O rio da morte

Enquanto olhamos as tragédias no mar — Mediterrâneo, Egeu, no canal da Mancha — milhares de migrantes passam todos os dias por Edirne, última cidade turca antes da Grécia. Separa-as um rio — e muita violência. Aqui, quase todos os que tentam entrar na Europa acabam devolvidos, roubados, espancados. Aqui, a vida é uma linha de montagem de sonhos adiados, uma e outra vez

O rio da morte

Enquanto olhamos as tragédias no mar — Mediterrâneo, Egeu, no canal da Mancha — milhares de migrantes passam todos os dias por Edirne, última cidade turca antes da Grécia. Separa-as um rio — e muita violência. Aqui, quase todos os que tentam entrar na Europa acabam devolvidos, roubados, espancados. Aqui, a vida é uma linha de montagem de sonhos adiados, uma e outra vez

Síria - Homem - Afogamento no Meriç 
Argélia - Homem - Afogamento no Meriç 
Marrocos - Homem - Afogamento no Meriç

Edirne é a única grande cidade turca ao longo da linha do rio que separa a Turquia da Grécia — deste lado chama-se Meriç, do outro é Evros. O cemitério central tem um lote específico para anónimos que morreram a tentar atravessá-lo. São placas verdes com a insígnia da câmara municipal, mas nem todas têm informação. Os nomes não se conhecem, as nacionalidades nem sempre; o género é fácil de distinguir; a causa da morte, na maioria dos casos, também. Vieram aqui parar e não mais saíram. É provável que as famílias nem saibam que morreram a perseguir o sonho inadiável dos habitantes de Estados em ruínas: mudar de vida. 

Fica escuro. Quase não há ninguém nas ruas, vergastadas por um vento que, sem ser muito forte, é gelado. A cidade tem imensas casas otomanas, altas, de madeira e de várias cores. As pessoas compram espigas de milho carregadas de sal e castanhas assadas bem grandes, como ameixas. Amir e Haythan, funcionários da organização de ajuda humanitária Josoor, que trabalha com migrantes devolvidos à Turquia depois de terem tentado entrar na Grécia ou na Bulgária, recebem o Expresso à porta do seu apartamento. Avisam logo que, antes de poderem instalar-nos, têm de levar ao hospital dois rapazes feridos que tinham acabado de tentar passar para a Grécia e pisar a Europa. Como milhares de outros, foram empurrados por encapuzados que os espancaram. “Foram devolvidos só de boxers, parece que bastante maltratados”, diz Amir. 

As placas verdes no cemitério central de Edirne que sinalizam as pessoas que morrem sem identificação, normalmente migrantes

As placas verdes no cemitério central de Edirne que sinalizam as pessoas que morrem sem identificação, normalmente migrantes

Não podemos acompanhá-los ao hospital, para não levantar suspeitas. É raro os feridos que resultam destes reenvios, ou pushbacks — literalmente, “enviar de volta”, como definiram os advogados de direito internacional entendidos em questões com pessoas em trânsito —, serem atendidos no hospital público a horas normais. Por vezes seguem diretamente para casa de dois profissionais de saúde específicos. Os homens que vão ajudá-los nada nos dizem sobre esses médicos, nem sequer o primeiro nome. Se aceitarem falar, se derem informação sobre si mesmos, podem perder o emprego por ajudarem pessoas que estão a tentar entrar na União Europeia (UE) sem autorização.

A autorização oficial, rota segura e legal de que muitos governos falam para justificarem não receber quem chega sem anúncio às suas praias, é hoje impossível de conseguir. As embaixadas europeias na Turquia e em boa parte do Médio Oriente, que antes recebiam quem lhes fosse pedir ajuda, há muito que deixaram de dar seguimento a pedidos de asilo. Estamos, por isso, numa cidade placa giratória, centro de um jogo ininterrupto entre os migrantes e os homens escondidos atrás de óculos de esqui e balaclavas, entre a Turquia e a EU, que paga a Ancara para impedir as pessoas de passar: em 2016 saíram €6000 milhões do orçamento comunitário para a Turquia e, no mais recente quadro plurianual, estão previstos mais €3500 milhões. 

A morada do apartamento onde Amir e Haythan nos deixam também não pode ser revelada. Foi lá que a Josoor montou o seu centro de operações. Há paletes de água, bolachas, leite em pacotes pequenos, cobertores, muitos caixotes com roupa quente para dar a quem regressa sem nada daquela fronteira. Amir e Haythan também foram reenviados pelo Evros várias vezes, logo na primeira ficaram sem passaporte. Desistiram de tentar chegar à UE e fazem a vida em Edirne.

Neste vídeo, um dos migrantes, que prefere não revelar o nome por fazer parte de uma rede de ajuda ao que é considerado pelas autoridades turcas como imigração ilegal, explica como de ambos os lados, turco e grego, a violência contra os migrantes em Edirne é um facto do dia a dia:

Amir e Haythan regressam do hospital. O médico perguntou se tinha sido o arame farpado. Normalmente um rasgão daqueles é quase sempre isso. “Não, cães.” 

Nenhum dos rapazes reenviados tem força para se levantar cedo. Tomam comprimidos para as dores, dormem muito, o máximo que conseguem. Por volta do meio-dia encontramo-nos com um dos que foram ver o médico na noite anterior. 

A negação de todas as provas

O braço de Abdullahk está inchado, negro, e do ombro ao cotovelo vai um rasgão feio, ainda aberto. As pernas têm ferimentos, mas menos, porque quando os homens que o intercetaram na Grécia soltaram os cães, ele aninhou-se de joelhos com os braços cruzados por cima da cabeça a defender olhos, rosto e pescoço. “Riram-se de mim, atiçaram os cães, tiraram-me a roupa e fiquei só de t-shirt, para não ter nenhuma camada que me protegesse. Depois bateram-me e puseram-me num barco, como a toda a gente, para nos reenviarem para aqui”, conta o jovem marroquino, enquanto despe o casaco para mostrar o ferimento. Tem as costas pisadas, três grandes manchas roxas espalham-se pela pele, como se alguém tivesse deixado cair um pingo de tinta numa poça de água.

O ferimento de um dos rapazes que chegaram ao hostel Limon depois de terem sido devolvidos. Foto Josoor

O ferimento de um dos rapazes que chegaram ao hostel Limon depois de terem sido devolvidos. Foto Josoor

Abdullak, de 28 anos, passou a noite no Limon, um dos hostels da cidade que aceitam receber pessoas que precisem de descansar, recuperar, para poder tentar de novo. É fim de novembro, o frio começa a ser um perigo para quem tenta a travessia, mas o pequeno espaço está cheio. Há mais dois locais que recebem migrantes. Também estão cheios. O frio nada pode contra a urgência. Jovens argelinos, marroquinos, afegãos, paquistaneses, sírios, congoleses, bengalis, tantos, coalescem à volta de um bule de café quente. Fumam e planeiam a próxima vez. Nem todos querem falar, mas todos dizem que um dia destes voltam a tentar. Verificam as aplicações de meteorologia, esperam noites sem chuva e algum nevoeiro que os esconda no meio das florestas gregas. O objetivo é caminhar sempre, sem serem encontrados, da Grécia para a Macedónia do Norte, daí para a Sérvia, da Sérvia para a Hungria ou para a Bósnia e depois pela Croácia, Eslovénia, Áustria, Alemanha. 

Há fotografias e descrições escritas por centenas de pessoas que comprovam que os homens que os devolvem são militares e polícias gregos. Já os seus rostos, os seus nomes, ninguém conseguiu ainda discernir. 

Ferimento de uma mordidela de um cão. Foto Josoor

Ferimento de uma mordidela de um cão. Foto Josoor

A Grécia nega o reenvio de pessoas através do rio Evros há mais de dois anos. Em resposta às perguntas do Expresso sobre os casos que recolhemos em Edirne, o Ministério dos Assuntos Marítimos e Insulares respondeu que “os oficiais da Guarda Costeira Helénica, responsáveis pela guarda das fronteiras marítimas e terrestres gregas e europeias, maximizam esforços há meses, operando 24 horas por dia com eficiência, alto sentido de responsabilidade, perfeito profissionalismo, patriotismo e respeito pela a vida de todos e pelos direitos humanos”. Além disso, continua a resposta por email, “milhares de migrantes foram resgatados, em particular pela Guarda Costeira Helénica, ao longo da crise de refugiados e migratória, atraindo o reconhecimento e elogios da comunidade internacional”. 

O Ministério considera que as perguntas do Expresso são “tendenciosas”, argumenta que as ações ilegais movidas contra a Grécia são “apenas suposições” e enfatiza que “as autoridades gregas nunca tiveram tais condutas”. Segundo os registos de que dispõem, “as situações descritas pela jornalista nunca ocorreram”. O Ministério do Interior turco nunca respondeu aos nossos pedidos de esclarecimento sobre a violência que os militares turcos também exercem sobre os requerentes de asilo. A autarquia de Edirne também não quis falar sobre o assunto das deportações ilegais.

Apesar desta certeza manifestada pelas autoridades gregas, as histórias de pessoas que passaram por processos violentos de devolução ilegal têm-se multiplicado. No fim de outubro de 2021, um tradutor ao serviço da agência europeia de proteção de fronteiras (FRONTEX) foi espancado e reenviado pelo Evros juntamente com dezenas de migrantes, confundido com um deles. A queixa chegou à UE e vem acompanhada de vídeos e fotos. A FRONTEX confirmou que o testemunho é “credível”. Bem mais confuso foi o comunicado do ministro dos Assuntos Marítimos e Insulares, Ioannis Plakiotakis, a 24 de dezembro de 2021. Mostra-se orgulhoso pelas “1450 operações de resgate” que salvaram a vida a “um total de 29 mil pessoas”. Porém, sete dias depois, a 31 de dezembro, o ministro das Migrações, Notis Mitarachi, divulgou na rede social Twitter um quadro com a redução de chegadas à Grécia em 2021: pouco mais de 8600, números que o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados corrobora. O jornal suíço “NZZ” lançou a questão: onde estão os outros cerca de 20 mil que Atenas resgatou? Não sabemos, porque o Governo não respondeu ao “NZZ” nem a outros jornais, incluindo o Expresso.

Ismail viu um crime

Ismail Sakiné não se importa de falar. Afinal, o seu nome já está em todo o lado depois do tempo de antena na televisão local da vila de Califórnia, nos arredores de Casablanca, Marrocos. Já tentou passar a fronteira cinco vezes, três pelo rio Evros para a Grécia, duas pela fronteira terrestre entre a Turquia com a Bulgária. Foi sempre reenviado. Antes de vir para aqui tentou chegar ao Algarve com um grupo de amigos. Compraram um barco insuflável e ligaram o GPS normal do telefone mas, poucos quilómetros depois, tiveram de chamar a guarda marroquina. “O barco era muito fraco e começou a meter água a grande velocidade, não conseguimos continuar”, conta o marroquino de 22 anos, no pátio do hostel Limon. 

Um dos sítios que recebem pessoas feridas, depois dos reenvios. Normalmente os migrantes pedem a ONGs que paguem uma ou duas noites, ou amigos ajudam-nos, transferindo o pagamento para o hostel diretamente

Um dos sítios que recebem pessoas feridas, depois dos reenvios. Normalmente os migrantes pedem a ONGs que paguem uma ou duas noites, ou amigos ajudam-nos, transferindo o pagamento para o hostel diretamente

Está na Turquia desde 1 de novembro de 2021. Fugiu por ter visto um crime: um grupo de rapazes amarrou uma rapariga a uma árvore e largou-lhe fogo. Quando a polícia chegou ao local, disseram-lhe que se escondesse e não falasse do sucedido a ninguém. Ao fim de uma semana, os culpados ainda andavam pela cidade, como se nada se tivesse passado, e por isso Ismail começou a contar a sua história. Como guarda-noturno de uma fábrica de tecidos, o seu trabalho era fazer a ronda pelo perímetro da fábrica. Foi aí que viu uma carrinha, um corpo de mulher a ser transportado por quatro homens e o fogo. 

Depois de ter decidido falar, Ismail acabou detido. “Os polícias prenderam-me para minha própria segurança mas, enquanto estive preso, o meu pai e os meus dois irmãos começaram a receber ameaças da família dos rapazes. Pedi que me libertassem. Toda a família juntou dinheiro para uma passagem de avião e parti. Comigo longe, os tipos estão safos: não há testemunhas e deixaram de perturbar a minha família.” 

Na Grécia, afirma, “os guardas batem com troncos que encontram na floresta”. Na Bulgária “batem com cassetetes e soltam cães”. “De cada vez que me ponho num barco para tentar passar o rio, penso mais uma vez: ‘Não consigo fazer isto’, mas depois lá faço. Nas florestas da Grécia até de respirar temos medo, encontram-nos sempre, não sei como, mas encontram-nos sempre.”

Vai seguir para Istambul. Quer arranjar trabalho antes de voltar a tentar. Precisa de roupa quente, botas, dinheiro para enviar à família. Além disso, não arranja forma de tirar da memória o trauma da última tentativa. “Éramos 20 homens novos num grupo. Os guardas gregos encostaram-nos contra uma parede de uma casa abandonada — parecia uma prisão antiga, porque tinha grades —, despiram-nos e começaram a bater-nos. Gritavam: ‘Ninguém vira a cabeça!’, mas depois chamavam-nos pelos nomes: ‘Pssst, Ismail, olha para mim, estou a falar contigo, pá’, e eu virei-me e levei com o bastão.” 

Um congolês que diz que os militares gregos saltaram em cima das suas mãos várias vezes. Foto Josoor

Um congolês que diz que os militares gregos saltaram em cima das suas mãos várias vezes. Foto Josoor

Os guardas não maltrataram mulheres nem crianças, mas revistaram toda a gente. Ficaram sem comida, dinheiro, alguns sem telefones porque insistiram em levá-los consigo. “Rasgaram os casacos à procura de dinheiro e telefones, revistaram as fraldas dos bebés, porque muitas vezes só levamos um telemóvel para o grupo todo e escondemo-lo na roupa dos bebés, e eles sabem. Queimaram as nossas mochilas, sapatos, tudo.” 

Alguns decidiram deixar os seus telemóveis, tal como os passaportes e outros documentos importantes, escondidos numa casa abandonada perto do rio, e quando foram empurrados de volta os objetos continuavam lá, foi uma sorte, a polícia faz rondas por estes casebres abandonadas pelas margens “Quando os turcos estão a patrulhar o rio, os gregos só nos levam até meio num barco, depois mandam-nos saltar, mulheres, crianças, tudo, os bebés são levados assim ao alto pelos homens”, explica Ismail, esticando os braços acima da cabeça.

Não foi sempre assim. As correntes do Evros eram quase todas só de ida. O mar Egeu, que leva diretamente às ilhas gregas de Lesbos, Cós, Samos, Quios, Leros, foi durante a última meia década a rota mais popular, mas também a mais perigosa. Nela, há cerca de dois anos, foram documentados os primeiros casos de reenvios ilegais. Quem os denunciou foi um jornalista grego reformado, Ioannis Stevis, que mantém o pequeno jornal local “Astraparis”, em Quios. 

Em outubro de 2020, quando o Expresso esteve na ilha à procura de histórias sobre reenvios ilegais (e depois a pandemia voltou a fechar o mundo e toda a gente teve de regressar a correr aos seus países), Stevis não estava em casa, mas contou, ao telefone, que a prática se tornou comum: “As pessoas chegam à nossa costa, sabemos que cá estão porque contactam associações ou porque os próprios cidadãos as veem e chamam a polícia. Mas depois já não as vemos na ilha, nem nos centros de registo de migrantes, nada”. As autoridades nunca aceitaram investigar o que Stevis e outros viram. A linha oficial é que o barco avistado pelos cidadãos chegou vazio à costa. 

Com o mar gelado pela frente e as notícias de que cada vez mais migrantes estavam a ser reenviados pelos gregos, em colchões insufláveis sem motor nem remos, à deriva horas e horas e à mercê das rondas noturnas da Guarda Costeira da Turquia para poderem ser salvos, a passagem pelo Evros, por Edirne, tornou-se a mais popular. Foi nesta zona que milhares de migrantes se concentraram em fevereiro de 2020, quando a Turquia, para pressionar a UE, anunciou aos mais de cinco milhões de migrantes que vivem no país que a fronteira estava aberta e todos os que quisessem podiam entrar no Espaço Schengen pela Grécia. 

Claro que não podiam. A Grécia mandou os militares para a primeira cidade grega imediatamente antes de Edirne, Kastanies, que era por onde toda a gente estava a tentar furar. Os confrontos estenderam-se durante quase um mês e dois homens morreram.

O taxista

Já passa das 8h, mas em Balabancik a noite mantém-se, abotoada. Dá a sensação de que o dia nem vai chegar a sair detrás destas nuvens, mas a manhã chega, escondida numa cinzenta e permanente ameaça de tempestade. No largo da cidade começam a juntar-se os carros dos agricultores, com os fardos de palha escondidos debaixo de oleados, os táxis e as carrinhas de distribuição de leite e pão. Güven estaciona o seu táxi e pede chá. Ia entrar no café e juntar-se aos amigos, mas acaba por aceitar sentar-se com o Expresso. Hão de ser os amigos a vir ver com quem está a falar. O nosso tradutor, que não quer que o seu nome fique escrito para não ficar ligado a qualquer atividade que tenha que ver com migrações, é repositório infindo de informação sobre a história recente da Turquia e de toda a região, começa a perguntar o que faz ali tão cedo. “É quando os coitados dos rapazes chegam e pedem transporte para Istambul.” 

Com 55 anos, Güven teria pelo menos mais de 10 pela frente até à reforma na empresa de segurança privada na cidade costeira de Esmirna, onde trabalhava. Resolveu voltar à terra, despediu-se e faz dinheiro — “bem mais dinheiro” — a transportar quem é reenviado da Grécia para a Turquia e precisa de voltar à cidade grande. Em Istambul há sempre um amigo que os deixa ficar no chão de casa, podem trabalhar por conta própria a recolher papéis da rua e vender ao peso para arranjar dinheiro para mais uma viagem até aqui, mais uma tentativa de passar o Evros. “Às vezes os gregos empurram dezenas de uma vez, mas não podemos ir buscá-los mesmo à margem. É impossível passar, os militares turcos impuseram há um ano uma zona de exclusão. Mas as pessoas acabam por chegar às vilas. Quase nunca trazem dinheiro, pagam-me os amigos quando chegamos a Istambul, ou às vezes algum familiar na Europa faz uma transferência para a minha conta.” 

Um dos taxis parados na praça da vila de Balabancik, à espera dos clientes da madrugada, os devolvidos

Um dos taxis parados na praça da vila de Balabancik, à espera dos clientes da madrugada, os devolvidos

O primeiro serviço da manhã é connosco, porque no largo ainda não apareceu nenhum dos “coitados dos rapazes”. Seguimos em direção a Kuplu, uma vila onde há muitos reenvios, segundo Güven. Atreve-se um metro ou dois para dentro da zona militarizada. Se o chatearem ele diz o que diz sempre, que nunca sabe bem onde fica a linha. Há mais dois táxis e três carros civis. O nosso taxista pergunta se querem falar, mas ninguém quer ou pode, muito menos os civis, que nem têm licença de transporte público. O rio Meriç está rodeado de pântanos nesta altura do ano, os táxis seguem até a terra dar de si. Güven também não devia estar a falar, mas diz querer mostrar o que se passa do outro lado – na Grécia. 

Do porta-luvas tira um telemóvel desligado. Quando o liga começam a chegar dezenas de mensagens de números que não conhece. “+90 é aqui da Turquia, mas olha, vês, está alguém do Paquistão a pedir ajuda para ir para Istambul, dois sírios a escrever de um número grego, mensagens em árabe, farsi, que não falo, é isto todos os dias. O meu número passa entre eles, mas nunca consigo chegar a todos, é impossível.”

As conversas no WhatsApp vêm acompanhadas de mensagens de áudio, vozes de homens, urgentes, vozes de mulheres, calmas mas quase sempre a chorar, emojis de mãos unidas em forma de oração, passagens do Corão sobre uma foto do pôr do sol, do planeta Terra, de uma planície de trigo; imagens de crianças, pins com a localização onde Güven deve ir recolhê-los. Há mensagens de hoje, às 2h, às 3h, de ontem à noite, uns 20 pedidos. “Estes jovens só querem uma vida melhor e os turcos têm coração mole. Compro chinelos de praia aos montes para lhes dar quando chegam, camisolas de lã, mas a minha mulher já está um pouco cansada. Eles batem-me à porta a pedir ajuda e não há sossego lá em casa.”

A ode ao bom coração turco é um texto que se recita de cor na zona. Apesar de haver centenas de relatos de violência por parte das tropas turca, que também enviam pessoas para a Grécia, “por estas terras nunca passou um único migrante com queixa dos nossos militares”, diz Adem, de 70 anos, reformado da indústria têxtil que se vai entretendo com hortas ao pé do rio. Güven deixou-nos ao pé do nosso carro e seguimos para Kadidondurma. 

Um tunisino no hostel mostra ferimentos com bastões e arames. Diz que foram homens de capuz e óculos de ski que lhe bateram na Grécia. DR

Um tunisino no hostel mostra ferimentos com bastões e arames. Diz que foram homens de capuz e óculos de ski que lhe bateram na Grécia. DR

Chovem cordas de água sobre o zinco do pequeno alpendre onde nos abrigamos. É mais uma casa de chá, a esplanada está cheia de gente encharcada. A chuva vai e vem, os pingos ficam presos na ponta das folhas das tangerineiras. Adem faz parte de um grupo de amigos reformados com receio de falar. Têm quase todos um cartão de acesso à zona militarizada, por terem lá terras. Não há forma de nos levarem lá, nem pensar, se são apanhados com jornalistas perdem o cartão. Esta é uma das localidades mais populares entre os migrantes, por aqui passar a linha férrea abandonada que até 2011 ligou Salónica a Istambul – o “Filia-Dostluk Express”, palavras em grego e depois turco para “amizade”. “Nem sempre fazemos isso, mas por vezes abrimos as nossas casas, já aconteceu. Uma vez passou aqui um casal paquistanês cuja filha, adolescente, não conseguiu entrar no barco, teve medo, e ficou com a minha família até encontrar alguém em Istambul que pudesse recebê-la”, conta Adem. 

Na grande confusão de fevereiro de 2020, milhares de refugiados vieram tentar encontrar ajuda por aqui, no centro de Edirne a presença militar era muito grande. “Estas pessoas não tinham mesmo noção do que as esperava, traziam guitarras às costas, sorriam, de cabelo cortado e roupas quentes. Saíram das suas vidas remediadas em Istambul para passar para a Grécia, mas só encontraram miséria. Para onde regressaram? Não sei, a ideia com que fiquei foi que tinham abandonado quanto possuíam, mesmo os que já tinham estabilidade em Istambul, Ancara, etc.”, diz outro homem, que não quer dizer como se chama. Mesmo confrontados com a responsabilidade da Turquia pela desestabilização, ao tê-los mandado para a fronteira com promessas ocas, ninguém quer criticar o Governo diretamente. Declaram-se cansados. É Adem que volta a falar: “Há dias em que passam aqui 100, 200 pessoas, multidões, e na altura passavam 1000 por dia, abrimos o salão onde fazem os casamentos, o nosso exército montou camas e trouxe comida para os refugiados, mas para as pessoas da terra não vem ajuda, investimento, ninguém nos compensa por estarmos a ajudar com os nossos recursos. Claro que as pessoas estão fartas de ajudar. Já viram as notícias da economia?”

A violência nota-se mais nos corpos agora, concordam todos. “Antes eram só reenviados, agora chegam sem sapatos, com sangue nas roupas, pedem água e estão quase a desfalecer de sede e fome, é muito pior e há muito mais pessoas devolvidas”, diz outro homem do grupo. “As pessoas têm medo, o centro onde fazíamos os casamentos ardeu, porque um grupo pegou-se com outro. Quando isso aconteceu os migrantes começaram a dormir na rua, em garagens abertas, armazéns agrícolas, debaixo de carros. É complicado, são as nossas coisas. Somos só 600 ou 700 habitantes.”

Durante vários dias, Yusuf Selman İnanç, do departamento de Ciência Política da Universidade de Istambul que recentemente se tem dedicado a escrever sobre a situação dos refugiados no seu país, analisou, a pedido do Expresso, os jornais de Edirne, à procura de notícias sobre o número atípico de mortes no Meriç no outono de 2021. Nada. Notícias sobre reenvios ou queixas de refugiados sobre o tratamento duro dos guardas turcos? Nada.

Duas mulheres a ver o fim do dia perto da Ponte Galata, no centro de Istambul. A vida com a religão no centro renasceu com o Presidente Erdogan

Duas mulheres a ver o fim do dia perto da Ponte Galata, no centro de Istambul. A vida com a religão no centro renasceu com o Presidente Erdogan

Yusuf Selman İnanç explica o caso enviesado da política turca neste assunto. “Na Europa são maioritariamente os partidos de direita, defensores da matriz católica dos povos europeus, que lutam por mais restrições nas fronteiras. Na Turquia as coisas invertem-se: são os partidos considerados de esquerda que o fazem, maioritariamente por negarem a religião como base do Estado. É o caso do Partido Popular Republicano (CHP), do fundador da Turquia, Kemal Ataturk, hoje o maior da oposição ao Partido Desenvolvimento e Justiça (AKP), do Presidente Recep Tayyip Erdogan.” O líder do CHP, Kemal Kılıçdaroğlu, já prometeu enviar de volta os cerca de quatro milhões de sírios que vivem na Turquia. Diz que faz isso em dois anos se for eleito, já em 2023. “Há um claro sentimento antiárabe no CHP, não é possível escondê-lo, está na base da sua formação. Depois ainda há os aliados de Erdogan no Parlamento, os nacionalistas, que são extremistas e acham que a coisa mais importante para alguém merecer direitos é ser turco de raiz. Ou seja, basicamente só temos o partido do Erdogan a defender que esta gente cá fique”, explica İnanç ao Expresso. “Quando a guerra da Síria começou, toda a gente recebeu os refugiados muito bem, mas o argumento de que temos de ajudar os ‘nossos irmãos muçulmanos’ já não chega, muito menos convence os mais novos, que estão afastados da religião que Erdogan voltou a trazer para o centro da vida civil. A economia está no charco, as pessoas não podem ajudar só porque os sírios são supostamente irmãos.” 

İnanç conta que sempre que visita cidades como Kilis ou Gaziantep, com uma grande percentagem de sírios, as pessoas não expressam necessariamente ódio xenófobo. De muitas formas é ainda mais primitivo: “As pessoas não querem que o pouco dinheiro que o Estado tem para ajudar seja dividido por mais gente”, diz, ao telefone, depois de termos regressado a Portugal.

O esquema dos barcos reutilizáveis

A chuva regressa e um rapaz passa a correr com o telefone preso debaixo do gorro. Fala inglês com sotaque, talvez da Índia, Paquistão, Nepal? Vamos a correr atrás dele. Chama-se Ali Mohammad, tem 30 anos, é de Lahore, no Paquistão, e foi reenviado esta madrugada. “Vivia na África do Sul, tinha dinheiro, era dono de lojas de coisas para telemóveis ,mas meti-me em asneiras, não quero falar disso, tive de apanhar um avião para algum lado, e para Istambul é mais fácil”. A passo acelerado, mete-se por ravinas enlameadas. Perguntamos onde nos leva. “À nossa casa.” 

Mesmo no limite da zona militarizada está uma casa minúscula, as paredes são paus de madeira e plásticos agrafados uns aos outros. “Anda, anda.” “Vives aqui? Esta casa está abandonada?” Ali nada diz. Corre para fugir da chuva e por fim entramos na “casa”. Estão lá 15 rapazes, a dormir em colchões sujos ou sobre cobertores, encaixados uns nos outros. No centro há uma espécie de aquecedor, que se parece muito com um fogão antigo, funciona a lenha e os rapazes estão dispostos à roda do calor. Ali ficou de ir à vila buscar pão e queijo, mas não levou dinheiro suficiente e veio ver se lhe dão mais uns trocos. Há garrafas de água por todo o lado, muitas caixas de analgésicos, gaze, Betadine. Ninguém quer acordar. Ali abana um deles, pede 100 liras, cerca de 10 euros, mas contenta-se com 30 de um e 50 de outro. 

A "casa" de pelo menos 15 paquistaneses, que aqui dormem, comem, dormem mais, para tentarem passar a fronteira mesmo aqui ao lado

A "casa" de pelo menos 15 paquistaneses, que aqui dormem, comem, dormem mais, para tentarem passar a fronteira mesmo aqui ao lado

Quando saímos damos de frente com dois homens, turcos, pai e filho, os donos desta cabana minúscula, rodeada de um pântano de garrafas a boiar, fraldas, sacos. “Somos muçulmanos como eles, queremos ajudar”, diz o mais novo. O mais velho chama-nos ao carro. Abre a bagageira e exibe um barco insuflável, cheio de areia barrenta. Acabou de o ir buscar. Um dos outros rapazes acorda e vem cá fora. Seguem-no dois, um fala turco, está há dois anos aqui, e explica-nos o esquema que o homem mais velho vai descrevendo: “Todos os dias os pescadores aqui da zona tiram estes barcos do rio e trazem-nos para terra. Ele compra os barcos, remenda-os e vem aqui dá-los aos rapazes”. Mas “não é bom termos aqui jornalistas, mal chega alguém diferente os polícias vêm a correr, não se importam que os migrantes tentem passar, mas importam-se que se saiba que não se importam”, resume o jovem, que não quer contar a sua própria história. Está cansado e quer dormir mais para voltar a tentar quando a chuva parar.

Ali regressa à vila e conta o seu lado da história do barco. “Aquilo que o gajo disse não é bem verdade. OK, ele deixa-nos ali ficar, mas não é caridade. A cada dois ou três dias aparece com um barco e há sempre quatro ou cinco rapazes já recuperados que pagam 750, 800, 1000 liras, depende do barco, não é exatamente caridade, pagámos à vez, é uma espécie de renda, mas agradeço na mesma ter onde dormir. São boa gente.” 

O barco insuflável resgatado no rio. Vai a concertar, com pedaços de borracha e supercola 3 e depois será vendido a quem quiser atravessar o rio. DR

O barco insuflável resgatado no rio. Vai a concertar, com pedaços de borracha e supercola 3 e depois será vendido a quem quiser atravessar o rio. DR

Há três dias foi a vez de ele tentar, mas os gregos apanharam-no e a história repete-se. “Éramos cinco, saímos daqui às 22h30 por aí, à meia-noite já estávamos na Grécia. Deitámo-nos na floresta e de manhã tentámos encontrar um supermercado para comer. Alguém nos viu e chamou a polícia. Levaram-nos para um sítio com celas muito pequenas onde já estavam talvez 20 pessoas. Não comi nem bebi nada durante mais de 24 horas. Depois puseram-nos numa carrinha e, enquanto íamos entrando, iam-nos batendo com bastões nas pernas e nas costas.” A parte de trás da carrinha, segundo Ali, era pequena para todos os que se foram acumulando durante a noite na cela. “Queriam que coubessem todos, então foram batendo nos pés, nos tornozelos, nas pernas, toda a gente se afastou da porta, e assim abrimos mais espaço, mas acabámos por quase nos esmagar uns aos outros. Puseram mais e mais gente.” As pernas de Ali têm listas roxas e avermelhadas. Não sabe, acha que já tentou mais de 20 vezes, a violência não parece assustá-lo muito. “Já quando era miúdo era muito resistente à dor, podia passar horas à porrada no liceu.” Ri-se. 

A aplicação das previsões meteorológicas, que Ali está sempre a consultar, diz que amanhã já chove. Vai chover quase uma semana seguida. 

Hoje é a noite providencial. 

Ali nunca mais voltou a responder às nossas mensagens, nem sequer foram entregues.

A ponta de um iceberg

O nosso tradutor está à espera no mesmo café, foi buscar o carro. Fazemos o caminho inverso, de regresso a Edirne, e passamos por dezenas de casas como a que serve de respaldo transitório ao grupo de rapazes macerados de que Ali faz parte. Também Iman e Medhi pernoitaram aqui algumas vezes. Também Amir no seu tempo de insubmissão, também Haytham.

Na semana de 19 a 26 de novembro, em que o Expresso visitou Edirne, a organização humanitária Josoor registou o reenvio de 545 pessoas (seis da Bulgária diretamente para a Turquia, 120 da Bulgária para a Grécia e daí para a Turquia, os restantes diretamente da Grécia para a Turquia). “O que está a acontecer é muito menos falado do que a situação dos barcos que chegam a Itália, à Grécia ou a questão da Polónia e da Bielorrússia, mas o que para mim é claro é que estamos perante um ataque concertado e global de oposição ao direito de asilo”, diz Natalie Gruber, diretora da Josoor.

Não é possível saber quantas pessoas, no total, foram enviadas nas fronteiras da Europa em 2021, porque o método não é legal e por isso é secreto. O Danish Refugee Council, que trabalha em várias fronteiras, registou 12 mil mas a própria presidente, Charlotte Slente, disse, a apresentação dos números, que eles são apenas “a ponta do iceberg”.

Estamos de regresso ao cemitério central de Edirne. Natalie pede ajuda a um funcionário do cemitério para que ele escreva numa cruz de madeira o nome árabe de um rapaz que morreu no rio e que a Josoor conseguiu identificar através de fotografias e informações trocadas com pessoas que viajaram com ele.

Acontece muito sobreviventes destas viagens contactarem a Josoor para saberem notícias dos desaparecidos, já que é de longe a ONG mais conhecida nesta zona. Natalie já foi obrigada a comunicar a algumas mães a notícia da morte dos seus filhos: elas enviam fotografias de olhos vivos, Natalie de rostos exangues. “Às vezes não acreditam em mim. Porque é que uma austríaca haveria de saber dos seus filhos? Mas quero saber o que se passou com cada uma destas pessoas. É verdade que quase nunca sabemos mais do que a nacionalidade e a causa de morte mas, de cada vez que recolhemos um nome, vimos aqui escrevê-lo.”

A origem da violência

Dimitris Koros, advogado do Conselho Grego para os Refugiados (GRC, na sigla inglesa), publicou um artigo académico sobre o problema dos reenvios ilegais, com provas de que a prática acontece há anos, pelo menos desde 2009, mas, como explicou ao Expresso ao telefone, de Atenas, “antes era uma política migratória raramente usada”. Em 2016, quando a Europa assinou o acordo com a Turquia para impedir os refugiados de partirem das praias turcas para as praias gregas das ilhas do Egeu, tornou-se “a primeiríssima política migratória do Estado grego”. O acordo, explica Koros, “só se aplica a quem chega às ilhas, não à fronteira em Edirne, então os turcos não têm de se preocupar tanto”. 

Executar um reenvio pelo mar é mais difícil: é preciso que haja barcos da Guarda Costeira disponíveis para saírem ao encontro dos barcos de refugiados, alguém que consiga danificar o motor, demora mais tempo, é preciso criar ondas para que os barcos sejam “naturalmente” enviados para águas turcas (e deixe de ser responsabilidade grega resgatá-los), etc. Além disso, os turcos estão quase sempre ali, para tirar fotografias e fazer notícias contra os gregos. “A resposta dos vários governos gregos, não só deste, também do de Tsipras [Alexis Tsipras, primeiro-ministro de 2015 a 2019], é bastante lacónica: não fazemos isto. Recentemente, o Governo deixou de negar tão taxativamente, diz apenas que é preciso proteger as fronteiras conforme estabelecido nos tratados internacionais.” 

Koros e os colegas tentam enviar queixas para o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, mas para isso é preciso “esgotar todas as vias em casa”, ou seja, o caso tem de percorrer o sistema legal grego. O problema é que, como os telemóveis são retirados aos migrantes durante o reenvio, é quase impossível haver provas cabais desse momento, “apenas fotografias dos ferimentos, que podem ter sido alegadamente infligidos por qualquer pessoa”. “Não é possível provar que foram membros de uma polícia específica, apesar de sabermos que sim, porque há demasiados testemunhos iguais. O Ministério Público não encontra a pessoa culpada, logo não há caso”, explica Koros.

A 7 de julho de 2022, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos proferiu uma decisão unânime no caso “Safi e outros v. Grécia” sobre o naufrágio de um barco de pesca, no mar Egeu, a 20 de janeiro de 2014, resultando na morte de 11 pessoas, incluindo familiares próximos dos queixosos. O TEDH deu razão aos requerentes: a tragédia foi o resultado de uma ação específica de navio da guarda costeira grega que “se movimentou a velocidade na água de forma a empurrar os refugiados de volta para as águas turcas”, fazendo com que o barco de pesca virasse. O tribunal condenou a Grécia por múltiplas violações, incluindo a violação do artigo 2 (direito à vida) da Convenção Europeia de Direitos Humanos, mas também várias lacunas no processo de averiguação de responsabilidades, uma vez que não foi realizada “uma investigação exaustiva e eficaz capaz de esclarecer as circunstâncias em que o barco naufragou”, lê-se na decisão. Cerca de 330 mil euros foram divididos pelos requerentes, mas a Grécia não enfrenta para já qualquer procedimento de infração no Tribunal Europeu de Justiça - que só pode ser aberta pela Comissão Europeia.

A ação do GRC tem várias frentes: as pessoas reenviadas ligam a explicar o sucedido, mas os advogados também recebem chamadas dos que, tendo chegado à Grécia, têm medo de ser reenviados. “Apontamos os detalhes dessas pessoas, vamos à polícia, pedimos que as encontrem e deem início ao processo de asilo, porque é o que somos obrigados a fazer.” Por vezes ligam de volta a dizer que foram mesmo reenviadas, outras não voltam a dizer nada e os seus telemóveis também já não estão operacionais quando Koros tenta saber o que se passou. “Por vezes a polícia diz que os encontrou, que estão a salvo, mas não temos forma de saber se é verdade.” O problema, referem muitos dos migrantes, é a quebra de comunicação que o desaparecimento dos telemóveis representa: quebra-se a cadeia de contactos com advogados, com ONG, com hotéis que recebem pessoas sem documentos, não se sabe por onde se caminha sem mapa, não há o número de um amigo a quem ligar. 

Apesar de a maioria dos homens que devolvem estas pessoas estar de cara tapada, Koros não tem dúvida sobre a origem desta violência: “É organizada pelo Estado, na grande maioria. Há milícias civis contra as migrações e migrantes que participam nos reenvios para evitar serem eles mesmos reenviados ou espancados”. As pessoas com quem falámos em Edirne confirmam que muitas vezes os barcos em que são devolvidos trazem a bordo um sírio, um afegão, um paquistanês.

A última viagem

O vídeo tem mais de cinco milhões de visualizações. São 20 segundos de ilusão, tudo tão fácil. Um mapa da Europa abre-se sobre o ecrã e um bonequinho de mochila às costas segue setas que partem de Istambul e vão de capital europeia em capital europeia. Às vezes vê-se o homenzinho a andar, mas a maioria da viagem é feita de carro ou de autocarro, pelo menos é o que mostra o desenho. Em menos de meio minuto chega a Berlim.

Outra publicação no YouTube, esta com modestas 208 mil visualizações, mostra com “imagens reais” o percurso de um marroquino da Turquia até à Bélgica. Veem-se campos de milho, riachos, rapazes de roupas lavadas, mochilas e calçado resistentes. E depois vemos o autor do vídeo já em casa, na Bélgica, seguro e feliz, a contar a toda a gente como fazer o mesmo. 

“É muito difícil ver esse vídeo e não tentar fazer a viagem. Apesar de conhecermos alguns dos perigos, temos direito a tentar viver longe da miséria, da tirania das castas, da vida sem sentido que tínhamos em Marrocos”, conta Iman, que acabámos de conhecer e nos mostra o tipo de informação que as pessoas no seu país partilham nas redes sociais antes de decidirem voar para território turco, para depois tentarem entrar na Europa pela Grécia ou pela Bulgária, Estados-membros que fazem fronteira com a Turquia —para onde quase toda a gente pode viajar sem mais do que um visto de turista.

Com 25 anos, Iman está grávida e fugiu com o namorado, Mehdi, de 28, há três anos. A família quis arranjar-lhe marido, mas ela já gostava do homem que tem ao lado. É branca, branquíssima mesmo, cabelo e olhos claros, o rosto rosado. Já ele, se corar, ninguém nota. Não têm ajuda de ninguém: nem da família dele, pobre; nem da dela, que a esqueceu — ou pelo menos é o que pensa Iman. “Já tinham arranjado um francês, um empresário qualquer, acho que bem rico, não gostam da pele do Medhi.”

No último ano foram reenviados 16 vezes da Grécia e da Bulgária para a Turquia. A última foi três dias antes de os encontramos no café Semx, no centro da cidade. “Istambul, Edirne, fim”, ri-se Iman. 

Esta noite, o casal vai ficar no hostel Limon, onde uma cama custa cerca de €7 por dia. São amigos de Istambul ou associações de assistência humanitária que vão pagando estas noites raras. Em três anos já viveram na rua, em Edirne como em Istambul, onde a vida é mais cara mas o trabalho é quase imediato, mesmo – ou sobretudo – para quem é indocumentado e nada pode apontar a um salário menos justo, a um turno de noite a recolher plásticos pelas ruas no inverno. Foi o que Mehdi fez quase um ano, enquanto Iman cortava tecido numa fábrica de têxteis.

É difícil encontrar uma marroquina, afegã, tunisina, entre outras nacionalidades que não têm acesso ao pedido de asilo, que não trabalhe nestas garagens com pequenas janelas retangulares ao nível do passeio, que lançam a luz azulada dos mata-moscas elétricos sobre o passo rápido de quem quer chegar a casa. 

Da primeira vez que tentaram, na primavera de 2018, pagaram 600 euros a um “passador”, mas foram reenviados. Há poucos caminhos que a polícia não patrulhe, com homens e carrinhas ou com câmaras e drones. “Vamos continuar a tentar sozinhos, ou a pé ou dividindo os custos de um barco com mais pessoas, mas passadores aqui não servem para nada, passar não é difícil. Difícil é não ser reenviado, e isso ninguém pode evitar”, diz Mehdi, enquanto vai fazendo a lista dos episódios violentos que viveu. “Um dos piores foi há dois meses, no fim do verão [de 2021]. Apanharam-nos na floresta e levaram-nos para uma casa abandonada. Na nossa cela estavam 70 pessoas, crianças, mulheres, tudo. Dessa vez levámos os passaportes porque tínhamos escolhido um caminho diferente e achámos que íamos conseguir. Ficámos sem nada, queimaram tudo numa pilha de roupa, documentos. Pedimos comida e água a noite toda e a polícia nunca nos deu nada. Um sírio deu a um guarda cinco euros que conseguira guardar nas cuecas e este trouxe um pão com queijo só para ele. Quis dar um bocado a uma criança e, como a polícia viu, obrigaram-no a comer cigarros.”

O problema das deportações ilegais é visível, está documentado e a cada dia há menos autoridades com coragem para negar o que se passa. Na semana passada, a meio de julho, o coletivo Forensic Architecture, um grupo de programadores da Universidade Goldsmiths, em Londres, que recolhe e apresenta dados sobre violência estatal contra minorias, apresentou um novo trabalho sobre este fenómeno - com uma especificidade: o uso da técnica do drift back ou seja, pessoas que são colocadas em barcos insufláveis e deixadas à deriva, uma subcategoria dos pushbacks ainda mais perigosa, porque não se consegue prever para onde a corrente do Egeu levará estes barcos (às vezes são apenas uns colchões com uma espécie de tecido impermeável por cima, em forma de tenda). De 28 de fevereiro de 2020 até 28 de fevereiro de 2022, a plataforma cartográfica mapeou 1 018 destes drift backs no Egeu, envolvendo 27464 pessoas. Pelo menos em 26 casos, as pessoas foram lançadas diretamente ao mar depois de interceptadas pela Guarda Costeira da Grécia, sem uso de nenhum suporte de flutuação. Sob a bruma do rio e a complacência das autoridades turcas e europeias, Edirne continua a ser uma esquina escondida do mundo. Não há sequer números compilados sobre o problema, há só vozes dispersas, nenhum grito síncrono.

Créditos

Texto Ana França
Fotografias Ana França e Joosor
Ilustrações João Carlos Santos
Webdesign Tiago Pereira Santos
Apoio web João Melancia
Coordenação Joana Beleza e Pedro Cordeiro
Direção João Vieira Pereira

Expresso 2022