência poveira. “Ainda agora uma senhora quer que eu lhe ponha a sigla dos Pinheiros”, conta, de volta dos novelos pretos e vermelhos com que borda mais um exemplar passado de mãos em mãos entre as outras mulheres do Grupo dos Amigos do Museu.
Continuam a reunir-se invariavelmente às sextas-feiras, à dar à língua quase tanto quanto dão aos dedos, mas há uns meses que perdem a conta aos pedidos de encomenda. Não esperavam que, para contarem ao país a história que todas as semanas lhes sai das mãos em bordados, haveria de ser preciso um abre olhos americano.
A peça de vestuário já levava dois meses de venda online quando o caso chegou à secretária de Aires Pereira, presidente da Câmara da Póvoa de Varzim. “Começámos por perguntar o que era aquilo”, recorda, indignado. “Dissemos-lhe que não era correto a senhora estar a utilizar a camisola enquanto peça de artesanato mexicano e sem nos perguntar rigorosamente nada sobre isso”. Mas no início, o frente a frente não surtiu efeito.
Foi precisa uma denúncia no site americano Prada, conhecido por zelar pela propriedade intelectual, a que se juntou uma indignação coletiva portuguesa nas redes sociais da estilista, para se acenderem as campainhas do outro lado do Atlântico. E, por arrasto, cá também.
Inundaram-se as caixas de comentários de orgulho ferido em forma de caracteres. Como resposta, surgiu um pedido de desculpas público e uma pergunta dirigida aos poveiros. O que queriam em troca? Não era dinheiro, disse-lhe Aires Pereira.
Bastava apenas o reconhecimento do erro com “uma hiperligação para a história da camisola e para este aglomerado no norte de Portugal que a senhora não fazia a menor ideia de que existia”.
E para não deixar enterrar o assunto face ao ruído mediático, o Ministério da Cultura içou o anzol, ao oferecer os serviços jurídicos do Conselho de Ministros para intentar uma ação contra Tory Burch no tribunal de propriedade, em Nova Iorque.
No museu onde Carmen, Lurdes, Desidéria, Dores e Felicidade têm por hábito encontrar-se, a notícia chegou com uma enxurrada de trabalho. Os portugueses tinham transformado a tempestade em bonança. Dos insultos a Tory Burch, correram para as encomendas de camisolas. De um momento para o outro, mais de cem pedidos por satisfazer boiam na loja virtual criada pela autarquia para certificar as peças bordadas segundo as regras artesanais.
Ao mesmo tempo, o insólito fez desbloquear a criação de um organismo nacional para a defesa das práticas artesanais, a associação Saber Fazer. A conhecida marca de vestuário Salsa prepara uma série de peças de roupa com inspiração na camisola poveira, para o próximo Outono-Inverno.
E do renascer de um orgulho visceral nasceram duas turmas de formação para aprender a tecer camisolas, nas quais ainda não couberam outros 40 interessados, à espera de vaga. Uma das turmas alberga sobretudo reformadas, outra acolhe, em horário pós-laboral, outras mulheres interessadas na arte do bordar.
A estes dois, junta-se um outro grupo que a Câmara da Póvoa de Varzim já havia criado de mãos dadas com o Centro de Emprego, por forma a dar formação certificada. Todos têm formadores profissionais e são gratuitos, fruto de uma constante vontade autárquica de não deixar morrer a tradição. Em todos aprendem sobretudo mulheres.
“E se passar da sombra para a luzAna Hatherlyin A Neo-Penélope
É difícil.
O contrário ainda é pior.”
O eco americano trouxe a Carmen mais certezas do caminho que as mãos foram fazendo ao longo dos anos. Porque “tear é lágrima em inglês”, como escreveu Gisela Casimiro no projeto poético ‘As Penélopes’, sobre as mulheres da Póvoa, talvez falte a Tory “uma medalha de reconhecimento pelo papel que teve”, ironiza o autarca Aires Pereira.
Coincidência ou não, a força do nome de uma mulher cruzou um oceano para, entrelinhas, mostrar como merece ser eternizado o trabalho de décadas de todas as mulheres poveiras. Se dúvidas houvesse, dissiparam-se. Há mais marés do que marinheiros. E há dedos capazes de as perpetuar no tempo.
O livro ‘As Penélopes’, saído do projeto do Bairro dos Livros com o mesmo nome, quis contar pelos olhos das mulheres da Póvoa de Varzim a história que foi sempre perpetuada pelo lado do herói pescador. E para tal, doze mulheres inspiraram-se em Penélope, a lendária esposa de Ulisses, na mitologia grega, e escreveram doze textos originais. Também Penélope esperou em terra pelo seu “lobo do mar”, sem certezas de regresso. Pressionada para voltar a casar, determinou que só escolheria outro homem quando terminasse um sudário que estava a tecer. E ia tecendo, por um lado, e desfazendo, por outro, para não largar Ulisses do pensamento. Em “As Penélopes”, o lado terreno da sociedade matriarcal da Póvoa faz-se acompanhar ainda de doze camisolas originais bordadas com imagens desenhadas para “servir” cada texto, pelas mãos das bordadeiras do Grupo de Amigos do Museu de Etnografia e História da Póvoa de Varzim. O projeto junta literatura com a arte do bordado. Pertencem ao livro várias citações que fomos destacando neste trabalho.