Nós, os ecopatetas

ReportagemJosé Cedovim Pinto

Outubro 2020

Nós, os ecopatetas

ReportagemJosé Cedovim Pinto

Agosto 2020

O estado de saúde da reciclagem em Portugal é complicado, não menos complicada é a relação que a maioria dos portugueses estabelece com o desperdício daquilo que consome. Já deixou caixas de pizza sujas de gordura no contentor azul? Pois… Não devia. E jarras ou pratos partidos no vidrão? Cd e dvd no recipiente dos plásticos? Tudo errado. Estamos atrasados cerca de 20 anos em relação aos países que melhor reciclam, como a Alemanha e a Áustria.

No final de 2019 o Expresso entrou num camião de recolha para perceber o que acontece ao lixo dos residentes do concelho de Cascais após ser depositado nos pontos de recolha espalhados pelo município. Daí seguiu-lhe o rasto até à Estação de Tratamento de Resíduos Sólidos Urbanos, Tratolixo, e o subsequente encaminhamento para os recicladores finais. O que acontece ao papel, ao vidro e ao plástico que é separado e reciclado? O Expresso procurou respostas e percebeu os maus hábitos que ainda imperam por cá. Em pleno século XXI é preciso explicar, desmistificar e vincar a certeza de que na relação de cada português com o meio ambiente ainda há muito para mudar.

Entretanto, caiu-nos uma pandemia em cima, com o que isso significou de aumento de máscaras, luvas e plásticos de utilização única - um peso na produção do lixo que só em 2021 conseguiremos de facto avaliar. Para já, os dados do relatório de resíduos urbanos de 2019 mostram-nos que Portugal produziu mais lixo, mas continuou a reciclar pouco e a enviar mais de metade do lixo para aterros. Em setembro de 2020 a taxa de gestão de resíduos duplicou, o que significa que as penalizações no envio de lixo para aterros são agora maiores. Certo é que a União Europeia tem metas ambiciosas para os valores de reciclagem até 2035, mas Portugal está longe de conseguir números aproximados. Somos capazes de melhorar drasticamente na reciclagem nos próximos anos? Estamos à espera de quê? Nesta grande reportagem os especialistas na matéria não se mostram otimistas e atiram-nos à cara: os portugueses são ecopatetas.

Estamos em 2020. Já não há desculpas.

O que está mal?

Para Carmen Lima, coordenadora do Centro de Informação de Resíduos da Quercus, “a reciclagem começa pela participação de todos: de quem separa o lixo em casa, de quem o separa no Ecocentro, dos recicladores, de quem incorpora a matéria prima reciclada em novos materiais e do consumidor final”. No entanto, em todas estas fases há problemas. “Somos ecopatetas. Andamos a contribuir para a criação de fluxos alternativos de lixo que acabam queimados em lixeiras a céu aberto, a boiar em rios e mares. A única forma de levar água ao moinho de toda a gente envolvida na reciclagem é atribuir valor à matéria prima”, expica Ricardo Diogo, diretor comercial e administrador na Ambigroup Reciclagem, empresa de reciclagem de metais, plástico e tratamento de resíduos elétricos e eletrónicos.

Tudo começa no modelo económico. As entidades gestoras de resíduos (Sociedade Ponto Verde, Novo Verde, Electrão, Valormed para resíduos de embalagens e medicamentos e Sigeru para resíduos de embalagens em agricultura) nasceram com a finalidade de criar modelos económicos. Estes permitem financiar o Sistema Integrado de Gestão de Resíduos (SIGRE) de forma a serem atingidas as metas comunitárias. As entidades gestoras são responsáveis por apresentar a estratégia e o investimento necessários ao custeamento da recolha e tratamento dos resíduos em Portugal. Segundo Rui Berkemeier, engenheiro ambiental e colaborador da Associação Zero na área dos resíduos, o primeiro problema “assenta na subavaliação do valor que deve ser pago pelas empresas que colocam as embalagens no mercado e em circulação". "O modelo económico de gestão das embalagens está desvirtuado, não suporta os custos necessários ao cumprimento de metas e não permite uma aposta maior em tecnologia que facilitaria o aumento nas percentagens de reciclagem.”

Muito desse déficit resulta do facto de alguns produtores nem sequer pagarem a taxa aplicada por tonelada às embalagens postas em circulação no mercado (o ecovalor). Há 1 milhão e 250 mil toneladas que aparecem no lixo e apenas 700 mil pagam o devido imposto. Isso traduz-se num “buraco” contributivo de várias dezenas de milhões de euros da parte das entidades produtoras, o que prejudica o modelo de negócio e a eficácia da reciclagem.

“A colocação no mercado de produtos embalados está sujeita a legislação específica no que se refere aos resíduos de embalagens. Desta forma, na qualidade de colocadores no mercado nacional de produtos embalados, cujas embalagens serão descartadas pelo consumidor doméstico, transferimos a responsabilidade pela gestão dos resíduos de embalagens a uma entidade gestora - a Sociedade Ponto Verde -, à qual efetuamos declarações periódicas da quantidade, em peso, de embalagens colocadas no mercado e sobre as quais efetuamos o pagamento das respetivas prestações financeiras”, explica ao Expresso fonte da Auchan. Partindo do princípio da responsabilidade alargada do produtor, e sendo ainda efetuadas declarações anuais da quantidade de embalagens colocadas no mercado na plataforma eletrónica da Agência Portuguesa do Ambiente, fica o enigma por resolver relativamente à diferença entre as embalagens declaradas e as que aparecem no lixo.

O dia a dia de uma equipa de recolha de lixo é de azáfama. Só assim se consegue cumprir um itinerário dentro do horário previsto. E isto é regra para Cascais ou qualquer outro concelho do país: sempre em máxima rotação. Conduzir o camião, verificar cada contentor à chegada, manobrar a grua, limpeza do posto de recolha, anotação do estado de contaminação ou a existência de outros materiais fora dos depósitos. “As pessoas pensam que mandamos tudo junto para dentro do carro do lixo. Isso não existe, é um mito. Cada circuito tem dias específicos. Ainda assim vejo mais gente com vontade de fazer bem a reciclagem. Por desconhecimento fazem-na de forma errada: colocam vidros de janelas e espelhos no vidrão, caixas de pizza com gordura no papelão e plástico que não é embalagem no embalão”, afirma Bruno Lucas, motorista de pesados e manobrador de grua da Cascais Ambiente.

Nos centros de triagem, que podem ser intermunicipais ou multimunicipais, é mais do mesmo: “Aqui chegam pára-choques, estores, computadores. Continua a existir um conceito errado de como reciclar. Não é por estes materiais terem componentes de plástico que devem ir parar ao contentor amarelo”, refere Nuno Simões, diretor do Ecoparque de Trajouce, em Cascais. “Muitos destes materiais não cabem no ecoponto. Há muitos operadores de recolha a fazer mal o seu trabalho.”

Para a gestão integrada dos resíduos urbanos (RU) previram-se dois tipos de entidades: os municípios ou associações de municípios, em que a gestão do sistema pode ser concessionada a qualquer empresa, e as entidades multimunicipais, cujos sistemas são geridos por empresas concessionárias. Existem 23 SGRU (Sistema de Gestão de Resíduos Urbanos) cobrindo a totalidade do território continental, sendo 12 multimunicipais e 11 intermunicipais. Cada um destes sistemas possui infraestruturas para assegurar um destino final adequado para os resíduos urbanos produzidos na área respetiva.

Os modelos económicos são obsoletos e os portugueses reciclam pouco e mal. No fim, tudo desemboca e afunila num “o próximo que resolva”. O material indevidamente colocado nos ecopontos é considerado ‘contaminante’ e prejudica a eficácia nos centros de triagem, pois estes têm de calcular o rácio entre energia gasta e mão-de-obra para poderem triar materiais sem comprometerem o equilíbrio económico. “A reciclagem poderia ter outra qualidade se os resíduos voltassem a entrar mais que uma vez na linha de seleção, mas isso é incomportável. Ninguém financia isso”, conclui o engenheiro ambiental Rui Berkemeier.

No fim da linha estão os recicladores, que pagam pela matéria-prima que compram em leilões e que tem de ser novamente triada devido à contaminação que os resíduos ainda trazem. Vejamos os circuitos do lixo e o que falta para melhorar o processo de reciclagem:

Plástico

Talheres, CD, panelas? No ecoponto amarelo entra tudo, mas não devia

Em 2019 foram produzidas em Portugal 5,281 milhões de toneladas (t) de RU (resíduos urbanos), mais 1% do que em 2018, verificando-se um ligeiro aumento na produção, quando comparado com anos anteriores. No entanto, só cerca de 11% dos materiais plásticos e metálicos recicláveis foram retomados para reciclagem. No papel e no vidro os números situam-se nos 33% e 48%, respetivamente. Da totalidade de RU (há ainda resíduos volumosos, finos, verdes, perigosos, textêis, textêis sanitários, bioresíduos, compósitos, madeira e outros resíduos) , apenas 21,5% foram reciclados, sendo que a meta para 2025 se situa nos 55%. São os índices menos conseguidos ou abaixo dos objetivos impostos pela União Europeia que expõem as fragilidades do modelo operacional em vigor e permitem tirar ilações em conjunto. Carlos Caldeira, cantoneiro da Cascais Ambiente, não tem dúvidas: “As pessoas já nos respeitam mais, já não somos apenas os homens do lixo. No entanto, 80% das pessoas são ignorantes no que toca à reciclagem e onde devem colocar cada resíduo. Por vezes erram por desconhecimento, outras apenas por preguiça. Nós sabemos [reciclar] porque é esta a nossa vida”.

Há quem defenda uma aposta na informação como meio de “educação social” mas as opiniões divergem. Joana Balsemão, vereadora com o pelouro do Ambiente e Cidadania da Câmara de Cascais, prefere olhar para o início da cadeia: “Convém não esquecer que antes do ‘R’ de reciclar vem o ‘R’ de redução. Produzir menos com base em estratégias de marketing, criando uma consciencialização verde coletiva”.

Ricardo Diogo, diretor comercial e administrador na Ambigroup Reciclagem, traça laconicamente o retrato do panorama geral: “Hoje em dia está na moda a economia circular. Mas é preciso que haja uma otimização e reaproveitamento da matéria prima com o mínimo de energia e de recursos possíveis. Se não existir este equilíbrio, estamos a falar de eco quê?”.

No círculo (imagem associada à reciclagem) económico e material dos resíduos, são variadas as fases e os intervenientes no processo de dar nova vida aos materiais. No caso das embalagens de plástico, existem diversas tipologias que seguem diferentes caminhos. Desde o PET ou PETE (tereftalato de polietileno), que está presente em garrafas de água ou refrigerantes, o PEAD (polietileno de alta densidade), que compõe os produtos de higiene e detergentes, o PEBD (polietileno de baixa densidade), usado na fabricação de sacos e fita-filme de paletes, o PP (polipropileno), aplicado em caixas de CD, ao PS (poliestireno), mais presente nas caixas de ovos e nos iogurtes, todos têm de ser eficazmente separados para não se perderem ativos recicláveis.

Na Tratolixo, empresa intermunicipal de tratamento de resíduos, procura-se maximizar o aproveitamento das matérias-primas mas nem sempre é uma tarefa fácil. Nuno Simões, diretor do Ecoparque de Trajouce, em Cascais, recebe no centro cerca de 40 toneladas diárias de produtos provenientes de Sintra, Cascais, Oeiras e Mafra, mas todos os dias enfrenta desafios hercúleos. “Separar por tipo tanto material - e tão contaminado como vem - já nos obrigou a fazer adaptações às linhas. Vamos separando mas andamos a fazer um trabalho muito além do que era suposto.” Após a triagem, os lotes são enviados para retoma pelos recicladores.

A Extruplás, empresa dedicada à recuperação e ao fabrico de produtos plásticos, absorve mil toneladas mensais de plásticos mistos (outra tipologia) desde 2007, que até então iam parar a aterro. Sandra Castro, diretora-geral da empresa, trabalha com objetivos muito claros: “Nesta empresa tenta-se diminuir o desperdício até bem próximo dos 0%. Tudo o que não conseguimos aproveitar por não ser plástico é encaminhado para outros recicladores que tratam de dar um destino adequado aos produtos".

Papel

Autocolantes e caixas de pizza com gordura? Não, obrigada

Ao contentor do papel vão parar fraldas, guardanapos e muito papel plastificado. “Junto com o papel pode chegar um bocadinho de tudo, desde plásticos a capas de telemóvel ou embalagens de iogurte”, o que dificulta e muito o trabalho de reciclagem. “Os agentes poluentes obrigam a ter um sistema de crivagem muito rigoroso porque qualquer partícula de plástico - ou de outro material - misturado com a pasta reciclada traduz-se, na fabricação do papel, num buraco”, afirma Luís Saramago, diretor de marketing da Renova.

Já para Ricardo Diogo, diretor comercial e administrador na Ambigroup Reciclagem, não há que enganar: “As embalagens que vêm da recolha seletiva estão, regra geral, num estado aceitável de contaminação. O problema está no que chega pela via do lixo indiferenciado. É triado num sistema de triagem mecânico e biológico, traz lixo orgânico agarrado, e nem sempre esses centros possuem o equipamento adequado”.

Seja no papel ou no metal, existem duas formas dos centros de triagem criarem os lotes que disponibilizam aos recicladores. Se a separação for bem feita pelo consumidor, os materiais chegam mais limpos às linhas de separação. Não obstante a contaminação com outro tipo de produtos, da recolha seletiva é relativamente fácil apresentar lotes com mais rigor na qualidade e na limpeza. Todo o lixo que o cidadão não separa segue um caminho diferente até aos centros de tratamento mecânico e biológico. Estes têm duas funções claras: aproveitar os restos de comida para transformá-los em composto e aproveitar todos os resíduos que ainda são recicláveis. Naturalmente, por estes terem estado em contacto com matéria orgânica, apresentam uma menor qualidade.

Solução? Segundo Ricardo Diogo, está no equilíbrio: “Vejamos, por exemplo, o caso do Brasil. Lá existe uma outra organização no que toca à recuperação de latas. Cada uma tem um valor unitário - daí existirem os chamados ‘catadores’, que não são mais que simples pessoas que recuperam lixo - e desta forma não se perde material reciclável”.

Nuno Simões, diretor do Ecoparque de Trajouce, em Cascais, ainda acrescenta que nem sempre todo o papel passa pelos centros de triagem: “Sempre que o mercado está em alta notamos uma falta deste material. Isso está relacionado com a indústria paralela, que se traduz num aliciamento ao pequeno comércio, ao não depositarem as embalagens nos ecopontos mas sim vendendo-as diretamente a ‘sucateiros’, que também passaram a negociar e a operar neste ramo. A consequência direta é, mais uma vez, o desvirtuamento do modelo de negócio".

Vidro

Sujo e maltratado, ser de vidro não é fácil em Portugal

Não é suposto encontrar um animal morto no ecoponto mas acontece. À Maltha, empresa da Figueira da Foz que limpa o vidro para a indústria vidreira, já chegou um pouco de tudo: “Os camiões chegam cheios de vidro contaminado. Já aqui tivemos granadas, morteiros e até animais mortos que nos param a fábrica”, revela José Oliveira, gestor fabril. As consequências destas ações são pagas a peso de refugo, que deveria estar entre os 2%/2,5% - que corresponde aos objetos normais que acompanham as embalagens de vidro, como caricas, rolhas, papel de rótulos - mas que por vezes passa dos 15%. “Temos de andar a comprar vidro no estrangeiro para repor as quebras dos nossos contratos com os clientes.”

Sendo uma intermediária na redistribuição do vidro para o mercado nacional, a Maltha dedica-se a recolher e a limpar este material desde 1999. Tudo o que são garrafas, boiões ou garrafões passam por lá e chegam de todo o país. Grande parte destas embalagens pertence a empresas da área vidreira, outra parte é comprada por eles para suprir necessidades-extra das marcas.

Quando o vidro chega é pesado nos camiões, leva um controlo visual e nem sempre é aceite devido à elevada contaminação. E não é acaso este ser o resíduo que aparece mais contaminado. A lógica economicista subjacente à reciclagem prevê a atribuição de valor à recuperação de cada material. Os cálculos fazem-se ao peso por tonelada: 21 euros para o vidro, 29 euros para o alumínio, 120 euros para o papel e cartão, 201 euros para o aço e 203 euros para o plástico. Sendo que o vidro é o material com menor valor associado, não é difícil perceber as razões de tanta contaminação: “O vidro é um fluxo que segue de uma forma muito crua para o reciclador. Se o produto tivesse um valor superior financiado pelo SIGRE (Sistema Integrado de Gestão de Resíduos Urbanos) seria possível ser triado. Assim não nos restam muitas opções”, afirma Nuno Simões, diretor do Ecoparque de Trajouce, em Cascais.

Indiferenciado

Reciclar pouco e mal tem um preço - e não é barato

Em Portugal os números não mentem e, independentemente da fórmula que se aplica na sua análise, a realidade está longe de ser otimista. Cada português produz anualmente cerca de 511 quilos de lixo, uma média de 1,4 quilos por dia. E separa mal o que deita fora. Em 2019 reciclou-se 13,1% de plástico, papel, metal e vidro e 8,4% de resíduos orgânicos (somados dão um total de 21,5). 3,3% tiveram outras valorizações (essencialmente utilização nos aterros), ou como é o caso do óleo alimentar, que é transformado para a produção de biodiesel - o que não é considerado reciclagem. 17,4% foram incinerados e 57,8% seguiram para aterro.

Após o produto ser comprado e consumido existem dois caminhos possíveis: ter uma atitude certa ou errada perante o encaminhamento que se dá a esse mesmo produto. Cada uma terá um peso diferente no bolso dos contribuintes. Do lixo que é bem reciclado por todos e fecha o seu ciclo, o contribuinte não paga seja o que for. A história é outra no indiferenciado. Batemos de frente com as soluções fim de linha. Ao não reciclar, cada cidadão está a contribuir para o aumento da percentagem de resíduos encaminhados para incineração e aterro, obrigando o município correspondente a ter de pagar a taxa de gestão de resíduos (TGR) - que é o valor pago pelas câmaras ou pelo sistemas de gestão relativamente à deposição do lixo nesses destinos.“O dinheiro que poderia ser canalizado para ações de sensibilização ambiental é gasto assim. Acabamos todos por pagar na fatura da água a nossa inconsciência coletiva”, afirma Carmen Lima, coordenadora do centro de informação de resíduos da Quercus.

O que se paga por tonelada dos resíduos que são encaminhados para incineradoras ou aterros também não ajuda: apenas 11 euros para os aterros - valor que a partir de setembro duplicou para 22 euros - e ainda menos, 2,75 euros para a incineração, valor que também duplicou para 5,5 euros. Com este aumento da taxa maiores serão os custos envolvidos no processo e sobra sempre para os cidadãos o ónus de ter de os suportar. “A partir do momento em que foram construídos duas grandes incineradores às portas das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto foi quase um convite para que se canalizassem os resíduos para lá”, refere Rui Berkemeier. E avança com a solução para que assim deixe de ser: “Ao existirem taxas mais elevadas nestes destinos deixará de existir o fomento destas soluções. Se não for ‘um destino barato’ deixará de ter tanta procura”. Já Inês dos Santos Costa, secretária de Estado do Ambiente, vem clarificar esta tendência ao afirmar a existência do chamado “locking”, um efeito de ‘fecho’ ou ‘habituação’ à tecnologia que seca todas as outras à volta, referindo-se à incineração: “Aqui no sul da Europa encaramos a queima dos resíduos como uma fonte de energia renovável, daí que se procure em larga escala a queima dos resíduos. Assim já não acontece no norte da Europa. Tem que ver com a estratégia de cada país”.

No entanto, a grande percentagem do ‘renovável’ que advém da queima dos resíduos está associado às matérias orgânicas - que são de recolha obrigatória na casa dos portugueses a partir de 2023. Todos os outros componentes são parcos em aproveitamento energético. “Desperdiçam-se materiais recicláveis e ao queimar-se plástico está-se a libertar CO2 fóssil. É o mesmo que queimar petróleo ou carvão”, conclui Rui Berkemeier.

Nos aterros sanitários o maior risco é a decomposição dos tais resíduos orgânicos: caso eles não sejam retirados à cabeça libertam gás metano e de efeitos de estufa para a atmosfera vinte e uma vezes superior ao dióxido de carbono.

Futuro

Saber o ABC da reciclagem não chega. É preciso mudar a fundo

Portugal, assim como a maior parte dos países, depende de um modelo económico assente em trocas comerciais de serviços e bens. A produção exaustiva é uma resposta direta ao consumo e esta atitude gera uma paradigma: nem todos os países têm capacidade de gerir os resíduos que importam e são transacionados. Quando não há capacidade económica para lidar com os fluxos do desperdício entram em cena os negociadores (traders), que são pagos para arranjarem soluções. Na maior parte das vezes arranjam-nas em países subdesenvolvidos com a garantia de que o resíduo tem um fim decente. Regra geral essa decência cabe numa lixeira a céu aberto ou em rios atolados. O meio ambiente sai a perder e com ele todos nós.

Desde a origem do produto até à sua transformação, encaminhamento para aterro, incineração ou valorização energética, sabe-se que há muito por resolver e onde se pode evoluir. Um melhor modelo económico e um maior conhecimento de todos sobre o processo de reciclagem podem ser a base para uma evolução sustentável. Numa economia de escala e de produção em massa não deixa de ser um grande desafio procurar os R de redução, reutilização e reciclagem. Informar já não chega. Como afirma a vereadora com o pelouro do Ambiente e Cidadania da Câmara de Cascais, Joana Balsemão, “antes existia a crença de que informação era igual a mudança de comportamento, hoje já não - é preciso dar o exemplo e alternativas”.

Já João Teixeira, presidente do conselho de administração da Tratolixo, reforça que é imperativo mudar: “Não se pode pretender que se crie uma economia sustentável se a nossa predisposição ao consumo não mudar”. E Luís Capão, presidente do conselho de administração da Cascais Ambiente, vai mais longe: “É preciso capacidade governamental na capacitação dos recursos humanos que trabalham nas autarquias. É preciso que exista uma ideia muito clara do caminho que se deve seguir para melhorar”.

Num contexto de alterações climáticas ainda se aguarda a fórmula mágica: soluções perfeitas não existem e, segundo Inês dos Santos Costa, secretária de Estado do Ambiente, “eram para terem sido tomadas há 20 anos”. A recolha e tratamento do lixo em Portugal envolve mais de 500 milhões de euros anualmente mas o número pode vir a ser ainda maior. A atual situação económica e social provocada pela covid-19 - só em Lisboa a recolha de plástico/metal e de papel/cartão caiu para os 58% e 58,5% respetivamente, seis em cada dez portugueses perderam rendimentos e uma em cada 10 famílias viu, pelo menos, um dos elementos perder o trabalho - pode estar na base da total transformação do atual paradigma da reciclagem por estar provado que a sustentabilidade e a economia verde geram uma cadeia de valor, criadora de riqueza e postos de trabalho.

No início de maio de 2020, a Associação Zero enviou para o Ministério do Ambiente e da Ação Climática uma proposta com medidas que permitem criar nos próximos anos mais de 5 mil postos de trabalho diretos e permanentes neste sector. Para tal é necessário que exista investimento e fomento numa indústria que absorva mais matéria reciclada com o mínimo de energia dispensada possível e não tanta matéria em estado virgem.

O futuro passa inclusivamente pelo sistema de recolha porta a porta - já com resultados positivos em algumas cidades - e por premiar comportamentos corretos. “Enquanto Portugal continuar a varrer os números reais da reciclagem para debaixo do tapete e apresentar os números que a União Europeia quer ver, não está a criar um ‘driver’, uma motivação para a melhoria”, conclui Rui Berkemeier. Será a covid-19 o pretexto que faltava para catalisar a mudança? Uma coisa é certa: está na hora de deixar de ser “ecopateta”.

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