Portfólio de
Tiago Miranda
Texto de
Raquel Moleiro
junho de 2025
As mesquitas e os lugares de culto muçulmano multiplicaram-se com o aumento em Portugal da imigração oriunda de países islâmicos. Só na Grande Lisboa há meia centena, concentrada no centro da capital, linha de Sintra-Amadora, Loures, Odivelas, Vila Franca de Xira e Margem Sul. Passam quase incógnitos, instalados em garagens particulares, caves, lojas comerciais, armazéns, minimercados, parques de estacionamento ou prédios degradados.
Muitas denunciam-se apenas por terem à porta múltiplos pares de sapatos e mochilas amarelas ou verdes de estafetas que entregam comida. Ou através de letreiros modestos de papel presos com fita-cola. Mas lá dentro, mesmo nas mais simples, há uma zona para a ablução (lavagem dos pés, mãos, braços e rosto antes da oração) e espaço limpo para rezar, em comunidade, virados para Meca.
O número é aproximado porque não existe um registo formal, apenas diferentes listas parcelares que vão sendo feitas pelas associações e organizações muçulmanas presentes em Portugal, para informação dos imigrantes que chegam ao país ou que se deslocam ao sabor do trabalho. O Expresso cruzou-as e contabilizou 51 na Grande Lisboa.
Ao colocá-las num mesmo mapa, as localizações sobrepõem-se, sem surpresa, às zonas de residência de grande parte da comunidade migrante oriunda do subcontinente indiano e de África, principalmente do Bangladesh, Índia, Nepal, Paquistão, Guiné-Bissau, Moçambique, Marrocos e Senegal. E sofrem da mesma escassez de espaço e condições que muitos crentes têm nos quartos e casas onde moram. Nas moradas lê-se Reboleira, Damaia, Cacém, Mercês, Galinheiras, Colina do Sol, Póvoa de Santo Adrião, Laranjeiro, Vale da Amoreira, Portela, Forte da Casa, Quinta do Mocho ou Palmela.
Durante o mês do Ramadão, que terminou no fim de março, fomos convidados a entrar em alguns dos templos da Grande Lisboa. Do mais simples à imponente mesquita central. E também na prisão de Tires e numa empresa com espaço interreligioso. A fé não escolhe lugar.
Espaço para todos
A Mesquita Central de Lisboa, na Praça de Espanha, é a maior de Portugal, e das poucas construídas como tal, há 40 anos. Tem quatro pisos, cúpula, minarete, dois enormes espaços de oração, para homens e mulheres, uma madraça (escola)… Nunca chega a faltar espaço, nem nos horários mais concorridos das cinco orações diárias, mas também ali se nota o aumento da comunidade islâmica no país. “É muito difícil dizer ao certo quantos muçulmanos existem em Portugal. Há uns anos falávamos em 25 mil, depois passámos para 60 mil e hoje já estamos em mais de 100 mil. E isso vê-se nos locais de culto, cada vez mais cheios, e a abrir em lugares remotos”, atesta o sheik Munir, ali imã desde 1986.
“E é igualmente difícil dizer quantas mesquitas há”, reconhece, apontando para cerca de 60 a nível nacional. “É normal que, numa localidade onde há um núcleo de muçulmanos a residir, se consideram que já é altura de fazerem as orações em conjunto, em congregação, abrirem um local de culto, que pode ser um armazém, uma garagem ou uma loja”, explica o líder religioso. “Mas infelizmente não há nenhuma norma ou lei que permita saber quantos são os locais de culto, quem são os responsáveis e quem são os imãs”.
Sexta-feira é o dia sagrado. Na oração das 14h juntam-se ali mais de mil pessoas. Podem fazê-lo em privado, em casa, mas a oração comunitária é considerada mais virtuosa. No mês do Ramadão a frequência intensifica-se.
É preciso chegar com tempo. Ninguém entra de rompante na sala de oração. As impurezas do exterior têm passagem proibida. A oração é precedida de um ritual de purificação, a ablução, que consiste em lavar com água as mãos, as narinas, os braços até a altura do cotovelo, a face, a cabeça, as orelhas e ouvidos e os pés.
O atraso vê-se nos sapatos desordenados e desirmanados, largados à entrada da sala, já sem espaço nas estantes de madeira. Os crentes arrepender-se-ão à saída quando andarem tempos infinitos à procura do par certo, entre milhares, com as modas a garantir que há vários iguais.
No interior não há imagens nem esculturas. A adoração é apenas dirigida a Alá. As riscas horizontais da carpete azul, com motivos geométricos, alinham os crentes, mantendo a distância necessária para as várias posições por que passam enquanto rezam. De pé, curvados, de joelhos, prostrados, sentados. As mulheres estão no piso de cima, de acesso mais reservado.
O Expresso esteve na Mesquita Central num dia do Ramadão - este ano ocorreu entre 28 de fevereiro e 29 de março de 2025 -, pouco antes da hora da quebra do jejum, o iftar, ditada pelo minuto exato em que o sol se põe. Vários painéis digitais registam o countdown. Depois de cerca de 12 horas sem comer nem beber nada, os crentes interrompem a abstinência com água e tâmaras. E oração. Depois é vê-los correr para a porta do gigantesco refeitório.
No Ramadão a comida é por conta da casa. É um período de abstinência (de comida, bebida, tabaco e relações sexuais) mas também de purificação espiritual, que se faz através de orações intensas e de ações de caridade e interajuda. Ali serviram-se durante um mês 1500 refeições diárias, halal, distribuídas em embalagens plásticas individuais, acompanhadas de chá doce e água.
A organização exige a presença de dezenas de voluntários, apoiada por vezes por elementos da PSP em trabalho gratificado, tal o número elevado de pessoas. Outras 500 refeições seguem para outras mesquitas menores, que não têm a capacidade financeira ou logística para oferecerem o iftar aos crentes que as frequentam.
A mesquita do Benformoso
Se não houvesse estatísticas para mostrar o aumento recente da comunidade do Bangladesh em Lisboa, a mesquita Baitul Mukarram, a meia dúzia de passos da Rua do Benformoso, servia facilmente de barómetro. Os dois pisos atapetados do templo são incapazes de acolher todos os que querem entrar para as rezas diárias. A fachada degradada do prédio mais parece o reflexo exterior de um espaço a rebentar pelas costuras de tijolo e reboco.
Entra-se por turnos – quatro - e depois de ocupado todo o espaço formal, os crentes estendem-se pela cozinha, pelo corredor, pelas escadas, até não restar um centímetro de chão vago, esticando a lotação bem para lá do máximo de quinhentos de cada vez. Só entram homens, não há espaço para uma área reservada a mulheres. Sem janelas ou portas, para além da entrada, torna-se um forno humano, que dezenas de ventoinhas, de parede e teto, não conseguem arrefecer.
Só ali à volta, em ruas vizinhas, a poucos metros de distância, há outros dois locais de culto islâmico. Nessa mesma freguesia, Arroios, existem seis; na cidade de Lisboa 11.
Em fim de dia de Ramadão, largas centenas de homens, a maioria jovens, encaixavam-se num tetris gigantesco, sem o mínimo sinal de desentendimento. Há quem reze baixinho ou quem leia o Alcorão digitalizado no telemóvel ou num dos muitos exemplares físicos existentes no salão. Esperam o fim do jejum, já com um prato de frango biryani à frente, acabado de confecionar e servir por uma dezena de voluntários com coletes refletores. Para beber, há água.
A organização faz lembrar uma linha de montagem Ford. Um põe o frango, outro as tâmaras, outro a laranja, e os pratos de loiça chegam a cada crente numa cadeia de passa-mão sem falhas, que sobe até as escadas para o primeiro-andar e lá continua.
Quando chega a altura de comer, com a mão direita, o silêncio é quase absoluto. Ninguém fala. Pouco depois, os pratos farão o caminho inverso em direção à cozinha, só com ossos e cascas da laranja. O espaço é limpo em tempo recorde, para que se possa rezar de seguida.
A sobrelotação em que a maioria vive, em quartos alugados, repete-se ali. Em vez de colchões lado a lado, há gente ombro com ombro. Nas paredes são visíveis vários panfletos, com NIB, IBAN e número de conta bancária no Montepio, a apelar à generosidade dos fiéis: “Donate for new project of mosque”. Mas a construção de uma nova mesquita na Mouraria, entre as ruas da Palma e do Benformoso, projetada desde outubro de 2015 - ainda era António Costa presidente da Câmara de Lisboa - não deverá sair do papel.
Depois de sucessivos entraves colocados pelo proprietário dos três imóveis particulares que era preciso expropriar, o executivo de Carlos Moedas está a repensar o projeto da praça da Mouraria, que incluía o novo templo, já tendo dado sinais que apontam para a desistência da edificação da mesquita. “Não faz sentido associar um templo religioso, independente da religião a que se refere, a uma determinada comunidade nacional. Não temos esse histórico. Nunca, julgo eu, nenhum poder público se associou à construção de uma sinagoga para os judeus polacos ou os judeus de Marrocos", afirmou Filipe Anacoreta Correia, vice-presidente da CML, no fim de janeiro, durante uma audição na Assembleia Municipal.
“Se a construção de raiz de uma nova mesquita tivesse avançado, não era preciso abrirem estes locais de culto todos, e todos sempre a abarrotar de gente. Não têm a segurança necessária, quase nenhum tem espaço para as mulheres. Esperámos tanto tempo e parece que o projeto vai mesmo cair”, lamenta Rana Taslin Uddin, presidente do Centro Islâmico do Bangladesh, onde funciona a mesquita Baitul Mukarram, que está em Portugal desde 1991.
Recentemente, no fim de janeiro, a Câmara de Lisboa ordenou o encerramento de uma mesquita na freguesia de Arroios, a funcionar no rés do chão e cave de um prédio residencial. A autarquia justificou a ação por existir “perigo grave de segurança”, pela inexistência de projeto de segurança contra incêndios, e constrangimentos na vida pública nos dias de maior afluência.
Liberdade religiosa
A Lei de Liberdade Religiosa permite estabelecer lugares de culto ou de reunião para fins religiosos, sem interferência do Estado ou de terceiros. A instalação em imóveis destinados a outros fins só precisa do acordo do proprietário ou da maioria dos condóminos, no caso do edifício estar em propriedade horizontal. Um dos templos da zona dos Anjos, a mesquita Al Farouk, está instalado numa cave em mau estado, no mesmo prédio onde funciona um polo da Junta de Freguesia de Arroios e um hostel.
As malas de distribuição de comida, amarelas Glovo, verde Uber Eats ou Bolt, estão presentes nos acessos a quase todas as mesquitas, a denunciarem as pausas rápidas no trabalho dos estafetas para cumprirem as cinco orações obrigatórias.
São também um espelho da dependência económica do setor da mão de obra imigrante. A maioria (55%) dos colaboradores de plataformas como a Bolt Food, Glovo e Uber Eats têm nacionalidade estrangeira, diz a Associação Portuguesa das Aplicações Digitais (APAD).
O templo dos Anjos é simples, remediado. À falta de carpete para atapetar a sala de oração, o chão de tábua corrida foi coberto por dezenas de tapetes sobrepostos. É frequentado principalmente por imigrantes africanos, do Senegal e Nigéria, nacionalidades menos presentes em Portugal, o que explica a menor frequência do espaço.
No Ramadão, também ali o dia terminou com uma refeição partilhada. Houve baguetes de carne e ameixas para quebrar o jejum, tâmaras, água e chá.
Uma garagem na Amadora
Na Reboleira, concelho da Amadora, o lugar de culto foi instalado num garagem ampla. No largo vizinho, um grafitti lembra a realidade exterior, oposta à paz que ali se sente: “Justiça pelo Odair”, lê-se na parede. A morte foi a poucos passos dali.
Só no concelho da Amadora há cerca de 15 templos islâmicos. Em breve – a inauguração está prevista para o fim de maio -, a Linha de Sintra terá uma muito aguardada mesquita, construída de raiz, na Tapada das Mercês.
O templo tem de estar imaculado. Já se entra da rua descalço, de sapatos na mão. À falta de espaço, a refeição com que vão quebrar o jejum foi cozinhada ali mesmo, na sala única. Depois de se comer, aspira-se. E só depois se pode rezar.
O repasto halal é acompanhado por um ovo, três tâmaras e uma bebida rosa choque, que é leite com Rooh Afza, um concentrado de abóbora, paquistanês, com 77g de açúcar por 100g de produto. Há que repor as calorias depois de um dia de ingestão zero. E o Ramadão ainda ia a meio.
Um rolo de papel é esticado em várias filas sobre a carpete de oração, como se fossem mesas corridas sem pés nem cadeiras. Virado para Meca, um rapaz de 15 anos recita o Corão em voz alta. Sabe-o todo de cor.
Aqui não há espaço para mulheres. Aqui e na maioria das mesquitas. Dizem que não faz mal. O dever de rezar em comunidade, principalmente à sexta-feira e no Ramadão, pertence aos homens. Para elas a sala de orações fica em casa.
Os casos excecionais
A mesquita das Galinheiras, já na periferia de Lisboa, é frequentada por várias nacionalidades. Nem só asiáticos, nem só africanos. Há do Togo, Guiné-Bissau, Índia, Bangladesh e Paquistão.
Tem os acessos em obras. Sheik, espécie de porta-voz informal do espaço, tem estado ausente. Desloca-se em cadeira de rodas e para entrar passa pela terra, feita lama pela chuva, e suja o tapete do templo. O seu regresso está preso aos prazos do empreiteiro. Ainda assim, do Ramadão só não cumpriu as orações comunitárias.
O jejum é obrigatório para todos os muçulmanos, homens e mulheres, desde a puberdade. De fora ficam as mulheres grávidas e lactantes, os idosos, os que sofrem de doenças crónicas e as crianças. Daí que se estranhe, logo à entrada, a presença de umas pantufinhas infantis, entre chinelos de homens crescidos.
Lá dentro, o dono é facilmente identificado pelo tamanho, e as calças de pijama do Batman. Veio acompanhar o pai, vestido com uma túnica branca (thobe) que lhe cobre o corpo todo, em mais uma quebra do jejum.
À ‘mesa’, comem-se ‘sonhos’ de trigo e lasanhas halal, oferecidas por um empresário de Odivelas. Para beber há uma espécie de ‘Cerelac’ de milho. E fala-se do dia. Quase todos os que ali passaram-no a trabalhar “nas obras”, apesar do jejum. “Mas não é difícil, é a religião”, explicam. E entre tijolos e pladur param cinco vezes para rezar. Não só no Ramadão. Sempre. É um dos pilares do Islão.
Basta a fé
“Nem todos os patrões revelam a mesma compreensão, mas temos noção de que há cada vez mais a dar condições para que os seus trabalhadores muçulmanos possam cumprir os preceitos da religião”, explica Samir Aboobaker, porta-voz da Mesquita Central.
Ainda recentemente, foram contactados pela PWC (Price Water House Coopers) para os ajudar a criar uma sala multirreligiosa na sede da empresa, em Lisboa. A instalação do espaço final ainda está em curso, mas Mussa Finando, trabalhador guineense, já pode realizar as suas orações num local provisório, a antiga sala de enfermagem.
Até nas prisões, de regras enrijecidas pela segurança, é já possível seguir os preceitos do Islão, ainda que com adaptações. No último Ramadão, o Estabelecimento Prisional de Tires teve seis reclusas a cumprir o jejum. Safi, guineense, saiu em liberdade a meio, mas deixou na cela 62 duas discípulas, brasileiras não muçulmanas, Loreane e Daniele, de 25 e 27 anos, que quiseram mimetizar-lhe a abstinência. “Crescemos ambas em lares cristãos evangélicos, onde também aprendemos o poder de jejuar. Deus é um só e a crença universal. Na altura da oração, ela fazia as delas e nós as nossas e depois comíamos juntas”, conta Loreane. Cumprem ambas pena por tráfico de droga.
Na ala das preventivas há mais três reclusas muçulmanas. Fatumata, 42 anos, senegalesa, está ali há 8 meses por posse de substância ilícita trazida de Dakar. Partilha a cela com Noor (nome fictício), 31 anos, portuguesa com 6 filhos, detida desde o fim de 2024 por falsificação de documentos. “No Ramadão permitiram-nos fazer o jejum e comer mais tarde que as restantes reclusas, mas no dia a dia normal é difícil cumprirmos com a nossa religião”, explica Noor.
Rezam na cela, meticulosamente limpa, mas não podem usar lenços ou um niqab a cobrir o cabelo – Fatumata só o colocou para a fotografia -, não podem ter tapete de reza (usam toalhas), não podem ter um Alcorão, porque só há com capa dura e não são autorizados. “Mas Alá vê tudo”, garante Noor. “Sabe que estamos a fazer o correto. Depois do Ramadão acontecem coisas boas”.