O “poço da morte” que trouxe o ouro precisa de melhores condições

Reportagem no velódromo nacional de Sangalhos, berço da glória de Iúri Leitão e Rui Oliveira nos Jogos Olímpicos de Paris. Mas, sob pena de “estagnação”, é preciso mais investimento, porque Portugal entra sempre na pista “em desvantagem”

outubro 2024

Em 2009, o sonho antigo de Artur Moreira Lopes, presidente da Federação Portuguesa de Ciclismo, concretizava-se. Fruto de uma parceria entre o Governo de José Sócrates, a Câmara Municipal de Anadia e a federação, era inaugurado o velódromo nacional de Sangalhos, resultado de um investimento de pouco mais de €12 milhões.

Gabriel Mendes, selecionador nacional, entrava para um mundo por explorar para o ciclismo português. A pista era como um planeta distante, sem nada. “Não tínhamos uma seleção, partimos do zero. Não tínhamos atletas que fizessem ciclismo de pista, só tínhamos bicicletas básicas, de aprendizagem", recorda. Começando pelas bases, criou-se uma escola de ciclismo de pista. No segundo ano do projeto, dois gémeos adolescentes de Vila Nova de Gaia juntaram-se ao grupo orientado por Mendes.

Rui e Ivo Oliveira estavam habituados à estrada, só conheciam os velódromos da televisão. Rui recorda-se de, no primeiro contacto com o planeta desconhecido, se sentir “atraído” pela “adrenalina”, pela “inclinação da pista”, pela “vertigem” de andar em bicicletas sem travões.

Em 2013, os ainda muito jovens irmãos Oliveira trouxeram as primeiras medalhas internacionais para Portugal. Estava ali "uma validação do trabalho", a prova de que era "possível competir com os melhores do mundo", lembra Rui, mesmo tendo "equipamentos piores".

Rui Oliveira fala já não como o menino que entrou pela primeira vez em Sangalhos. O gaiense tornou-se, juntamente com Iúri Leitão, o primeiro campeão olímpico da história portuguesa a não vir do atletismo. No Madison dos Jogos Olímpicos de Paris 2024, a dupla fez história, num êxito que se juntou à prata de Leitão, em solitário, no Omnium.

No ano em que o velódromo nacional cumpriu 15 anos de vida, os resultados dos Jogos causam uma satisfação brutal, são o culminar de um processo, confessa Gabriel Mendes. Além de Iúri e Rui, também Ivo Oliveira, Maria Martins ou João Matias ganharam, nas últimas temporadas, medalhas em Europeus e Mundiais. Nos campeonatos do mundo que decorreraram até 20 de outubro, na Dinamarca, a competitividade da seleção voltou a ficar evidente, com os quartos lugares de Rui e Ivo Oliveira no madison e de Diogo Narciso — estreante — na eliminação, além dos sextos de Rui Oliveira no omnium, de Ivo Oliveira na perseguição individual e de Maria Martins na eliminação. Diogo Narciso foi sétimo nos pontos, Maria Martins foi 11.ª no omnium e 16.ª no sratch e Daniela Campos terminou a corrida por pontos em 12.ª.

Um dirigente da federação de ciclismo, guia de circunstância desta visita ao velódromo, exclama: “Isto parece o poço da morte!”. Todos estes ciclistas são produtos do trabalho feito neste recinto que faz lembrar a antiga atração das freiras, com um centro mais baixo em relação à pista, dando uma sensação de vertigem quando se olha para cima, vendo os 250 metros de extensão, com 7,10 metros de largura e curvas com inclinação máxima de 41,2% e mínima de 11,8%.

Contando com condições de treino para ciclismo, ginástica, esgrima ou judo, passaram, em 2023, atletas de 74 países pelo centro de estágio associado ao velódromo, incluindo medalhados de Paris 2024, como australianos na pista, franceses no BMX e esgrima e uma bielorrussa na ginástica.

A ditadura da aerodinâmica

Há um certo contraste dentro do velódromo. A velocidade estonteante, a adrenalina, colidem com uma especialidade pensada ao pormenor, incrivelmente ligada à ciência, da física à aerodinâmica, uma competição onde cada miligrama é calculado, em que o menor atrito é um inimigo a combater.

Iúri Leitão tem especial interesse por tudo isto. O campeão olímpico acompanha os colegas enquanto estes fazem medições, sugere-lhes ajustes, é quase um adjunto do selecionador.“A pista reduz-se muito à performance física e aerodinâmica. Andar numa bicicleta com dois pneus a tocar no chão e uma corrente a passar em duas engrenagens está-nos constantemente a travar. Temos de reduzir o atrito ao máximo para sermos o mais eficientes possível. Temos de construir a posição mais aerodinâmica em cima da bicicleta”, explica.

“No inverno, em vez de irmos para a estrada, para o frio e para a chuva, podemos treinar aqui.” Espreita-se para fora do velódromo, vê-se o temporal que cai sobre Sangalhos e compreende-se melhor a real dimensão das palavras de Ivo Oliveira.

Com mais ou menos frio, são muitos os dias que esta geração passou aqui. Há um “trabalho contínuo”, conta Gabriel Mendes, uma preparação mais exigente na antecâmara das competições, mas que se estende a todo o ano. Não se afina só a velocidade, a posição na bicicleta ou a parte do corpo do colega em que se deve agarrar quando há a passagem de testemunho no Madison. No ouro que Iúri e Rui ganharam, impressionou o sincronismo tático, entendimento que é polido em Sangalhos. A 60 voltas do fim, Leitão disse a Oliveira que a dupla tinha de atacar, mas a resposta do gaiense foi clara: “Calma, deixa-os matarem-se primeiro e depois nós arrancamos para dar a volta a isto.”

À entrada para o último quarto da competição, a dupla portuguesa estava em 11.º lugar. Só nas derradeiras 25 voltas se deu uma aceleração, 10 minutos de loucura rumo ao ouro que se trabalharam ao longo de 10 anos.

O selecionador explica como as voltas douradas de Iúri e Rui se cozinharam ao longo de anos de “grande preparação”. No dia da corrida, o técnico deu poucas indicações, já estava tudo estudado e definido anteriormente, mas não num plano estanque, porque “é uma prova imprevisível”, pelo que “temos de ser flexíveis”, numa adaptabilidade às circunstâncias que também se trabalhou. “É difícil comunicar, há muito ruído. Fomos com um plano prévio e eles foram muito rigorosos”, elogia Gabriel Mendes.

Para Iúri Leitão, a pista “à séria” começou mais tarde do que para os gémeos. Só com “20 ou 21 anos” é que as bicicletas sem travões se assumiram como mais do que um complemento à preparação para a estrada. O vianense é conhecido como o cérebro tático da equipa, um ciclista que consegue fazer contas do que é preciso em cada momento enquanto está em esforço máximo, um motor nas pernas complementado por uma calculadora na cabeça.

Mas nem sempre foi assim. Leitão conta que, ao início, era uma “barata tonta” às voltas no velódromo, que “não sabia o que estava a fazer”. Aqui entram novamente os anos que prepararam os minutos de glória nos Jogos, porque “saber estar tranquilo e frio também se trabalha”, garante. “Já fiz imensas provas com os meus colegas, quase nada é novo ou surpreendente. Não precisamos de comunicar muito.”

Grande figura de Portugal em Paris 2024, Iúri dividiu com Patrícia Sampaio a responsabilidade de ser o porta-estandarte na cerimónia de encerramento dos Jogos Olímpicos. Ao entrar no Stade de France, o recinto eternizado pelo golo de Éder, o vianense sentiu-se “o rei do mundo”. O estatuto dourado não parece entrar dentro do velódromo, onde Leitão, sempre parecendo um assistente, se empenha em colocar numa mesa barras energéticas ou garradas de água para os colegas.

Correr em desvantagem

Entre 8 e 10 de agosto o ciclismo de pista mudou. “Houve pessoas que me disseram que não perceberam nada da prova, mas choraram a vê-la. É o bonito do desporto”, reflete Rui Oliveira. Todos sabem que vencer um ouro e uma prata quase de seguida deu um protagonismo inédito à modalidade das bicicletas sem travões, colocou Omnium e Madison na ponta da língua dos portugueses, mas há uma nuvem em Sangalhos.

Essa ideia, parte preocupação, parte desejo, parte esperança, é expressa numa pergunta de Rui: “Se fizemos isto com tão pouco, o que poderíamos fazer com mais apoios?”

Não há dúvidas de que a realidade é bem melhor do que há 10 ou 15 anos. Há, desde logo, um velódromo, há um grupo de ciclistas de elite, há uma estrutura montada. Mas Iúri Leitão acha, “sem dúvida alguma”, que sempre que Portugal inicia uma competição fá-lo “com bastantes desvantagens” face aos adversários.

Recuando à ditadura da aerodinâmica, a “desvantagem” começa fazendo contas ao material: Rui Oliveira explica que há seleções com “bicicletas de €50 mil ou €100 mil, com quadros e rodas que custam mais de €20 mil ou €30 mil”, valores muito superiores aos quadros utilizados pelos portugueses, os quais custam, diz, “2.500€”. Há equipas com fatos de €10 mil ou 5.000€, prossegue Oliveira, ao passo que o fato nacional custou 700€.

O alerta é partilhado por Gabriel Mendes, que constata que foram ganhas duas medalhas “com um investimento significativamente inferior ao dos adversários” e diz ser “evidente” a necessidade de “mais investimento”, caso contrário será “difícil sustentar o sucesso”. O problema alarga-se à falta de recursos humanos. A equipa não dispõe de técnicos de vídeo, que possam recolher imagens e analisá-las com os corredores, e Rui Oliveira lembra que, na semana antes dos Jogos, “faltava gente para contar as voltas no treino”.

Delmino Pereira, presidente da Federação Portuguesa de Ciclismo em fim de mandato, explica os investimentos que foram sendo feitos, constata o crescimento da última década, detalha a evolução desde os tempos em que mal havia equipamento específico para a pista até hoje. No entanto, todos concordam na necessidade de melhorias, sob pena da estagnação.

Rui Oliveira detalha as carências: "Faltam recursos, faltam pessoas, às vezes precisamos de mais staff para as corridas. A federação e o professor Gabriel têm feito o melhor para nos proporcionar as melhores condições possíveis, o Comité Olímpico também o faz nos Jogos. Mas, por fazermos boas coisas com pouco, não quer dizer que deva continuar assim. Devemos ser ambiciosos e lutar por coisas grandes. É preciso elevarmos isto para outros patamares", explica o campeão, ao admitir que, depois de Paris, talvez tenha "mais alguma voz para expressar o que se pode melhorar".

Leitão aponta à base da pirâmide, lamentando que de momento “não haja um programa de desenvolvimento de jovens”. Ele e os restantes estão prontos para canalizarem o seu lado professoral. "É fundamental termos uma sucessão, estarmos a ensinar os nossos jovens desde cedo, porque eu e os meus colegas temos muita coisa para ensinar, muito conhecimento que podemos passar. Gostava de ter aqui jovens. Quando comecei, havia a oportunidade de termos aqui juniores ou sub-23, agora já não acontece tanto. É uma coisa que me preocupa, mas estou confiante que mude num futuro próximo", diz o duplo medalhado em Paris 2024.

Gabriel Mendes admite que são necessários “mais ciclistas jovens”, torcendo o nariz às “limitações orçamentais para levar atletas a campeonatos internacionais”, sendo necessário “um reforço” também nessa área.

Enquanto reflete sobre o futuro, Iúri é confrontado com o facto de ser um dos melhores olímpicos portugueses de sempre. Só o vianense, Carlos Lopes e Pedro Pablo Pichardo têm uma medalha de ouro e outra de prata, registo que o ciclista conseguiu em 72 horas. “Comparo-me com essas lendas e acho que ainda sou muito pequenino”, vinca Leitão, que regressa aos tempos em que um velódromo era um planeta estranho: “Quando comecei a andar de bicicleta, nem sabia o que era uma pista. Pensar nisso é um bocado surreal.”

Créditos

Texto Pedro Barata
Fotografias Rui Duarte Silva
Vídeo e edição José Cedovim Pinto
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Direção João Vieira Pereira

Expresso 2024