Neste caminho perdem-se vidas
A luta para que as mulheres não morram
a dar à luz na Guiné Bissau

Neste caminho perdem-se vidas
A luta para que as mulheres não morram a dar à luz na Guiné Bissau

Há uma década, a Guiné-Bissau estava
entre os dez países do mundo onde
as mulheres mais morriam no parto
uma em cada cem
Era a única ex-colónia
portuguesa nessa lista
Foi quando um projeto de emergência
da União Europeia levou uma
ONGD portuguesa ao país
para ajudar a estancar estas mortes

Bissau, janeiro de 2024
Ainda não amanheceu no caminho de Bissau para Catió. É no lusco-fusco que as crianças se amontoam com mochilas à beira da estrada. Os camponeses preparam as ferramentas para a lavoura do dia.
As notícias das 7h em ponto, na RDP África, mostram uma realidade que não destoa. Tal e qual o boletim meteorológico. É janeiro e está calor. A chuva não aparece para ameaçar o pó castanho que pousa lentamente nas folhas das árvores, vindo das rodas dos jipes em luta contra a terra batida.
Rumo a sul, são cinco horas de caminho para nem 300 quilómetros. Basta fugir uns metros à única estrada intacta do país, que liga a Avenida Amílcar Cabral ao aeroporto de Bissau, e o trajeto passa a fazer-se a não mais de quarenta quilómetros por hora. Devagar e aos solavancos, para fintar as lacunas do asfalto. Há tempo de sobra para apreciar o país rural e tribal que contrasta com a capital.
Saindo de Bissau, falta tudo. Falta água potável, saneamento, eletricidade. Ali, as tabancas (aldeias) dispersas apresentam sempre meia dúzia de pequenas casas aglomeradas, onde deambulam porcos, cabras e galinhas. Logo de manhã veem-se mulheres a tirarem água de poços, com balde e corda, e a triturarem cereais para farinha.
Bebés, muitos. Aos cinco e seis de cada vez. Alguns nus, a tomarem banho de balde e a tremerem de frio pelo contraste da temperatura da água com os quase trinta graus de sensação térmica do ar.
Apesar da bagagem que já têm da Guiné-Bissau, a enfermeira Cristina e a obstetra Ana ainda não se atrevem a conduzir ali. Seguem como passageiras no carro em frente. Neste dia madrugaram mais do que costume para darem início a mais uma ronda pelos hospitais do país. Do sul ao leste. Do oeste às ilhas. Há uma década, desde que integraram o projeto PIMI ( (Programa Integrado para a Redução da Mortalidade Materna e Infantil) que lhes conhecem os corredores, as pessoas e as carências.
Também para a saúde faltam a eletricidade e a água canalizada. Faltam simples seringas, luvas, compressas e medicamentos. Faltam profissionais treinados. De cada vez que um doente chega a uma urgência, além de pagar a consulta, cabe à família encontrar uma farmácia e comprar tudo quanto é preciso para ser tratado – se tiver dinheiro. No caso infeliz de uma cirurgia, acrescenta-se à lista o gasóleo para alimentar o gerador que fará funcionar o bloco operatório.
No caminho, perdem-se vidas.
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As mães

As mães

O hospital de Catió tem um ar deteriorado, dado pela fachada verde danificada e pelos panfletos já meio-desfeitos do tempo pandémico. Ao fim da manhã, com o calor a atingir o clímax do dia, muitas pessoas abrigam-se no átrio, à sombra.
Do lado direito fica a maternidade, resumida a um corredor com alguns quartos pequenos. “Está subdimensionada, é preciso ampliar”, diz prontamente o enfermeiro Ulil Balol, numa visita guiada conspurcada pelos gritos de uma mulher a dar à luz. Ouvem-se por todo o lado, perante a indiferença de todos. Dos enfermeiros, que mantém os afazeres. Das três outras mulheres, num quarto ao lado, com bebés em camas muito próximas, que se mantêm a olhar os recém-nascidos, como quem tenta decorar-lhes os traços.
Do lado oposto do edifício está a pediatria. Um corredor vazio, um quarto com crianças doentes e outro com duas “mães canguru”. Uma delas é Sanho, de 23 anos, que repousa na cama oito com o primeiro filho, “macho”, encostado ao peito da mãe, com uma coleção de mantas a envolvê-lo. Apesar de só estar programado para nascer a 11 de março, quis o destino que nascesse a 20 de janeiro, o dia em que morreu o herói nacional da Guiné-Bissau, Amílcar Cabral. E ali, sem eletricidade, não há forma de pôr as incubadoras a funcionar. O calor do corpo de Sanho tem de substituir uma máquina o melhor que pode.
Uma mulher faz "canguru" com o filho bebé, no Hospital de Catió. Danilo Vaz
Uma mulher faz "canguru" com o filho bebé, no Hospital de Catió. Danilo Vaz
Assim que chegam ao hospital, Cristina e Ana avançam para uma sala cheia de profissionais que as esperam, onde vão apresentar os novos medicamentos e as situações em que serão usados. Nós seguimos com Ulil, o enfermeiro chefe de Catió, que logo explica como foi no início, em 2013, quando o PIMI nasceu e o seu trabalho consistia em ir às tabancas mais remotas explicar que as consultas e os exames passariam a ser gratuitos para grávidas e crianças até aos cinco anos. E qual era a realidade nessa altura.
“As pessoas tinham de pagar tudo, as consultas, os medicamentos... E como as famílias são mesmo pobres nas tabancas, pagar nem que fossem mil francos (cerca de 1,50 euros) por uma consulta era muito difícil”, conta. Mais o transporte, informal, que as levaria aos cuidados de saúde. Muitas evitavam os hospitais por não terem dinheiro, numa sociedade onde a maioria das famílias vive da venda dos produtos que cultiva. Só aos poucos, com a insistência dos profissionais de saúde, é que começou a ser notada uma mudança no comportamento das comunidades.
“Ir ao hospital era um tabu, um mito.” Havia quem acreditasse que só por atravessar o rio para uma consulta a grávida morria, diz-nos. Ulil costumava atirar uma mentira piedosa para os convencer. Dizia que os bebés que nascem no hospital são mais espertos do que aqueles que nascem em casa. “Quem é que não gosta de ter um filho Presidente da República ou doutor?”, confessa, num encolher de ombros, com o som de fundo de um choro de criança.
Quando o projeto PIMI nasceu, em 2013, parte do diagnóstico foi rápido. Se os hospitais não tinham condições, tinham de ter. Se os recursos humanos não tinham formação suficiente, tinham de ser formados. Se não havia medicamentos, tinham de ficar disponíveis. Se as pessoas não tinham dinheiro, tinha de existir uma política de gratuitidade. Por isso, as primeiras medidas consistiram em formar profissionais, tornar todos os atendimentos sem custos e encher os hospitais de material e de medicamentos – uma espécie de Serviço Nacional de Saúde (SNS) para as grávidas e crianças da Guiné-Bissau.
Mas rapidamente se percebeu que os desafios eram muito maiores. No país que se declarou unilateralmente independente de Portugal há 51 anos (independência que seria reconhecida um ano depois, em 1974), ainda há um Estado por criar. Muita da vida fora dos hospitais também opera para dificultar a chegada de quem precisa. A cada passo, vários obstáculos.
Desde logo, questões culturais que, por exemplo, impedem as pessoas de doarem sangue, algo crítico quando quase metade das mortes maternas acontecem devido a hemorragias pós-parto. “Nem as pessoas estão habituadas a doar, nem existiam bancos de sangue no país. Apenas um, na capital, Bissau”, ilustra Ahmed Zaky, médico e diretor de projetos do Instituto Marquês Valle Flôr (IMVF), a organização não governamental que opera no terreno o projeto financiado pela União Europeia. Uma das tarefas do PIMI foi espalhar mais bancos pelo país. Para isso, devido à falta de luz nos hospitais, foi preciso encomendar dos poucos aparelhos no mundo que funcionam através de painéis solares, em vez de eletricidade.
A primeira paragem do caminho é nos hospitais de Catió e de Buba
A primeira paragem do caminho é nos hospitais de Catió e de Buba
Outro dos fatores externos ao trabalho dos hospitais é a degradação das estradas, que fazem o caminho parecer maior do que os quilómetros previam. Também por isso foram criadas estruturas vizinhas aos hospitais para acolher grávidas como Sílvia, que com 17 anos e um bebé na barriga, levaria muito tempo a chegar a um serviço se entrasse em trabalho de parto em casa. Vive num ilhéu a 14 quilómetros dali, para o qual se tem de apanhar uma canoa, diz-nos. Foi aconselhada a esperar pelo parto ali, na “Casa das Mães”, uma estrutura preparada para receber mulheres grávidas com gestações de risco ou que moram longe. Outra medida importante para encurtar distâncias num país pequeno, mas disperso.
A “Casa das Mães” de Catió está cheia. 24 raparigas, na maioria adolescentes, com grandes barrigas à espera do dia em que as crianças decidam nascer. Partilham um espaço comum onde pouco mais se encaixa do que uma cama para cada uma.
Aramata Cassamar é quem se destaca ali. Tem 37 anos e está grávida do quarto filho, um rapaz algo atrasado para nascer. Diz que a sensibilizaram para ir lá, e foi. Tão simples que parece habitual. Na realidade, a indicação médica não é garantia de que as mulheres a cumpram, principalmente quando uma parte delas precisa do “sim” do marido para sair de casa. E num meio 90% poligâmico, a razão da falta dessa autorização pode ser, tão simplesmente, os homens não as terem deixado ir.

Em Catió, o tempo urge. Em poucas horas, a formação está dada. É preciso arrumar a trouxa e partir da capital da região de Tombali rumo ao hospital regional de Buba, a uma hora dali, onde outra “turma” de profissionais espera a dupla de médica e enfermeira numa sala improvisada noutra “Casa de Mães” .
Olhando para a fachada verde e azul, vê-se que a sala está lotada. A plateia é tão vasta que já há quem assista à formação de pé e do lado de fora daquela divisão, a partir das janelas. Vão ser introduzidos novos medicamentos e é preciso perceber para que situações são indicados. “Cinco minutos é tempo suficiente para se perder meio litro de sangue”, evangeliza Ana Reynolds, com uma droga na mão cuja função é ajudar a estancar uma hemorragia em situações de emergência.
No quarto ao lado, Jarieto Irjé, de vestes negras e cabelo coberto, olha para o aparato com estranheza. Tem 14 anos e não namora. Carrega nos braços um bebé que parece grande para ter nascido há uma semana. Gamamo é seu nome. O tamanho obrigou a mãe a uma cesariana e a dores na recuperação.
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“A idade mais baixa de uma mulher aqui foi de 13 anos”, dizem os responsáveis por aquela "Casa de Mães". Mas, apesar de tudo, o maior perigo para as mulheres continua a ser o “fanado” (a mutilação genital femina), testemunha Gabriel Minkilan, médico colocado em Buba há dois anos.
Apesar de proibida, a prática ainda é feita por algumas das mais de 20 etnias que coabitam o país. Não é preciso falar com muita gente para o perceber. “Essas meninas, na hora do parto, têm muita laceração e sangram. É a complicação mais temível que encontramos”, afirma o médico, de papel cor-de-rosa na mão, a mostrar um caso clínico de uma mulher mutilada. Com algum abatimento nos olhos, alerta-nos que nos próximos destinos da nossa viagem o cenário será ainda pior.
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As mulheres

As mulheres

Entre as primeiras sensações depois de ter chegado à Guiné-Bissau, em setembro de 2013, Cristina Alves recorda uma em particular, através de uma frase que repete várias vezes: “Vim da tecnologia de ponta para ponta nenhuma”. Saída do serviço de Cuidados Intensivos do Hospital Curry Cabral, em Lisboa, onde se “abria uma gaveta e saltavam seringas e agulhas”, a enfermeira deparou-se com um cenário que a chocou. “Haver porcos e cabras a deambularem pelo hospital. E depois, não haver eletricidade, água, e muito menos materiais. O doente chegar e haver somente paredes.”
Primeiro, Cristina veio por três anos, com a missão de formar outros profissionais. Tinha a seu cuidado 14 centros de saúde. Durante quatro dias por semana, corria-os a eito. Era urgente dizer nas zonas mais remotas da Guiné que havia medicamentos, consultas e tratamentos gratuitos.
Cristina conta que, tantas vezes, quando entrava nas tabancas, as crianças “desatavam a chorar e a fugir” por nunca terem visto uma pessoa de pele branca. “Quando algumas se atreviam a tocar-me, queriam mexer-me no cabelo para ver porque é que não enrolava”, recorda a rir. Depois de uma pausa a colaborar em missões mais curtas, voltou ao país de forma permanente em junho de 2023, por um ano, para gerir o trabalho de todos os profissionais. É o braço direito de Ana Reynolds, obstetra, professora na Universidade do Porto e atual coordenadora clínica do PIMI.
A enfermeira Cristina Alves, à esquerda, e a médica obstetra Ana Reynolds, à direita. Joana Ascensão
Cristina Alves, à esquerda, e Ana Reynolds, à direita. Joana Ascensão
Para Ana, a primeira vez foi no verão de 2014. Nessa altura, já tinha deixado de ser obstetra no Hospital de São João, no Porto, e crescia-lhe o apetite de experimentar exercer medicina numa realidade diametralmente oposta. Sair do conforto de um sítio com todas as “máquinas” ao dispor e ver-se somente com “um funil chamado pinar, usado para auscultar o bebé dentro da barriga, e uma fita métrica”. Tão-só. Das primeiras impressões, recorda com especial clareza “ter saído do avião às duas da manhã e ter sentido que estava a entrar numa sauna”. Lembra-se de nos primeiros tempos ter oferecido dinheiro a algumas mulheres para poderem comprar um simples teste de gravidez. Mas olhando para trás, para todas as missões que tem feito desde então, de dois meses de cada vez, diz que a maior dificuldade é a falta de água potável, usada para tudo, a toda a hora, em qualquer hospital português.
Quando chegou, a situação era de emergência. Dados do Inquérito aos Indicadores Múltiplos (MICS5), realizado pelo Instituto Nacional de Estatísticas da Guiné-Bissau, com o apoio da UNICEF, davam conta de que cerca de 900 mulheres morriam por cada 100 mil nascimentos ocorridos em 2014.
Já o documento que esteve na base da ajuda internacional de emergência na saúde materno-infantil (Plano operacional de passagem à Escala Nacional - POPEN), de 2012, estimava mil mortes maternas por 100 mil nados-vivos - aproximadamente uma mulher em cada cem - “uma taxa muito elevada, superior à média de países com um perfil socioeconómico semelhante”. Outras fontes apresentam diferentes números, o que denota a dificuldade de dimensionar a catástrofe. Mas é sempre “uma brutalidade” para um país de pouco mais de dois milhões de habitantes, com o tamanho do distrito do Alentejo, declara Ana Reynolds.
Hoje coordenadora clínica do projeto, a médica orgulha-se de poder dizer que o projeto ajudou a reduzir a calamidade. Os últimos números disponíveis, referentes a 2019, contabilizam cerca de 746 mortes por cada 100 mil nascimentos (INASA 2018). Numa década, houve uma diminuição de 50% na mortalidade materna e de 63% na mortalidade infantil, com a melhoria de acesso aos cuidados de saúde”, declarou o embaixador da União Europeia em Bissau, Artis Bertulis.
Se há uma década a esperança média de vida se fixava nos 55 anos, hoje está nos 59.
E resta ainda tanto caminho pela frente.

No jipe, rumo aos hospitais de Bafatá e Gabú, Ana não abdica da almofada e escolhe quase sempre o banco de trás. A bordo, o motorista vai pautando o caminho com buzinadelas para que os miúdos se afastem da estrada.
Para leste, a paisagem muda. O verde é mais denso e as árvores são mais altas. Perto das casas começam a ver-se burros, um animal escasso no sul. E também a força das etnias é diferente – principalmente para as mulheres. A poligamia e a endogamia abrangem quase toda a população, de maioria étnica fula. As mulheres e meninas quase todas se mostram ao mundo com o cabelo coberto. Também ali, a leste, prevalece a mutilação genital feminina no país que a proibiu em 2011. É a zona do país onde há mais partos – e mais mortes maternas.
“Muito 'fanado', muitas anemias crónicas”, descreve a enfermeira Antonieta Có, do hospital distrital de Bafatá, a segunda maior cidade do país. Quando as mulheres têm uma hemorragia, é difícil agir porque não há quem doe sangue, apesar de já existirem bancos de sangue. “Nos momentos de aflição as famílias só querem saber onde se compra, mas sangue não se compra”, anui. Sobre o fanado, suspira primeiro. Depois retoma. “É a coisa mais predominante nesta região”. Acontece na grande maioria das mulheres e quase sempre é a forma mais extremada da prática.
Albertina Sanka explica com aritmética. No hospital de Gabu, a 50 quilómetros de Bafatá e mais perto da fronteira com a Guiné Conacri, fazem-se, em média, 15 partos por dia. Dessas mulheres, “talvez duas não tenham fanado”, relata a médica. “Numa semana, irão aparecer duas mulheres que nos morrem”. Por estar proibida, a prática começou a ser consumada em crianças cada vez mais pequenas, por vezes “em bebés de uma ou duas semanas”.
A zona leste, onde há mais partos e também mortes maternas, é a segunda paragem
A zona leste, onde há mais partos e também mortes maternas, é a segunda paragem
Quando chegamos a este hospital, de Gabu, há dois partos a ocorrer ao mesmo tempo e chove no bloco operatório. Na pediatria, os pais amontoam-se ao lado das pequenas macas coloridas, em ferro, sentados em parcos bancos de madeira. Entre as oito crianças de um quarto, seis são bebés prematuros a lutar pela vida.
Uma tem apenas sete dias. Nasceu em janeiro, com 31 semanas. Sem incubadora, ninguém sabe dizer se sobreviverá. Tem um pequeno barrete cor-de-rosa, feito à medida, e várias mantas coloridas a envolvê-la, com um cobertor por cima. Está deitada numa pequena cama de gradeamento verde que mais parece um oceano à sua volta.
Janabu Dejop nasceu prematura, às 31 semanas. Danilo Vaz
Janabu Dejop nasceu prematura, às 31 semanas. Danilo Vaz
A mãe, Aissatu, de 29 anos, carrega uma expressão pesada. Sentada ao lado da filha, num banco, espreme leite da mama para uma caneca, porque a pequenina não consegue ainda mamar sozinha. Já tem nome: Janabu Dejop. E isso é bom sinal, alerta a enfermeira Cristina. Em algumas partes da Guiné, só ao fim de sete dias é que se dá nome às crianças. Primeiro é preciso ver se conseguem vingar.
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Os hospitais

Os hospitais

Ao terceiro dia do percurso, e depois de os dois jipes terem voltado à base em Bissau e a sair do ponto de partida, o destino é uma das regiões que Ana e Cristina melhor conhecem. Foi por lá que começaram em 2013, quando o PIMI era ainda um embrião e só abrangia quatro regiões da Guiné-Bissau: Biombo, Oio, Cacheu e Farim. A parte mais ocidental do país.
O Hospital de Canchungo, na região de Cachéu, é o mais organizado, mas é o que faz menos partos
O Hospital de Canchungo, na região de Cachéu, é o mais organizado, mas é o que faz menos partos
O quinto hospital a visitar, de Canchungo, é, por isso, muito familiar. É o mais organizado, dizem. Como foi recentemente equipado pela China, num projeto de cooperação, tem uma das melhores infraestruturas da Guiné. Ironicamente, também tem menos movimento do que os hospitais do sul e do leste. “Especialmente em dezembro e janeiro, tempo de seca, que é também quando há menos partos”, descreve Ana Reynolds.
À entrada, sob o calor intenso da hora de almoço, salta à vista uma ambulância estacionada e uma cabra à procura de qualquer réstia de pasto junto dela. O silêncio toma conta do pátio e da entrada. É só à porta da sala onde um médico está a realizar ecografias que se sente algum frenesim. Uma fila de mulheres espera pela sua vez junto à sala. É praticamente o único local do Hospital Regional de Canchungo onde se vê gente.
Uma mulher é observada no hospital de Cachéu. Joana Ascensão
Uma mulher é observada no hospital de Cachéu. Joana Ascensão
“O Dr. Narciso está a operar”, diz alguém. É o médico contratado pelo PIMI, traduz-nos a enfermeira Cristina. Fá-lo porque recentemente outro médico formado pelo programa foi para a Venezuela fazer uma especialização, através de um programa de cooperação entre os países que levará 110 profissionais de uma só vez. São cerca de metade dos médicos da Guiné-Bissau. “Não pode ser! É suposto que o PIMI forme e capacite profissionais, não é suposto que os substitua”, desabafa Ana Reynolds. “Estamos muito preocupados com os recursos humanos. Podemos ter aqui tudo que, se não tivermos médicos e enfermeiros, não há nada a fazer”.
Na Guiné-Bissau só existe oferta do curso base de Medicina. Quem pode, tenta especializar-se fora e encontrar uma vaga para, talvez, nunca mais voltar. O ordenado é também muito parco. Este tem sido um dos desafios de quem gere equipas nos hospitais e centros de saúde. Uma verdadeira dor de cabeça para o diretor clínico do hospital, um médico experiente, de 56 anos, sério e cabisbaixo, recém-chegado de ter trabalhado 17 anos em Portugal (em Braga e Santarém) e outros dez em Cuba. E já muito desiludido.
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Mal entramos na reunião que vai ter com David Bastos, o coordenador operacional e do medicamento do PIMI, faz uma ressalva. “Quando cheguei e vi o hospital, fiquei feliz. Mas depois quando entrei, apanhei um choque. Chorei por dentro. Os chineses equiparam fisicamente o hospital, mas não equiparam as cabeças”, elabora, para logo depois dar um exemplo. “Para fazer uma obra, os trabalhadores disseram que não podiam cortar uns ramos de uma árvore antes de fazerem um ritual. E para o ritual o hospital teve de comprar um carneiro”.
Está a trabalhar há 48 horas seguidas na urgência, a braços com a falta de médicos, “sem um analgésico para baixar a febre”, e teme ser mais um dos diretores que “não conseguiram mudar nada”. A postura é a de quem rema sozinho contra uma tempestade, já sem forma de acreditar que as coisas alguma vez vão mudar.

“Sinto vergonha. A Guiné-Bissau, com 50 anos de independência, já tinha tempo de ser responsável por si mesma. Mas ninguém aqui é chamado à responsabilidade”, garante.
Rápido chega a notícia à sala de reuniões. “O doutor Narciso já acabou a cesariana e é um macho”. Há sempre felicidade quando se anuncia o nascimento de mais um rapaz. De resto, não se prevê que mais nenhum bebé ali nasça naquele dia.
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O território

O território

O cacilheiro para Bubaque deve ter uns vinte anos. Tempo suficiente para o azul das persianas ter perdido a vivacidade, as ventoinhas terem sido substituídas por ar condicionado e o pó ter tido vagar para se acumular nos vidros e nas ombreiras.
Quem tem bilhete vip, tem acesso a uma zona à sombra, com bar e mesas, onde as indicações estão escritas em inglês e em cirílico. Um relógio está parado nas oito menos dez. Um terço católico pousa por cima de cinco pacotes de vinho, dois de tinto e três de branco, que estão no bar, ao lado de uma caixa transparente com pão. Um casal de franceses lê cada um o seu livro. Em frente, um casal muçulmano. Ele de fato, ela de hijab. Ali dorme-se e trabalha-se. Come-se. Escreve-se. Uma bebé mama. São quatro horas para ocupar o tempo até à capital das Bijagós.
São oitenta ilhas e ilhéus, algumas candidatas a património mundial da UNESCO por serem berços únicos para a reprodução de espécies em perigo de extinção. E, contudo, uma imensidão de isolamento que preocupa Ana e Cristina.
Não há transportes. Se uma mulher grávida ou uma criança precisar de apoio num destes sítios remotos, demorará muito tempo até chegar ao Hospital Regional Marcelino Banca, em Bubaque – o único no arquipélago.

Nos últimos tempos, também este hospital ficou sem um único médico. O que ali trabalhava também foi para a Venezuela e o novo que o substituirá demorará pelo menos um mês a entrar ao serviço. O que é um hospital se não tiver médicos? “Às vezes está o nosso enfermeiro, Justino, a fazer consulta infantil, e a nossa parteira, Regina, a fazer consulta materna”, diz Cristina sobre os profissionais do PIMI.
Ao sábado de manhã, o dia está mais concorrido do que o habitual. Em parte, porque excecionalmente está ali a operar uma missão de médicos cubanos que realizam consultas de várias especialidades, embora quase todos encaminhem as pessoas para Bissau por não terem ali, no meio do oceano, como as tratar. Inglório. Quase nenhuma irá. Quase ninguém tem dinheiro para pagar o transporte e a estadia.
Quando chegam ao hospital, o último do périplo, Ana e Cristina dirigem-se ao gabinete do diretor. Uma pequena e humilde sala com uma secretária ao lado de uma enfermaria de mulheres, vazia. “Temos de ir buscar as mulheres à tabanca para que, pelo menos, elas façam uma ecografia durante a gravidez. O ideal seria três, mas pelo menos uma”, evangeliza Cristina, para depois anunciar: “o novo médico virá três semanas por mês”.
São quatro horas de viagem entre o porto de Bissau e Bubaque, a "capital" das ilhas Bijagós
São quatro horas de viagem entre o porto de Bissau e Bubaque, a "capital" das ilhas Bijagós
No único hospital das Bijagós não se fazem ecografias porque não existe ecógrafo. Ainda assim, é a falta de recursos humanos o problema que mais assusta o diretor. Porque dali dificilmente se chega rápido a outro hospital. Além de ser preciso levar um ecógrafo portátil que percorra as várias ilhas, também é preciso pensar uma forma de transportar as senhoras para Bubaque, a capital. E para Bissau, quando Bubaque não servir. Mas não há transportes.
Ainda naquela mesma semana uma grávida em trabalho de parto, com um bebé de cinco quilos que não nascia, foi salva pela lancha da equipa do PIMI que faz a distribuição de medicamentos pelas ilhas. Foi levada para Bissau para uma cesariana de urgência e, mesmo assim, aguentou seis horas na viagem, com dores e um bebé em sofrimento. “O destino daquela mulher era morrer. O do bebé também”, assevera David Bastos.
É aqui que as equipas esbarram.
Cristina e Ana reunem com o diretor do hospital de Bubaque, o único do arquipélago das Bijagós. Joana Ascensão
Cristina e Ana reunem com o diretor do hospital de Bubaque, o único do arquipélago das Bijagós. Joana Ascensão
A cinco meses de o projeto PIMI passar do terreno para uma nova fase (em que passará para o Ministério da Saúde tudo o que fez e esperará que o trabalho seja continuado), o acervo de saberes acumulados sobre este país, estas mulheres e crianças - e a saúde que as espera - não dá ânimo a quem trabalha para deixar legado. Está em causa uma nação impregnada de turbulência política em toda a curta história de independência. Sem estabilidade não são possíveis os alicerces para a construção de um Estado capaz de assegurar aos cidadãos todos os seus direitos básicos.
Se “a população é muito pobre, com muito poucos recursos, especialmente fora de Bissau, então manter a gratuitidade é das coisas basilares”, na opinião de Ana Reynolds. Mas não há certezas de que isso esteja em equação. O que se sabe é que, no último ano de atuação, até meados de 2025, o PIMI estará centrado no Hospital Militar, em Bissau, e numa lógica de telemedicina que proporciona consultas à distância, com médicos portugueses docentes na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Quando terminar, será absorvido por um projeto maior chamado Novos Horizontes, que vai incluir também o atendimento à distância noutras especialidades. Os vários hospitais distritais, ficam nas mãos do governo. Ainda não é claro se se vai manter a política de gratuitidade dos serviços.
Cristina sabe que, dez anos depois, as coisas estão diferentes daquilo que encontrou em 2013. Há medicamentos, há ecógrafos, bancos de sangue, metodologia, há médicos e enfermeiros com mais formação. “Mas os problemas da Guiné são tão mais profundos que só vai haver sustentabilidade no sistema de saúde quando esses problemas estiverem minimamente resolvidos. É muito difícil dar continuidade a algo que depende de um conjunto de coisas maiores, como saneamento básico e educação nas escolas”, reflete.
A enfermeira sabe que cinco meses “é um sprint”. Enfim, é o tempo que resta e resta-lhes ocupá-lo o melhor que podem para deixar o melhor legado possível. Preocupa-a que, no final de uma década a trabalhar em prol das mulheres da Guiné-Bissau, possa ir para a cama de consciência tranquila. E isso vai.
TOQUE NAS IMAGENS PARA AUMENTAR
A calma de Bubaque custa a entranhar. Mas na hora de ir embora, dá ideia de que começa a fazer falta ainda antes de o cacilheiro arrancar de volta para Bissau.
No regresso, são mais quatro horas de imenso azul do oceano, ritmados pela lentidão dos motores. Mais quatro horas até ao corropio da capital, envolta de calor, onde toda a gente bebe água a partir de pequenos sacos de plástico, que descarta logo a seguir. Onde há música a florescer em cada avenida e doces caseiros a serem vendidos à porta das escolas na hora de saída das crianças. A minoria católica assiste à missa de final do dia, na Avenida Amílcar Cabral. E as mulheres exibem os dotes de equilíbrio das bacias de fruta na cabeça, crentes da gula dos últimos clientes do dia.
Créditos
Texto Joana Ascensão, na Guiné-Bissau
Fotografia Danilo Vaz, na Guiné-Bissau, e Joana Ascensão
Infografia Sofia Miguel Rosa
Webdesign Tiago Pereira Santos
Web Development João Melancia
Coordenação Ricardo Marques, Marta Gonçalves, Pedro Candeias e Joana Beleza
Direção João Vieira Pereira
Expresso 2024