O 25 de Abril nasceu na Guiné: a história dos homens que começaram a Revolução

Na Guiné-Bissau, onde a guerra estava perdida e a independência declarada, nasceu em 1973 o primeiro núcleo do Movimento dos Capitães. Por lá passou grande parte dos homens de Abril, como Otelo Saraiva de Carvalho, Salgueiro Maia e Vasco Lourenço
De lá se confrontou o regime. E lá se rascunhou um plano B, caso o 25 de Abril em Lisboa falhasse. Também lá se extinguiu a PIDE, ainda mais cedo do que na capital
50 anos depois, o Expresso volta à Guiné-Bissau para contar como foram plantados os primeiros cravos vermelhos
Abril de 2024
I
As particularidades do Geba
Adelino estava no quarto, a desfrutar da moleza das manhãs de domingo, quando um dos irmãos mais novos irrompe subitamente com a notícia. “Mataram o Amílcar Cabral”. Nesse momento, era urgente partilhar aquela informação com os outros. Mas não podia estar em grupo. Não mais de três pessoas, não naquele dia, ou teria a PIDE à espreita.
Acabou a percorrer a Avenida da Liberdade de uma ponta à outra, várias vezes, de manhã ao anoitecer, com outros dois camaradas. Horas e horas a conversar para não chegarem a outra conclusão senão a de que o território onde tinham nascido perdera a esperança de se tornar país naquele sábado, 20 de janeiro de 1973.
Foi esmagado por uma sensação de orfandade. O último ano do curso de Engenharia de Eletrotecnia e Máquinas, que frequentava no Instituto Superior de Engenharia de Lisboa, perdera a razão de ser. Continuar a lutar pela liberdade à distância de mais de três mil quilómetros deixara de fazer sentido. “Foi nesse dia que decidi sair.”

Adelino Handem na avenida Amílcar Cabral, em Bissau Foto Danilo Vaz
Adelino Handem na avenida Amílcar Cabral, em Bissau Foto Danilo Vaz
Aproveitou a inscrição numa viagem de estudo a Londres para lhe ser autorizada a saída. Cortou a barba e o cabelo. Tornou-se “outra pessoa” no interrogatório com a polícia política. Engendrou um plano, sobre o qual não deu a conhecer à rede clandestina que informava e mobilizava para a luta de libertação da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, e na qual participava a partir de Lisboa.
Era março quando se desviou da rota e apanhou um comboio para Paris. Já lá tinha contactos do PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde), que o fariam chegar aos Países Baixos, para depois ser levado, já em abril, de avião para a Guiné-Conacri, onde o movimento tinha a sua base de atuação. Aos 22 anos, Adelino Handem foi o primeiro a integrar as fileiras do movimento de libertação, saído de Portugal, depois do trágico assassinato de Amílcar Cabral.
O sentimento era o de que “a luta não podia morrer” junta com Amílcar Cabral.

Amílcar Cabral. Foto arquivo pessoal de Manecas dos Santos
Amílcar Cabral. Foto arquivo pessoal de Manecas dos Santos
A supremacia dos “turras”
Fazia quatro anos que o calor húmido africano não lhe aconchegava o corpo. É um calor que faz aumentar os pés para o dobro. O mesmo que meio século depois escorre pelas silhuetas das mulheres, robustas, a carregarem à cabeça bacias de fruta para tentarem vender aos clientes do café Império. O café, paredes meias com a praça que tinha o mesmo nome no tempo colonial – hoje Praça dos Heróis Nacionais – é uma varanda com vista privilegiada para o coração de Bissau, onde se refresca uma classe social mais abonada.
Está situado no começo da recém-inaugurada Avenida Amílcar Cabral, que liga o Palácio Presidencial ao famoso Cais de Pidjiguiti, onde, em 1959, marinheiros e estivadores foram mortos enquanto faziam greve, exigindo melhores condições de vida. Foi o início da revolta popular que daria vida à luta dos guineenses.
Hoje, ali só jaz uma estátua de Amílcar Cabral. Ao fim da tarde, alguns jovens fazem exercício, crianças andam de patins em linha com falta de algumas rodas e homens descansam nos bancos de jardim que separam as duas vias, no asfalto.

Avenida Amílcar Cabral, Bissau Foto Danilo Vaz
Avenida Amílcar Cabral, Bissau Foto Danilo Vaz
Quando Adelino saiu do calor tropical da então colónia portuguesa para estudar em Lisboa, em 1969, estava o movimento de Amílcar Cabral a ganhar fôlego contra o exército português. Quando regressou para integrar a luta armada, logo após a morte do líder do PAIGC, a Guiné-Bissau já era, das três colónias que estavam em guerra – Angola, Moçambique e Guiné – aquela em que os “turras” (terroristas) mais complicavam a vida ao exército português.
Era o teatro de guerra mais difícil.
Por um lado, o clima tórrido e os terrenos lamacentos no mato, pela água que galgava o rio Geba. Por outro, a fação diplomática da luta de Cabral, com apoiantes em todo o mundo, que não só apoiavam a independência da Guiné e de Cabo Verde, como treinavam e armavam o movimento.
Era uma luta inserida num cenário mundial em que já deixara de fazer sentido o colonialismo clássico. Inglaterra e França estavam a explorar mecanismos de libertação das suas colónias. Portugal estava tão isolado que não prestava atenção aos sinais globais que esvaziavam o posicionamento de Salazar e de Marcello Caetano.
TOQUE PARA AUMENTAR AS FOTOGRAFIAS

Militares do PAIGC Foto arquivo pessoal de Manecas dos Santos
Militares do PAIGC Foto arquivo pessoal de Manecas dos Santos

Avião português abatido pelas armas Strela, oferecidas pela União Soviética à guerrilha armada do PAIGC. Foto arquivo pessoal de Manecas dos Santos
Avião português abatido pelas armas Strela, oferecidas pela União Soviética à guerrilha armada do PAIGC. Foto arquivo pessoal de Manecas dos Santos

A luta armada do PAIGC Foto arquivo pessoal de Manecas dos Santos
A luta armada do PAIGC Foto arquivo pessoal de Manecas dos Santos
A revolução começaria, ainda que ninguém o soubesse, em dois momentos puramente táticos.
O primeiro esteve nas mãos de Manuel (Manecas) dos Santos – literal e metaforicamente. Nelas foi confiado o treino, na Crimeia, antiga União Soviética, da arma que lançaria os mísseis Strela. Era uma arma antiaérea, praticamente desconhecida à época, capaz de seguir o calor da cauda do avião e de o derrubar.

Manuel (Manecas) dos Santos, combantente pelo PAIGC Foto José Fernandes
Manuel (Manecas) dos Santos, combantente pelo PAIGC Foto José Fernandes
Aos 81 anos, o comandante do PAIGC é um dos últimos líderes vivos do movimento de libertação. É um homem alto e forte, cuja idade já não permite disfarçar alguma debilidade física. Aos trinta anos, depois de ter estudado engenharia em Lisboa, fez preparação militar em Cuba, um treino físico “diabólico”. Foi várias vezes à antiga URSS. Não demorou até ter sido o eleito por Amílcar Cabral para ir aprender sobre a arma soviética que derrubaria o domínio aéreo do exército português.
“Não poder ir buscar feridos conta muito psicologicamente. O soldado que sabe que está num lugar onde pode ser ferido e que não pode ser evacuado, não tem a mesma moral”, reconhece hoje, na casa em Massamá onde passa parte do ano, que divide entre Portugal, Cabo Verde e a Guiné-Bissau.

Manecas dos Santos, na luta de libertação da Guiné-Bissau Foto arquivo pessoal de Manecas dos Santos
Manecas dos Santos, na luta de libertação da Guiné-Bissau Foto arquivo pessoal de Manecas dos Santos
Foi com a queda do primeiro caça que a tropa perdeu os céus.
Mas o cenário ainda pioraria, quando em maio o PAIGC decidiu avançar com uma ofensiva que mais tarde ficaria conhecida como Inferno dos Três G's. A emboscada determinava atacar dois quartéis do exército colonial – a sul, o de Guileje que, depois de ocupado, fez as tropas deslocarem-se para Gadamael; e a norte, o de Guidage, comandado por Salgueiro Maia. Foi Manecas dos Santos quem o cercou e atacou. E confessa agora, 50 anos depois, estar convencido de que o “corajoso” herói de Abril “aguentou lá em Guidage o que nenhum oficial português mais aguentou na Guiné”.
Foi a gota de água. Do lado português todos perceberem que a guerra estava perdida.
Aí começou o 25 de Abril.
II
Onde a contestação convivia com o calor tropical
Aos 30 anos, Manuel Duran Clemente era um homem inquieto demais aos olhos do regime. Vinha de uma família remediada, de pai beirão e mãe galega. Mas o casamento permitiu-lhe outro nível de vida, que incluía visitas frequentes a Paris e compras de livros censurados em Portugal. Amigos destacados, como Maria Teresa Horta, Maria João Seixas e Fernando Mascarenhas, fizeram-no entender as injustiças do mundo. Era politizado. Antifascista. De esquerda.
O embate de frente com o regime começou quando, oito anos depois de estar no Quadro Permanente do Exército, pediu para sair da carreira militar. Mas em plena guerra colonial o requerimento não foi aceite. Em tom de protesto, o jovem oficial foi assistir clandestinamente ao Congresso da Oposição Democrática, promovido em Aveiro, em abril de 73.
Na sacola, levou 30 cópias do requerimento, em papel selado, que distribuiu a quem lhe apeteceu. Só que um confronto com a PSP fez o exército dar de caras com os seus espíritos revolucionários. Como castigo, foi enviado para a Guiné-Bissau.

Capitão Duran Clemente, no ano em que foi destacado para a Guiné-Bissau Foto arquivo pessoal de Manuel Duran Clemente
Capitão Duran Clemente, no ano em que foi destacado para a Guiné-Bissau Foto arquivo pessoal de Manuel Duran Clemente
“Foi o azar deles”, congratula-se hoje o coronel, na cadeira predileta que tem na sala, onde compôs umas anotações para servirem de auxiliar à ténue memória dos 81 anos. As datas não lhe fogem. Saiu de Lisboa a 28 de julho e chegou a Bissau quando o mês terminava, em plena época das chuvas.
Chegou descontente. Apesar de um 2.º comandante de um batalhão de intendência -responsável por levar mantimentos e gasolina para o mato, não ter de pegar em armas -, Clemente tinha consciência de estar na frente de uma guerra cuja legitimidade questionava.
Começou a sentir o pulso aos outros capitães, pronto a dar-lhes notícia dos movimentos contra o regime que se faziam sentir em Lisboa: as lutas antifascistas, sem as quais, reforça, “também não tinha havido 25 de Abril”.
O embrião do Movimento dos Capitães
Ainda o capitão não se tinha acostumado ao mais rigoroso dos teatros de guerra, quando começou a sentir que a revolta estava ali instalada. A causa era um decreto-lei do governo, publicado semanas antes, que equiparava jovens milicianos com um curso de poucos meses a oficiais de carreira com instrução de cinco ou seis anos.
Foi uma tentativa do regime de “aliciar rapazes escolarizados que, no final de 73, rejeitavam completamente a participação na guerra e muitos desertavam”, explica o historiador José Lopes Cordeiro. A diretiva foi muito mal recebida pelos militares “que tinham dado o corpo ao manifesto durante 13 anos de guerra”. Mas a questão ia mais fundo. A reação puramente corporativa passara a ser também política.
Tudo começou em Bissau. Um grupo de capitães mais politizados decidiu juntar-se para aproveitar a boleia do descontentamento e alertar os outros do que corria mal nos aspetos políticos e sociais do país.
O núcleo dinamizador incluía os capitães Duran Clemente e Carlos de Matos Gomes, então 2.º comandante do Regimento de Comandos da Guiné. A primeira reunião deu-se a 17 de agosto de 73 na sala de jogos do Clube Militar, em Bissau, onde hoje está instalado o Hotel 24 de Setembro, no bairro de Santa Luzia. Mais de 30 responderam à chamada, entre eles Otelo Saraiva de Carvalho. No espaço de oito dias, realizaram-se outros três encontros, dos quais saiu a decisão de redigir uma carta de protesto, que mais tarde viria a ser endereçada ao Presidente da República, Américo Thomaz, e ao Presidente do Conselho, Marcello Caetano.

Carlos Matos Gomes, capitão de Abril Foto Rui Duarte Silva
Carlos Matos Gomes, capitão de Abril Foto Rui Duarte Silva
No grupo encarregado de escrever o texto estavam os capitães Duran Clemente, Carlos de Matos Gomes e Teixeira Branco, para além do recém-promovido a major Almeida Coimbra. O “ultimato” seria assinado por 46 capitães e cinco tenentes (dos 66 destacados na Guiné). Um ultraje, de uma grande indisciplina, numa época de rédea curta para manifestações coletivas.
“Isso causou o seu efeito”, conta o coronel Duran Clemente. Marcello Caetano ficou preocupado. E tinha razão, porque o movimento teve lastro, quer na “metrópole”, com 136 oficiais a assinarem um documento semelhante em Alcáçovas, Évora, quer depois em Angola e Moçambique.
Estava lançada a primeira pedrada no charco. E o momento era incontestável. Umas semanas antes, António de Spínola, então governador daquela colónia, tinha regressado a Portugal no fim da missão, apregoando que “a solução na Guiné era política e não militar”, enquanto Marcello Caetano resistia: “Prefiro um desastre militar a negociar seja com quem for”.

Mercado de Bandim, Bissau, Guiné-Bissau Foto Danilo Vaz
Mercado de Bandim, Bissau, Guiné-Bissau Foto Danilo Vaz
Enquanto isso, na Guiné, a 24 de setembro de 1973, o PAIGC declarava independência unilateral, com mais de 70 países a reconhecerem-na, depois de uma comitiva das Nações Unidas ter atestado que o movimento de guerrilha já estava no controlo de uma boa parte do território. Portugal permanecia indiferente.
Foi a Guiné-Bissau a desempenhar o papel de “detonador do processo”, nas palavras do coronel Matos Gomes, que além de capitão de Abril, se notabilizou enquanto historiador e escritor. Ele, que já tinha estado na guerra em Angola e Moçambique, como comando, pôde testemunhar como ali, pelo tempo histórico mas também pelas características do terreno, as coisas eram diferentes.
Mas não só de aspetos práticos se fez a diferença. “Há uma conceção teórica que sustentou toda a luta”, que, para Dautarin da Costa, sociólogo guineense, ultrapassou as barreiras sociais entre os dois lados da guerra.
Também ao exército colonial chegou a mensagem principal da teoria de Amílcar Cabral: “A nossa luta não é contra os brancos, não é contra os portugueses. É contra o sistema colonial português, que nos oprime aqui e que oprime os portugueses lá na terra deles”.
O antigo ministro da Educação da Guiné-Bissau, que tem estudado a luta de libertação do seu país, crê que, para os militares portugueses, a dada altura, impõs-se questionar a utilidade da guerra. “Falamos de um conjunto de jovens que saem de outro país, vêm para a Guiné e encontram jovens mais ou menos da mesma idade, altamente motivados para conquistar a sua libertação, altamente instruídos ideologicamente para construir esse processo e com argumentos que faziam sentido, inclusivamente ao próprio adversário.”
III
O plano B: fazer o golpe em Bissau
O final do ano de 73 é marcado por um movimento grevista “mais ou menos espontâneo” que vai até ao 25 de Abril. Antes, as lutas académicas eram sentidas sobretudo em Coimbra e Lisboa. O regime durava há 48 anos e, apesar da censura, as pessoas estavam cada vez mais informadas.
Por essa altura, surge o interrail. Embora reservado a poucos, permitia à pequena burguesia viajar durante um mês pela Europa por 300 escudos. Ao mesmo tempo que os emigrantes, regressados no verão para as terras, traziam as notícias das sociedades em que viviam; sociedades onde havia imprensa livre, comícios, propaganda eleitoral e oposição.
Os anos anteriores tinham sido marcados pela chegada da droga a Portugal - a marijuana, também, mas não só, vinda de Moçambique, onde tinha sido batizada de “liamba”.
Para o historiador José Lopes Cordeiro, “um dos problemas do regime, que leva à sua queda, é que perdeu a juventude”. E prova disso é a forma como lida com a droga, espalhando cartazes onde se lia “Droga Loucura Morte” e com uma caveira desenhada.
Há também a música. É a partir do final de 70 que a canção de intervenção em português ganha outro fôlego, depois do surgimento de três álbuns revolucionários – “outro aspeto que tem muita influência na juventude”, diz o historiador – o Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, do José Mário Branco, o Gente daqui e de agora, do Adriano Correia de Oliveira, e o Cantigas do Maio, do José Afonso. Ainda um EP, do Sérgio Godinho, que anteciparia o álbum Sobreviventes, do ano seguinte.
Que força é essa? Que força é essa?
Que trazes nos braços?
Que só te serve para obedecer?
Que só te manda obedecer?
Que força é essa? Amigo
Que força é essa? Amigo
Que te põe de bem com outros
E de mal contigo?
Nos finais 73 e no início de 74, no plano militar, as ações eram sempre “de ocasião”. O PAIGC, em total supremacia, conquistava cada vez mais território e tinha a população do seu lado. E os militares começaram a cogitar um plano para acabar a guerra.
Os ânimos estavam exaltados. A impaciência pairava no ar. Foi esse o recado que Salgueiro Maia trouxe para Portugal, quando terminou a missão na Guiné, em janeiro de 1974.
Se na “metrópole” os militares estavam a acordar para a necessidade de um golpe, esperando um dilatar da frustração, “na Guiné não havia dúvidas nenhumas”, assevera o coronel Duran Clemente.
Por várias vezes o capitão, quando vinha a Portugal já como delegado do Movimento das Forças Armadas, ameaçava que, se as tropas não se despachassem em Lisboa, o MFA-Guiné iria avançar. Numa delas, Vasco Lourenço havia de lhe dar a certeza: a “ação” ia avançar. Estava programada para antes do 10 de junho.
Esse era o plano A: um golpe militar que ocuparia as ruas de Lisboa e tiraria o governo do poder. Para a Guiné havia um plano B. “Na Guiné o que estava previsto era que, se as coisas corressem mal em Portugal, nós iríamos desencadear um processo de ocupação de poder na Guiné”, recorda Matos Gomes.
TOQUE PARA AUMENTAR AS FOTOGRAFIAS

Guerrilheiro do PAIGC Foto arquivo pessoal de Manecas dos Santos
Guerrilheiro do PAIGC Foto arquivo pessoal de Manecas dos Santos

Bebé ferido na guerra Foto arquivo pessoal de Manecas dos Santos
Bebé ferido na guerra Foto arquivo pessoal de Manecas dos Santos

A Escola Piloto, que Amílcar Cabral fundou na Guiné-Conacri Foto arquivo pessoal de Manecas dos Santos
A Escola Piloto, que Amílcar Cabral fundou na Guiné-Conacri Foto arquivo pessoal de Manecas dos Santos
A noite
Tcherno So dava aulas de português, na tabanca (aldeia), ao mesmo tempo que era telegrafista da tropa colonial. Em Buruntuma, uma cidade do leste da Guiné-Bissau quase encostada à fronteira, o quartel distava apenas dez quilómetros do quartel do PAIGC, na Guiné-Conacri. Em média, os guerrilheiros, seus conterrâneos, faziam dois ataques por dia. Quase sempre à noite.
E a memória do homem não esquece aquela noite em que a mãe morreu num desses ataques, com mais 36 pessoas, quatro anos antes. Eram oito da noite. As casas, palhotas, incendiaram.

Tcherno So, hoje chefe de tabanca, em Gabu, leste da Guiné-Bissau Foto Danilo Vaz
Tcherno So, hoje chefe de tabanca, em Gabu, leste da Guiné-Bissau Foto Danilo Vaz
Por isso, o professor não tinha motivos para desconfiar de que estava do lado certo da luta. Até que, em meados de 73, lhe chegou uma carta do tio, irmão mais novo do pai, a contar que fazia parte da estrutura do PAIGC. “Disse-me que estava bem, que tinha sido levado para a União Soviética para fazer treino de guerrilha e que estava em Conacri, mas bem”, conta. Também o instruiu para queimar a carta depois de a ler. E Tcherno assim fez, para depois lhe endereçar a resposta.
A troca de correspondência entre “inimigos” acontecia, garante. Especialmente entre guineenses e caboverdianos em lados opostos da guerra, já que, entre militares portuguesas e guerrilheiros do PAIGC seria difícil. Havia quem se deslocasse e até quem fosse participar clandestinamente em reuniões do PAIGC. “Bastava dizer que alguém da família tinha morrido do outro lado. A PIDE tomava conhecimento e dava-lhe autorização.”
Quando percebeu que estava do lado errado da história, que afinal “a guerra [do PAIGC] era justa e a liberdade era necessária”, não faltaram as noites em que pediu para que acabasse. Mas, naquela noite, não havia sinal de que algo pudesse ser diferente de todas as outras.

Manuel Duran Clemente, capitão de Abril Foto António Pedro Ferreira
Manuel Duran Clemente, capitão de Abril Foto António Pedro Ferreira
Duran Clemente, em Bissau, sabia que sim. Fazia parte do combinado receber de Lisboa, de quarto em quarto de hora, uma comunicação do MFA. E estava tudo a postos para acontecer, “não fosse a Legião Portuguesa ter desligado o emissor da delegação da Emissora Nacional para as colónias”, revive o coronel. Instalou-se o pânico na ex-colónia. O que será que se estava a passar em Lisboa?
Foi uma noite em branco, para a qual só houve solução através das agências internacionais Agence France-Press e Reuters, quando começaram a noticiar um golpe de estado na capital portuguesa. “A meio da noite, pudemos gritar de contentes.”
TOQUE PARA AUMENTAR AS FOTOGRAFIAS

Manifestação da Juventude Africana Amílcar Cabral, complemento essencial na mobilização do PAIGC Foto arquivo pessoal de Manecas dos Santos
Manifestação da Juventude Africana Amílcar Cabral, complemento essencial na mobilização do PAIGC Foto arquivo pessoal de Manecas dos Santos

Guerrilheiros do PAIGC. Foto arquivo pessoal de Manecas dos Santos.
Guerrilheiros do PAIGC. Foto arquivo pessoal de Manecas dos Santos.

A alvorada de Abril tinha invadido as ruas e as pessoas também, apesar das ordens do exército para se manterem em casa. José Lopes Cordeiro, que por acaso estava em Lisboa nesse dia, lembra-se de um céu cinzento, com poças de águas que denunciavam ter chovido durante a noite. No cume dos 20 anos, encantado pelo lado apelativo da capital, para onde ia sempre que havia folga das aulas no Porto, recorda-se dos ardinas, que nem precisavam de anunciar os jornais, alguns com cinco edições. Num ápice, vendiam-nos todos.
A capital estava vazia de serviços. José teve fome e não havia onde comprar comida. Também se recorda nesse dia de uma Lisboa vazia de automóveis. “Não havia trânsito. As pessoas tinham tomado a cidade. O comércio fechou. Não havia transportes públicos. Andava-se à boleia. Era uma solidariedade total: arranjava-se imediatamente boleia”.
IV
Encontro de inimigos
No rescaldo do grande dia, os oficiais na antiga colónia portuguesa enviaram uma mensagem intitulada Geral Guiné. Endereçaram-na a todas as unidades, através da rádio militar. Dizia que o Movimento dos Capitães tinha tomado o poder. “Quem não estava de acordo, ia para Bissau e depois vinha para Lisboa oito dias depois”, relembra Duran Clemente.
Contrariamente ao que estava determinado pela Junta de Salvação Nacional, na Guiné a PIDE foi extinta de imediato e os presos políticos foram logo libertados – “mais cedo do que em Portugal”, assinala Matos Gomes. O poder foi tomado pelo MFA-Guiné e “isso é determinante, porque impôs o mesmo modelo às outras colónias”, impossibilitando qualquer tentativa de não reconhecer os movimentos de guerrilha.

Na Guiné-Bissau de hoje, a ruralidade impera. Dois idosos esperam por uma consulta no hospital de Bubaque, a principal das ilhas Bijagós Foto Joana Ascensão
Na Guiné-Bissau de hoje, a ruralidade impera. Dois idosos esperam por uma consulta no hospital de Bubaque, a principal das ilhas Bijagós Foto Joana Ascensão
Manecas dos Santos, do lado de lá da guerra, entretanto pausada, testemunha que os guerrilheiros não perceberam de imediato de que golpe se tratava. Mas desconfiavam. Pelo sim pelo não, o comandante do PAIGC deu ordens à sua gente “para não fazerem nenhuma ação contra a tropa portuguesa que não fosse provocada.” Foi só quando, nos dias seguintes ao 25 de Abril, Mário Soares se encontra com Aristides Pereira (entretanto secretário-geral do PAIGC) em Dakar, que teve “sinal certo” de que ali se iniciavam negociações para dar independência às colónias.
Dos momentos que se seguiram guarda a memória que mais o acalenta. É que, naquele território do tamanho da região do Alentejo, apesar de ter sido o cenário da guerra mais violenta, “uma coisa admirável é que, em pouco tempo, tudo parou”.
Entre as recordações ainda vivas nos ternos 81 anos, recupera o dia em que a sua equipa de guerrilha se encontrou pela primeira vez, ao fim de 13 anos, com os adversários diretos portugueses.
Estava no acampamento a comandar toda a frente norte quando lhe entrou por lá adentro um soldado, branco, fardado e desarmado. Era um cabo-verdiano, combatente pelo lado português, cuja família conhecia. Vinha propor ao comandante um encontro entre ele e o comandante português de Farim, “num dia a combinar”.
“Nós fomos a esse encontro todos armados, mas eu penso que reinava até alguma confiança e alguma cordialidade entre as partes. Chegámos lá e encontrámo-nos. O alferes Vladimiro Almeida apresentou-me ao major, que era o comandante de Farim. Estivemos a conversar durante 45 minutos ou uma hora. Conversámos só sobre paz. Depois, cada um foi para o seu lado.”

O primeiro encontro dos "homens" de Manecas dos Santos com a tropa portuguesa que era inimiga direta Foto arquivo pessoal de Manecas dos Santos
O primeiro encontro dos "homens" de Manecas dos Santos com a tropa portuguesa que era inimiga direta Foto arquivo pessoal de Manecas dos Santos
Foi assim que, apenas 45 dias depois do 25 de Abril, os soldados que em 13 anos se fizeram inimigos “estavam a beber juntos”.
Para Manecas, foi um alívio. E uma lição.
Significava que a guerra tinha mesmo acabado. Mas, mais que isso, significava que os adversários, quando se respeitam, não demoram mais do que o tempo necessário para fazerem as pazes.
Créditos
Reportagem Joana Ascensão, na Guiné-Bissau
Fotografias Danilo Vaz (na Guiné-Bissau), António Pedro Ferreira, José Fernandes e Rui Duarte Silva
Webdesign Tiago Pereira Santos
Edição de aúdio João Martins
Webdevelopment João Melancia
Coordenação Marta Gonçalves, Pedro Candeias e Joana Beleza
Direção João Vieira Pereira
Expresso 2024