Eu sou o meu quarto

Eu sou o meu quarto

Montagem Teens Lisboa

Viagem à intimidade dos quartos de quatro adolescentes e jovens durante tempos de confinamento pandémico. Quatro histórias de quem, da janela, viu passar ao longe alguns dos momentos simbólicos desta fase da vida. Um trabalho multimédia em que se entreabre a porta sobre como um desastre condicionou uma geração

Christiana Martins, Joana Beleza, João Melancia e Pedro Nunes




















“But, you may say, we asked you to speak about women and fiction — what has that got to do with a room of one’s own?”
Virginia Woolf, “A Room of One’s Own” (1928)

Porque teve de ser assim

Este trabalho começou ainda antes da pandemia, da necessidade de se perceber, quando o mundo era aberto e os caminhos pareciam livres e limpos porque é que os adolescentes preferiam fechar-se nos seus quartos. Rapazes e raparigas que comunicavam por telemóveis e computadores, prolongando no espaço virtual a presença física das escolas. O que os prende aos quartos? Como são estes quartos? Como ocupam o tempo livre?

Não foi fácil. Os rapazes não estavam disponíveis e embora as raparigas estivessem mais dispostas a revelar o que faziam e pensavam nos seus quartos, não foram todas as que aceitaram. Nas classes mais favorecidas de Lisboa, o desafio pareceu aliciante, nos subúrbios e na periferia, a recusa foi generalizada. "Não, o quarto não é só meu, divido com os meus irmãos". "Não, o meu quarto não tem nada de mais" "Não, só se não me fotografar nem usar o meu nome". "Não".

Apesar das limitações da primeira vaga da pandemia, quatro raparigas abriram as portas dos quartos: Luísa, Laura, Mariana e Francisca. Quando o trabalho começou a ser feito, tinham entre 13 e 17 anos e ao longo do tempo foram dando pistas sobre a transição feminina da adolescência para a juventude em pandemia. Veio o verão, o regresso às aulas, seguiu-se o Natal e os quartos perderam o protagonismo. Mas não tardou a voltar o medo, maior do que da primeira vez. Ainda em confinamento, mas com a aproximação da possibilidade de regressarem às escolas, está na hora de saírem dos quartos.

E é com cheiro a rua, a ar livre, mas ainda de dentro de casa, que este trabalho chegou ao fim. Marcado pela generosidade de quatro raparigas de Lisboa, que nos permitiram olhar pelo buraco de uma fechadura digital e, na voz de cada uma, aceder a um fragmento do que foi o isolamento juvenil durante um tempo mais do que atípico das suas vidas. Quando começaram este diálogo eram umas, terminaram outras. E as mesmas, ainda assim. Capazes de nos mostrar que, mesmo a quem nada pareceu faltar, houve lacunas que marcaram.

 Luísa Silvestre 
16 anos 
Vive com a mãe e o padrasto 
Dois irmãos mais novos da parte do pai 

Luísa
 Luísa Silvestre 
 16 anos 
 Vive com a mãe e o padrasto 
 Dois irmãos mais novos da parte do pai 

Luísa, a pragmática

É o rosto do otimismo. É quem segura as pontas, quando, lá em casa, a tensão, sobretudo materna, faz-se sentir. Quando conversámos pela primeira vez tinha 15 anos, agora já fez 16 e assim ficará até outubro. “Sempre passei muito tempo no quarto e, no primeiro confinamento, só ia para a sala se estivesse sozinha”, disse-nos em abril. Desde então, tudo se modificou: a casa, o quarto, os hábitos. Saiu do Lumiar e foi para a zona da Avenida de Roma. Para passar o tempo, tocava piano e via séries por streaming. Com a pandemia, “mudou tudo”. “Passei a sair mais do quarto, sentia falta das pessoas.”

Durante o primeiro confinamento da família — mãe, filha, padrasto —, quando saíam, era de carro, a ver a vida para lá da janela do automóvel. Durante quatro semanas não houve aulas nem online e, mesmo assim, Luísa fez sempre questão de mudar de roupa, assim que acordava, “como se fosse à escola”. A cama ficava feita e ela sentava-se à secretária, cada coisa no seu lugar e com a sua função. No quarto, as maiores companhias: o piano, a guitarra e o cavaquinho. Os únicos autorizados a ouvi-la nos momentos de maior intimidade, em que soltar a voz e cantar traz conforto e comunicação com tudo o que lhe vai dentro. E era muito, apesar do pouco que os dias lhe davam.

“Não acontecia nada, não tinha nada para contar aos meus amigos, falava pouco ao telemóvel, fui minimal.” Ler, só um livro, não apeteceu mais. Apesar das faltas, o primeiro confinamento não lhe pareceu “muito triste”. Era assim, e assim tinha de ser. “Um colega foi-se abaixo e teve de ir ao psicólogo, alguns ficaram mesmo muito tristes; somos extrovertidos e gostamos de nos divertir.” Mas, e o mas ajudou-os: “Mas também gostamos de estar sozinhos e já era assim antes da pandemia.”A porta do quarto nunca ficou fechada, sempre entreaberta. Nem é preciso baterem à porta, nada é forçado ou exigido. Uma forma de estar translúcida. “Se a minha porta está encostada é porque vou cantar e tocar, já sabem.” E foi assim, tocando e cantando, que o primeiro confinamento passou. “Foi a forma que encontrei para substituir as conversas ao telemóvel.”

De fora ficou o que gosta muito: “Abraços.” Sim, isto faltou à Luísa. “No início fez-me muita confusão.” Com o tempo a aquecer, voltaram os encontros, à distância, nas varandas, jantares ao ar livre. Sem abraçar ninguém. E quando recebeu a notícia de que as aulas presenciais iam regressar, soltou uma palavra de luz: “Fiquei em êxtase.” Mas, por trás desta felicidade pura, o medo — marca nova desta geração. “Não pensei que ainda fosse ter direito a isto naquele ano letivo e tinha algum receio porque achava que tinha perdido ritmo de estudo.”

O novo quarto parece “mais acolhedor”. A secretária está virada para a janela, vê-se Lisboa. Cantar e tocar continuam a ser a marca do refúgio de Luísa. Outro dia, a guitarra caiu no chão e partiu-se — “foi uma desgraça muito grande” —, mas ainda há o piano e o cavaquinho. E a voz que vem de dentro. Quando soube que iria haver novo confinamento, não houve revolta, mas concordância. “Não queria estar em casa, mas senti que era necessário. Era o que tinha de ser.” E também o 11º ano ficou carimbado com a ausência.

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“Tirei esta fotografia do meu cão com a minha mãe a meio da quarentena porque, honestamente, tinha só saudades de fotografar e era das únicas coisas que conseguia.”
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Esta fotografia do meu cão com a minha avó foi tirada por mim na primeira vez que “desconfinei” para irmos almoçar com família.
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Foto do início do meu verão. Estava super feliz porque estava com amigos pela primeira vez em 2020.
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Uma das fotografias da campanha para a associação de estudante que fizemos na minha escola este ano, mesmo com covid-19.

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Esta fotografia é muito importante para mim, porque estão comigo as minhas 3 melhores amigas em Tróia a ver o pôr-do-sol.
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Uma fotografia que eu tirei ao meu melhor amigo em Entrecampos durante a quarentena enquanto “respirávamos” um bocadinho.

E é então que se fala de esperança. “Estamos muito esperançosos de que esteja tudo bem na altura da nossa viagem de finalistas. E, se não der, já combinámos, nem que seja no Alentejo, vamo-nos juntar. Nem colocamos outra hipótese”. Porque é disso que falam: do futuro, um futuro sem vírus, com proximidade física, com direito aos ritos de passagem. “Só falamos do que virá de bom. O nosso tema é o que vamos fazer quando isto acabar. E as médias que temos de ter para entrar na faculdade. Conversas sobre o futuro. A pandemia será algo de que nos vamos lembrar mais tarde.” Resiliente, Luísa resume: “Afinal, foi só um ano das nossas vidas. Mesmo que mais tarde, as coisas vão acontecer. E vai ter piada.”

A depressão não ocupou espaço neste quarto. “O que senti mais foi um cansaço. E já sei que o regresso vai exigir um processo de adaptação que terá de ser mais rápido do que foi da primeira vez.” À frente, um objetivo: entrar em Relações Internacionais. E voltar a andar de metro, “com pessoas que não conheço à minha volta”.

📷👧🎸

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Laura Lemos 
18 anos 
Vive com a mãe
 E um irmão de 13 anos 

Laura
 Laura Lemos 
 18 anos 
 Vive com a mãe 
 E um irmão de 13 anos 

Laura, a humanista

“Sempre tive uma relação muito próxima com o meu quarto, é o meu espaço.” Paredes preenchidas por postais, recortes de livros, coisas perdidas pela casa em que Laura se reencontra. Um mapa da jovem que começou a conversar connosco ainda tinha 17 e que já completou 18, mas ainda está no quarto de que gosta. No 12º ano de Humanidades, ainda não tem total certeza, mas encaminha-se a passos largos para escolher Cinema. Entre o que pretende um dia ver projetado num grande ecrã e o que assiste em ecrãs mais pequenos, conta que o quarto é o “espaço para estar sozinha, num diálogo interior”, o local onde sente “as coisas mais abertamente”. Este terreno de privacidade é seu desde há cinco anos e foi sempre com “grande liberdade” que o ocupou e preencheu da forma como mais queria — “adaptei a decoração como reflexo da pessoa que sou”. Quem é Laura? Alguma coisa entre os seus livros e plantas. E muito mais.

Mas tudo a pandemia mudou nesta relação ocupante/espaço ocupado. “Tornou-se sufocante por ser obrigatório. Fez-me sentir restrita.” Antes, quando estava em casa, era no quarto que passava mais tempo. Depois do vírus, saiu, em busca da família. “Tive a sensação de que me faltava alguma coisa.” E mudou os objetos de lugar. Se ela não se podia mexer, mexia nas coisas. Passou a ter uma secretária, que, entretanto, já foi despachada porque ocupava muito espaço e o quarto é pequeno.

“Todos precisamos de refúgios, de sítios de escape, mas o quarto pode ser também um espaço de liberdade de expressão.” Talvez por isso, entre o público e o privado, Laura deixe sempre a porta do quarto entreaberta, até porque, garante, “ninguém entra sem antes bater”. Um quarto resguardado do resto da casa, num canto um pouco mais afastado. “O quarto chega-me”, resume a mesma Laura que também diz sentir-se limitada. Ambígua, afirma que “os espaços exteriores também podem ser um refúgio, um jardim, o café, a casa de um amigo”, mas estes foram-lhe vedados.

E como é que a idade que se fez sinónimo de inconformismo aceitou também tantas fechaduras? “Tenho a certeza de que a insubordinação aconteceu, mas também fiquei surpreendida com a forma pacífica como aceitámos o que nos aconteceu.” Nunca discutiu com a mãe a exigir ir à rua, mas reconhece que “houve momentos de quase desespero, partilhado com as outras pessoas da casa. Foi difícil para todos, uma altura de ansiedade, solidão e preocupação”.

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Selfie da Laura
2021

O que mais faltou foi o toque, “os abraços e beijinhos, indispensáveis”. O namoro entrou em modo pausa durante o primeiro confinamento e quando voltou, “já não tinha a mesma espontaneidade”. Porque, e parece o título de um filme muito antigo, “subitamente houve coisas que mudaram”. O quê? A própria Laura: “O confinamento foi um período de grande crescimento e de muito desenvolvimento. Antes dedicava-me muito às relações com os outros, com a pandemia tive de passar muito tempo comigo mesma. Foi algo que tive de voltar a aprender.”

Novo confinamento, novas mudanças. “Foi bastante diferente, o meu espaço mental tinha mudado, a solidão trouxe muita análise. O segundo confinamento não foi tão produtivo, não estou tão em contacto comigo própria. Já é demasiado tempo, demasiado cansativo. Aceitei este segundo confinamento com mais dormência. Uma barreira de proteção ergueu-se.” Sempre que está sol, Laura procura a varanda, o ar que lhe chega. E a sala e a cozinha, “para equilibrar”. Porque já não dá “tanto espaço à solidão”. Por isso, saiu. Para ver o namorado, para passear.

E em fases, em ondas, também a dedicação à leitura se ressentiu do cansaço de tanto isolamento. “Enquanto no primeiro confinamento li imenso, agora tenho mais dificuldade em concentrar-me, em entrar nos livros.” Também aqui o espaço foi uma condicionante — “faz-me confusão o ambiente de trabalho, das aulas, ser o mesmo ambiente de lazer”. E para lutar contra a modorra, Laura mudava de roupa para as aulas, “não só para estar apresentável, mas porque é uma forma de expressão de que não abdico nem vou abdicar”.

Apesar de todos os esforços, de todos os diálogos, foi impossível não se sentir abeirar da depressão. “Esse isolamento não tem nada a ver com a nossa vida, especialmente na adolescência, quando devíamos estar a experimentar o que é novo e a viver aventuras.” Mas quando a melancolia tenta entrar, Laura afasta-a. É verdade que várias vezes sentiu muita vontade de “abrir a porta e sair, esse desejo está sempre lá”. Sai e passeia sozinha, a mãe até a incentiva. Acabou de completar 18 anos e o irmão de 13 não foi um obstáculo, mas uma companhia. Agora, é regressar e reaprender a abraçar o mundo com espontaneidade.

🎥👧📚

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Francisca Louro 
14 anos 
Vive em guarda partilhada 
Dois irmãos mais novos 

Francisca
 Francisca Louro 
 14 anos 
 Vive em guarda partilhada 
 Dois irmãos mais novos 

Francisca, a equilibrista

Na casa da mãe, o quarto passou de cor de rosa ao branco e castanho, matizado de verde. Na casa do pai, cinzento, com riscas. Passou dos 13 aos 14 anos. Do oitavo ao nono ano. Do cumprimento rigoroso ao cansaço rotineiro. Sempre Francisca. Filha de pais divorciados, foi dividindo os confinamentos entre as casas do pai e da mãe. Na primeira, com um quarto só seu, na segunda, o espaço é partilhado com a irmã de nove anos. Exercícios de equilíbrio.

“Gosto de ter o meu mundo, que batam à porta para poderem entrar”, contava no primeiro confinamento, agarrada ao quarto individual da casa paterna, onde passava a maior parte do tempo, num espaço moldado à sua imagem e semelhança. Na casa da mãe, acabava por ir parar à sala. “Sempre pensei que ia ser uma teenager normal e depois veio a pandemia e foi difícil porque gosto de me sentir independente.” Como, num ano atípico e em que a liberdade foi o bem mais escasso?

Por companhia mais presente, o telemóvel. Para ver e partilhar vídeos no TikTok, para estar no Instagram, para trocar mensagens, para falar, para ver séries. “Está lá a minha vida.” A adolescência na palma da mão, mais pequena ainda do que o quarto.

“Quando voltámos às aulas depois do primeiro confinamento, pensei mesmo que estava tudo resolvido, mas rapidamente fiquei em choque quando, um dia, a professora disse que eu teria de ir imediatamente para casa porque o colega que se sentava ao meu lado tinha covid. O meu segundo confinamento começou 15 dias antes do resto das pessoas. Fui para casa da minha mãe, para o quarto e tinha muito medo de estar infetada.” Foi assim, de surpresa que Francisca se viu novamente fechada, desta vez, sem poder variar do quarto partilhado com o seu espaço exclusivo. Ainda por cima, sem tempo de se despedir dos amigos como da primeira vez, a solidão bateu-lhe com mais força. E o medo, companheiro certo desta geração: “Só pensava na minha avó, com quem tinha estado há pouco tempo, pensava que a poderia ter infetado, sem saber.”

Em plena adolescência, os picos de humor fizeram-se sentir. “No primeiro confinamento até gostei de fazer uma pausa e de estar comigo mesma.” Mas o tempo passou e a perspetiva mudou: “Estou muito cansada, tenho dores de cabeça. O lazer é no telemóvel e fico com os olhos ainda mais cansados porque é mais um ecrã.” E a solidão, de novidade passou a companheira: “Divirto-me sozinha no telemóvel.”

As regras mudaram de um ano letivo para o outro e, quando na casa da mãe, Francisca já não vai para a sala ter as aulas, fica agora no quarto, renovado, redecorado, amadurecido. “O cor de rosa desapareceu, agora o quarto é branco, com tons de madeira e as plantas, gosto muito mais e é a minha irmã que vai para a sala ter aulas, eu lá não me concentrava e o nono ano é mais difícil, preciso de estar mais atenta.”

“Criei raízes no meu quarto, mas morro de saudades dos meus amigos, ficou muito difícil não estar com eles. Todos os dias falo com eles por videochamadas e andamos juntos pela casa, vão comigo para a sala ou para a cozinha. A minha mãe até já perguntou se mudaram aqui para casa, mas precisamos de estar juntos.” E mais uma vez, o ausente mais sentido é o abraço. “Tenho muita necessidade de abraçar quem gosto, dá-me um sentimento de conforto, que eu já não sinto há dois meses.”

O segundo confinamento identificou-se com o cansaço e a irritação. “Estou muito mais irritada, sem paciência, todos percebem, a minha mãe e a minha irmã estão sempre a dizer.” E não há passeios higiénicos que calem esta ansiedade juvenil. Isso, apesar de também sentir um certo imobilismo, que a agarra a casa e dificulta dar o primeiro passo rumo à rua. “Mudou muito em mim, mas não vai ser o confinamento que nos vai atrapalhar no futuro, mesmo que as recordações da pandemia estejam sempre comigo. Não foi um trauma, mas não deixou de ser assustador. Tivemos de crescer muito rápido porque tínhamos muita responsabilidade em cima de nós.” E tiveram de aprender que a vida podia ter de ser “acordar, comer, estudar e falar ao telefone, e só isso”, presos numa rotina a que nunca se habituaram completamente. “Parecíamos marionetas.”

👧🎧

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Mariana Durão 
18 anos 
Em 2020 vivia com os pais em Lisboa 
Agora vive com amigos da faculdade, em Évora 

Snow
 Mariana Durão 
 18 anos 
 Em 2020 vivia com os pais em Lisboa 
 Agora vive com amigos da faculdade, em Évora 

Mariana, a inconformada

E foi essa certeza que os apascentou. “Nós percebemos a gravidade da situação e fizemos valer o nosso acesso à tecnologia. Houve consciência coletiva e assumimos a nossa responsabilidade, somos rebeldes, sim, mas fiquei espantada e até revoltada com a ignorância que as pessoas demonstraram ter em relação aos jovens, quando disseram que éramos nós os responsáveis pelo crescimento do número de casos. É verdade que tive colegas que saíram de casa durante o confinamento, mas estes levaram muito na cabeça de nós.” O desabafo sai de uma só vez, como se algo estivesse entalado.

O maior ausente nestes tempos de chumbo? “O contacto físico, os abraços.” A carência não se converteu em regresso à infância, com tanto peso era impossível. No primeiro confinamento, Mariana guardou os peluches, diz que ocupavam muito espaço. Onde? No quarto ou na afirmação de uma nova maturidade? Em 2020 ainda dizia: “O meu quartinho é a minha personalidade, só entra quem eu confio, é o que quisermos ser, é o meu mundo e não é imaginário.”

Mas, a vida não parou, mesmo quando o mundo parecia congelado. E Mariana entrou para a faculdade e mudou-se para Évora, onde está a estudar Relações Internacionais. “Há muito que queria sair de Lisboa, já vou na segunda casa, agora divido com os meus amigos, tenho um quarto individual, o que nos torna mais livres.” A prancha e a cadeira de jardim ficaram na casa dos pais, vieram as luzes, um computador novo, mantas e fotografias, mas, sobretudo, vieram os peluches. Aqueles que ocupavam muito espaço, souberam fazer-se presentes e necessários. “Para matar as saudades.”

A vida em comunidade trouxe um “ainda maior sentido de responsabilidade”. Com a pandemia, já não basta ter de ter cuidado para não infetar os pais, irmãos e avós, agora é preciso acautelar a saúde dos amigos com quem se partilha a casa onde se vive. Por isso, assumiram o compromisso que dali só saem para visitar as respetivas famílias e a privacidade passou a ser resultado de diálogo. Nada é dado, há que conquistar o que se quer ou precisa. “Temos de respeitar os espaços uns dos outros.”

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Peluche antigo que foi com Mariana para Évora

O segundo confinamento não foi fácil, trouxe a sombra de novas perdas, antecipação de desistências do futuro. “Começámos a pensar que as coisas poderão não estar resolvidas quando chegar o verão. Estamos numa fase da vida em que queremos conhecer pessoas novas, estar em grupo, frequentar esplanadas e cafés. Estamos fartos e a esperança começa a ser escassa.” Um discurso parco para alguém tão jovem. Contaminado.

“Estamos todos com vontade de sair, pensamos nas festas, nos amigos, mas aí vem a responsabilidade e ficamos em casa, fazemos as nossas próprias festas, mas começamos a estar esgotados.” E não há como escapar à conversa sobre o estado da saúde mental: “Acabou por ser afetada porque o quotidiano é esgotante e monótono.” E os rituais de passagem fizeram-se estranhos, como a praxe virtual por Zoom.

Uma certeza Mariana já tem: “Este ano que passou vai fazer a diferença. Roubaram-nos o primeiro ano da faculdade e temos medo de ficar sem o segundo. É muito triste porque não vivemos o período pre-adulto a que tínhamos direito. Não houve transição.” Aceitaram o que lhes deram e a mais não tiveram direito. Amanharam-se.

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“Foi assim, de um dia para o outro, que a transformação se deu. Não a vi chegar, nem percebi como era importante. De súbito ela invadiu, mais do que qualquer coisa, não havia tempo para reagir. Aliás, combatê-la teria sido impossível, a vida estava apenas a seguir o seu curso normal; fiquei espantada.”
Maria Julieta Drummond de Andrade, “A Busca” (1980)

O que fica destes diálogos

Visitados os quartos e estabelecida a conversa com as quatro raparigas, o que permanece? O que tocou uma geração confrontada com a necessidade de isolamento como forma de sobrevivência? O que vai para lá do contacto e gera pensamento? Como a virtualização das relações alterou a forma de estar de adolescentes e jovens?

“A primeira questão que se levanta é saber como definem os adolescentes a privacidade e que sentidos e dimensões envolve uma vez que não mais é possível a tradicional dicotomia entre o que é privado e o que é público nos termos em que outras gerações o faziam, mas, na verdade, muito pouco sabemos e pouca investigação tem sido feita que nos revele concretamente o que crianças e adolescentes entendem por privacidade”, questiona Maria João Leote, socióloga e investigadora do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa. Até porque, diz, “não é possível generalizar, mas impõe-se não fechar o olhar estritamente nos quartos dos adolescentes como espaços sem qualquer regulação, quando muito do que aí se passa pode estar a acontecer precisamente de modo similar no quarto ao lado, o dos pais. As práticas dos filhos, mas também muitas dos pais que atualmente marcam as relações na família, mudaram dos territórios físicos para os territórios virtuais”.

O cansaço sentido pelas jovens não surpreende Cristina Ponte, investigadora do mesmo centro, com a especialidade de Estudos de Infância e Media, para quem, “o meio digital permite uma constante exposição ao outro, exige uma performance permanente, submete os adolescentes a uma avaliação num território em que têm de aprender a gerir expectativas”. Um espaço que gera, por isso, a necessidade de um desligamento, que passaria pelo conceito de quarto, de território próprio e privado, mas que a pandemia veio alterar. “O quarto deve ser um espaço de libertação desta constante exposição ao outro e à sua avaliação”, explica a investigadora.

A presença dos meios digitais é intrínseca a esta geração, habituada a mediar as suas relações com os colegas através destes dispositivos. Mas o confinamento tornou-lhes mais evidente a diferença entre a presença face a face e a relação mediada. “Estão a perceber a diferença entre o que era antes e como ficou depois da pandemia e a mudança que implicou na relação física”, afirma Cristina Ponte. Pese embora, para esta geração, os aparelhos dependam do espaço em que são usados, sendo percebidos mesmo como uma extensão do corpo de cada um, permitindo-lhes uma autonomia no meio digital que não conseguem alcançar no espaço público.

Estatisticamente, a investigadora considera ser muito relevante o facto de 90% dos inquiridos nas pesquisas do projeto EU Kids Online, realizado em 19 países europeus entre 2017 e 2019, com 10 a 14 anos, referirem que se sentem seguros em casa. Mas não deixa de referir que a adolescência é por natureza “a fase crítica das transições”. E, apesar de seguros, é também verdade, recorda, que muitos dizem não serem ouvidos pelos pais. “Muitas crianças e jovens ficaram entregues a eles próprios porque os pais tinham de trabalhar, logo, ficaram mais expostos a fatores de risco e, neste ponto, a questão do género tem algum peso.”

Por isso, diz não ser espantoso que as raparigas menos favorecidas tenham recusado participar no trabalho do Expresso: “Elas sentem o desafio da construção da privacidade quando não têm espaço para o fazer e não se quiseram expor nas suas fragilidades e condições reais de vida, enquanto, através das partilhas no digital, com os colegas, conseguem criar um mundo que é só delas.”

Já em 1993, Siân Lincoln, no artigo “My bedroom is me: young people, private space, consumption and the family home”, afirmava que “um quarto de dormir na casa da família é muitas vezes considerado pelos jovens como um dos primeiros espaços sobre os quais eles são capazes de exercer um nível de controlo, propriedade e regulamentação e onde podem alcançar algum nível de privacidade longe dos desafios da vida quotidiana. É um espaço que os jovens podem chamar seu, podem decorar de acordo com os seus gostos atuais e podem regular quem pode e quem não pode entrar naquele espaço”. E, “embora os quartos sejam, em muitos aspetos, espaços funcionais para os jovens, por exemplo, fornecem um espaço para dormir ou fazer os trabalhos de casa, também são espaços significativos que nos podem dizer muito sobre a vida adolescente, a cultura jovem e o consumo”.

Muito mais recentemente, Frances Rogan, em 2017, sublinhava que “o conceito de culturas dormitório é particularmente interessante no contexto dos media sociais, porque é um local onde questões de público e privado, visibilidade e audibilidade são continuamente negociadas pelas mulheres jovens. Para os jovens de hoje, as redes sociais perturbaram algumas das linhas tradicionalmente de género que estabeleceram previamente fronteiras firmes entre o que é culturalmente entendido como público e o que é considerado privado”. O que, explica a investigadora, “de muitas maneiras, abriu mais possibilidades participativas para as mulheres jovens, uma vez que não estão mais necessariamente confinadas ao privado, mesmo quando seus corpos estão fisicamente presentes nos espaços domésticos”.

Raparigas de Lisboa, entre os 14 e os 18 anos, com vivências distintas, mas unidas por um confinamento compulsório que lhes condicionou as experiências da adolescência. Sem direito a todos os rituais de passagem e momentos simbólicos que esperavam vivenciar, protegidas por casas confortáveis e famílias que não as obrigaram a constrangimentos inultrapassáveis. Sem queixas de violência doméstica e marcadas pela esperança de um futuro menos limitado e mais concretizador. Um retrato de quatro jovens e dos seus espaços privados, das suas opções e dos seus medos. Um sinal de como a pandemia tocou uma geração e que rasto poderá deixar.