Eles não são da rua


Francisco. Luísa. Carla. André. Cada um passou mais de dez anos em situação de sem-abrigo, alguns para cima de duas décadas. Foi a dependência da droga que os atirou para as ruas de Lisboa, para a prisão, para o tráfico e prostituição, para o vinho de pacote que entorpecia a realidade ao relento. Saíram de lá amparados pelo projeto ‘Housing First’, da Associação Crescer, que lhes passou para as mãos a chave de uma casa só deles. Sem lhes exigir que largassem o vício e sem contrapartidas.
Ter uma morada mudou-os logo nos primeiros dias. No conforto de cada novo lar, contaram ao Expresso as suas histórias, os seus passados duros que começam a ser contagiados por uma esperança ainda meio incrédula, que lhes permite, a medo, fazer planos para o futuro.
A palavra é deles
5 de dezembro de 2023
Comando também chora


Sou o Quinzinho, o Quim como a minha mãe me chamava, mas a maioria das pessoas trata-me por Francisco. A cadela é a Menina, a Nina, tem dez meses. Vou a caminho dos quatro anos que estou aqui, nesta casa. Eu estava na rua, mas sempre quis sair.
Vou contar só um pouco, foram 14 anos, é muita coisa, tantos maus momentos. Não vou aprofundar muito porque comovo-me com facilidade. O que eu senti não desejo a ninguém. Fui agredido, fizeram as necessidades em cima de mim. Até chegar aqui a esta casa foi um percurso grande. A ‘Crescer’ mostrou-se que era possível tirar-me da rua e eu concordei e aceitei. Somos uma família, somos todos irmãos. Arranjaram-me outro género de caminho. Por isso é que concordei com esta partilha.
Eu tinha 37 anos quando caí na rua. Perdi a minha família, o meu pai, a minha mãe, cheguei a perder um filho na Costa de Caparica, morreu afogado quando eu tinha 33 anos. Com esses maus momentos eu… não sei se a palavra está correta… protegi-me nas drogas. Vim a conhecer uma pessoa que me apresentou as drogas e desde aí que continuei a usar para me refugiar das perdas que tive.
Antes era serralheiro, na JB Cardoso, na fábrica dos parafusos. Comecei a trabalhar com 12 anos. Eu fui militar, fui sargento dos comandos, entrei como voluntário com 19 anos na Amadora. Naquela altura tinhas de ter o 9.º ano, continuei lá a estudar, cheguei a primeiro sargento, mas passados uns anos desisti. Foi o meu mal. Tinha possibilidades de ir para a GNR ou para a PSP, mas fui pela minha cabeça e pronto.
A primeira vez que dormi na rua foi onde fui batizado, em Alcântara, ainda não existia o Hospital da CUF. Havia um descampado, umas árvores, e eu dormi ali. Houve uma altura em que o Estado português não queria os sem-abrigo na rua, cheguei a ser acompanhado pela PSP dali para fora mas eu não queria ir. Ia para onde?
É fácil ir para as drogas, mas não é fácil sair. Tem de se aceitar as ajudas. Porque eu pela minha cabeça estava lá ainda
Comecei a dormir com papelões, depois cobertores, depois tendas. Cheguei a dormir no Lux, com autorização dos donos, uns dois ou três anos. Mas só podia pernoitar de segunda a quinta. Sexta e sábado abriam a discoteca. Eu sou do tempo do Casal Ventoso ainda com as barracas e estive presente na demolição. Morreu lá o meu tio. E conheci lá o futebolista que jogava no Benfica, o Vítor Batista. Também morreu. Conheci muita gente. É fácil ir para as drogas, mas não é fácil sair. Tem de se aceitar as ajudas. Porque eu pela minha cabeça estava lá ainda. Se não fosse a Associação Crescer ainda estava nas tendas.
Enquanto estava na rua continuei em contacto com a minha família. Mas ao princípio tinha de estar com as minhas netas, que eram pequeninas, acompanhado de um agente, porque eu estive uns quantos anos na prisão, derivado também às drogas, por contar com as pessoas dos bairros duros. Entra-se bem, é o objetivo deles terem o dinheiro, mas estão-se a marimbar para um gajo. Eram problemas e mais problemas. Estava a ir nesse caminho e vim a conhecer as prisões. Eu que nunca tinha entrado num posto da polícia.
Estive preso em Marrocos por tráfico. Quando saí voltei para a rua. Vim de lá de mãos vazias, não tinha nada. Foi num mês de agosto. Abriram-me a porta, saí de chinelinhos de praia e tive de me fazer à vida, arranjar dinheiro para os transportes até Lisboa.
Agora já tenho uma casa para receber a minha família, mas eles não aceitam o meu percurso, não querem. Posso ir à Costa de Caparica ver as minhas netas – uma já tem 19 anos - visitá-las com autorização da mãe, e venho para casa. De vez em quando vou lá, depois vou ao cemitério onde está a campa do meu filho, faço questão de lá ir também, e vou visitar as campas do meu pai e da minha mãe, o Florindo e a Fernanda. Quando estava na rua não ia visitar campa de ninguém e agora vou.
Não fazer as necessidades na rua, deixar de ir aos balneários tomar banho, esperar a minha vez, esquecer-me do sabonete e ser roubado. Foi um percurso muito longo
Já não olho para o chão, olho em frente ou para cima. Antigamente andava sempre de cabeça baixa, ou com medo. Agora é completamente diferente. Já não me lembrava do que era ter uma casa. Não fazer as necessidades na rua, deixar de ir aos balneários tomar banho, esperar a minha vez, esquecer-me do sabonete e ser roubado. Foi um percurso muito longo. Ia ao balneário, em Alcântara. Mesmo depois de ter a casa já lá fui tomar banho, cumprimentar a senhora. Faço questão de cumprimentar as pessoas que conheceram o Francisco de antigamente. Agora há um Francisco novo.
Também continuo a deslocar-me para Santos, onde vou buscar o almoço, tal como fazia quando estava na rua. Antes era à uma da tarde, agora é ao meio-dia. Já não vou às carrinhas, vou só a Santos porque constituí lá uma família. Veem que houve uma mudança no Francisco. Não me esqueço do primeiro dia em que me deram uma refeição feita por eles. Eu que ia aos caixotes do lixo buscar comida. Até podia estar envenenada, eu comia, não me preocupava. Tinha fome. Cheguei a estar na rua de mão beijada para as pessoas me darem uns troquitos. Conheci muita gente a quem estou grato.

Quando me sinto um pouco sozinho em casa vou ao encontro deles e das pessoas que se mantêm na rua do meu tempo. Muitos já partiram deste mundo, no caminhar das drogas, mas alguns ainda estão. Eu continuo cá. Faço questão de ir a Santa Apolónia dar um abraço. Mantêm-se nos tais pacotes de vinho onde eu também andei. Cheguei a beber vinho, muito vinho e às vezes não comia. Tinha de me deitar com a cabeça cheia, não conseguia viver tanto tempo na rua sem ter nada para preencher o meu cérebro.
Cheguei a dormir com os pacotes a fazer de almofada para não me roubarem. Ao cúmulo que uma pessoa chega. Chegaram a roubar-me sapatos e andei descalço. Um senhor que trabalha no Pingo Doce do Cais do Sodré viu-me e deu-me um daqueles sapatos brancos de trabalho. Não me esqueço desse dia em que ele chegou lá com carinho e disse: “Estão aqui uns sapatos para ti”.
[Emociona-se]
Eu não me posso esquecer do passado, os anos que estive na rua em sofrimento. A memória às vezes é fraca. O que é que eu vos posso dizer mais? Não venham conhecer as drogas, a idade não conta, tenham 30 ou 40 anos, basta a primeira vez experimentar e já lá estás. Eu fico satisfeito que tenha aberto em Alcântara uma casa de consumo assistido - eu já lá fui, não fui usar drogas, fui cumprimentar pessoas que conheço, também fizeram parte do meu processo, vão dando um feedbackzinho:
- Tás bacano, tás melhor.
Veem mudanças no Francisco. O Francisco da escuridão… eu não quero voltar a essa escuridão. Quero é ver sol e alegria, e não é preciso estar em festas a usar drogas ou álcool. Basta a pessoa querer. Desde que eu estou aqui já fui a passagens de ano, vou para os bailaricos, aqui na Mouraria há sempre festa, vou aqui a um bar ouvir um pouco de música enquanto bebo um sumo.
Da rua não trouxe nada, só as memórias. Cheguei aqui com as pessoas da Crescer e elas:
- Está aqui a chave da sua casinha.
- Da minha casa?
- Sim. Pode abrir a porta.
E eu abri. Uma casa. Espetáculo! Fiquei tão satisfeito. Mas depois quando eles saíram daqui fiquei ali na cama a chorar, de alegria. Tantos anos, tanto sofrimento. Nos primeiros dias dormi no chão, demorou a habituar-me a ter uma cama.

A casa é para mim o refúgio. Vivo com alegria, mas às vezes com tristeza. Ainda choro. Escondo-me às vezes um pouco, não sei se é vergonha, mas tenho de desabafar comigo próprio. É que não é fácil estar sozinho. A solidão é difícil de combater. Já tive maus momentos aqui antes de ter o animal. Deus queira que Deus me ajude mais. A minha bichinha é a minha companhia. Tem dez meses, vai crescer comigo. Agora vem aí o inverno, a casa é um bocado fria, mas não é de certeza pior que os papelões. Aqui basta por um edredom mais quente. Não tem nada a ver.
Antes desta cadela tive outra. Estava a passeá-la ali junto ao rio quando me deu um AVC. Só ouvi um zunido. Acordei em cima do capô de um carro. Foram uns estrangeiros que chamaram o INEM, e quando me levaram para o hospital de urgência, eu estava com a cadela amarrada ao braço. Fui operado ao coração no Hospital dos Capuchos, estive à beira da morte. Depois de ter alta dei a cadela às minhas netas.
Ainda hoje quando fui buscar o almoço cruzei-me com uma senhora mais ou menos da minha idade, nuns papelões no chão. Fiz questão de falar com ela e ficou a pensar que é possível sair
Eu quando estava na rua não tinha doença nenhuma. Surgiu a casa e, de um momento para o outro, começaram a surgir, como a do coração. Depois do AVC perdi a memória, não me afetou braços nem pernas, não fiquei com a boca de lado, mas afetou-me o cérebro. Tive alta do hospital e não sabia onde morava. Vá lá que tinha a chave ao peito – como tenho ainda hoje.
Agora o meu dia a dia é tomar a medicação de manhã – tomo muita coisa e vou tomar enquanto viver - e depois desloco-me até Santa Apolónia para a metadona, o substituto das drogas. Eu não quero voltar ao bairro novamente. Já lá fui outra vez, mas não quero lá voltar. Senão algum dia fico lá.
Ainda sou do tempo em que as carrinhas da metadona eram acompanhadas pela polícia, há vinte e tal anos. Eu sou o n.º 17.038, sou do princípio. A metadona é um escudo, é como a gente estar numa guerra e termos de nos proteger. Eu vou-me protegendo. Não quer dizer que algum dia não deixe, mas é quando eu vir que estou mais seguro. Ir lá é fácil e sair é difícil. Não experimentem pela primeira vez porque isto fica na nossa memória, a gente nunca esquece as drogas, vão-se mantendo sempre. O Francisco de um momento para o outro pode partir e vem outro Francisco experimentar e fica nesse caminho.
A minha realidade agora é conhecer outro estado de vida, um estado de vida sem estar na rua é completamente diferente. Posso ir a um cinema, ao teatro. Na rua não ia a lado nenhum. Com drogas e álcool só acontecem problemas e eu não quero mais para mim. Nem para ninguém. Ainda hoje quando fui buscar o almoço cruzei-me com uma senhora mais ou menos da minha idade, nuns papelões no chão. Olhei para ela como se fosse minha irmã. Fiz questão de falar com ela, fazer uma partilha, abrir-lhe um caminho, e ela ficou a pensar que é possível sair. Há um albergue aqui, há um balneário em tal parte, e pode ir buscar o almoço àquela rua… E já me cruzei com jovens, pessoas com vinte anos que estão nas drogas e tento dar-lhes um caminho. Ouvem sempre com atenção, não sei se derivado aos meus cabelos brancos. Deus queira que eles aceitem a minha ajuda de um caminho.
E estou feliz. É assim.
Um peluche e um romance


Chamo-me Ana Carla, tenho 51 anos e em alguns momentos da minha vida fui sem-abrigo. Conseguia organizar-me, depois desorganizava-me outra vez, parecia uma bola de neve. Ia para sítios, abrigos, onde tinha de conviver com gente que eu não tinha escolhido para viver ou havia pressão para viver de uma determinada maneira. Não é que estivesse errado o que pediam, o problema é que te exigiam coisas que não devia ser suposto: estão a ajudar, mas pedem contrapartidas.
Foram muitos anos de rua, se calhar mais anos de rua do que de vida propriamente organizada. Vivi em casas devolutas, era mal tratada a todos os níveis, pela polícia, por pessoas que entravam lá dentro e nos punham em perigo. Hoje em dia não é assim, há ajudas. Mas ainda assim não é fácil sair da rua, porque se cria ali um mundo, uma forma de viver, uma pessoa habitua-se àquilo… não é por ser mais fácil, porque não é nada fácil viver na rua, mas fica-se ali naquele mundo e não se tem força para sair sozinho.
Ouvi falar do Housing First há cerca de três anos. E porque não dar o meu nome? Pior não ia ficar. Há tanto tempo que andava a pedir uma casa à Câmara, um cantinho só para mim, que é muito diferente de ter um quarto ou estar num albergue. É totalmente diferente.
Em março [de 2023] deu-se a possibilidade de eu ir para o quartel, que é um centro de acolhimento ali na Estefânia. Fui. E quando soube que ia fechar, os astros alinharam-se todos a meu favor e apareceu a Crescer com a casa. Acho que até ao último momento não acreditava. Dizia para mim:
- Não vou ter uma casa, não é verdade…
Desde que me envolvi com drogas que foi um vaivém de sítios e recaídas. Desta vez eu queria parar. Eu. Porque até hoje foi uma coisa que não era eu que queria. Ou era para manter o emprego, ou era por causa dos pais, ou era por causa dos filhos, ou era por causa do marido. Mas nunca por causa de mim, para eu parar com a droga. Desta vez foi por mim.
Ainda estou a viver a minha lua de mel com a casa. Mas foi difícil de acreditar. Estive quase uma semana em que vinha cá e ia dormir fora
O último ano que estive na rua já não consumia, bebia, mas o álcool não é muito a minha coisa, felizmente não gosto. Já basta o que basta. Eu não queria consumir, já estava farta. Mas pensava:
- Fogo, eu estando na rua, mais tarde ou mais cedo vou acabar por me refugiar outra vez.
É muito difícil, muito complicado. Em boa hora veio a Crescer e vim aqui parar. Tenho a minha casa desde julho. É excelente, ótima. Estou tão contente. Ainda estou a viver a minha lua de mel com a casa. Mas foi difícil de acreditar. Estive quase uma semana em que eu não dormia aqui. Vinha cá e ia dormir fora. Não sei bem porquê, acho que foi uma defesa. Se acordasse e não fosse verdade era mais fácil. Aqui tinha medo que viessem cá dizer-me para sair. Mas eu vinha cá no outro dia, todos os dias, e isto estava cá, e estava cá só eu. Fui ficando até ao dia em que não me apeteceu sair daqui para ir para lado nenhum. Nunca mais dormi noutro lado.
Eu tomo metadona, já estou no programa há uns anos, e é a única coisa que vou fazer à rua, fora as compras. De resto, estou em casa. É aqui que me sinto bem, já não sabia há muito tempo o que era isto. A última vez que tive um quarto foi há dez anos. Desde aí foi sempre rua-abrigos-rua-abrigos-rua-abrigos. E os abrigos eram cada vez mais difíceis de suportar, com a idade e com tudo o que já me aconteceu dar-me com pessoas de que eu não gosto, que me fazem sentir mal.
Cresci em Benfica, numa família estruturada. O meu pai faleceu quando eu tinha cinco anos, mas a minha mãe voltou a casar e o meu padrasto era uma pessoa espetacular. Tinha um irmão e nasceu mais uma irmã. Sempre me apoiaram, só que de cada vez que eu recaía, não havia condições para estar em casa. Se ficasse ia começar a roubar, eu é que estragava aquilo tudo. E também para não me chatearem a cabeça, acabava por ficar na rua.
Comecei na droga aos 12, mas não foi logo a sério. Com 15 já a minha mãe me mandou para o Porto porque eu cá não estava bem. Ainda foi pior a emenda que o soneto. Consegui fazer o 12.º ano, mas como consumia não entrei na faculdade e voltei outra vez para Lisboa. Eram mais as vezes que eu estava de recaída do que estava bem, e por isso eram mais as vezes que estava na rua do que estava em casa.
Lá fazia uma cura de vez em quando, porque a minha mãe ia-me buscar à rua. Muitas vezes, quando estava a entrar, dava por mim a pensar quando é que ia sair para consumir outra vez. Acabava por fugir a meio. Enquanto não fosse pela minha cabeça eu jamais ia conseguir largar este vício. Tenho 38 anos de droga. Foram precisos 38 anos disto para perceber que não era de todo por aí. Não é que eu tenha dito não de vez, mas por agora não quero. E muito menos repetir a vida que eu levava.

Neste momento vou fazendo a minha vidinha, vou tomando a minha metadona, tento não projetar muito para a frente porque senão não vivo nem o agora, nem o que há de vir. Estou bem no dia a dia, estou porreirinha, começa-me a interessar fazer outras coisas, conhecer outras pessoas, outros tipos de vida. Vou fazendo tudo devagar, saber onde é que piso com calma, nem que seja muito devagar não interessa. Mas sem perder tempo. Perdi muito, não quero perder mais, nem com pessoas de que não gosto, nem com situações que me desagradam.
E não quero meter-me à prova, que eu não estou aqui para ver se consigo ou não consigo. Porque quando uma pessoa tropeça é muito complicado. Eu já tive tudo, uma casa, emprego. Não entrei para a faculdade, mas consegui tirar um curso de programação informática. Cheguei a ter emprego nos CTT, era programadora, efetiva na empresa, mas optei pelo vício e não consegui manter essa vida. Não há dinheiro que resista e a ressaca não aparecia só quando eu queria, não podia guardá-la para o fim do dia. Para estar bem, para me mexer, para falar eu tinha de consumir, e nem sempre havia dinheiro e tinha de o arranjar de qualquer maneira.
Quando perdi o emprego perdi todo o norte, fui dar à rua. E, como sempre, a maneira como lidei com a situação foi aproximar-me do bairro. Chegou a um ponto em que a minha família fartou-se. Eu também já era maior, tinha a minha vida, não podiam estar eternamente comigo ao colo.
A rua é muito madrasta, é quase tudo mau, mas também se conhecem pessoas a quem hoje ainda falo. Não é por estar aqui em casa e eles não terem casa que vou deixar de falar
Durante este tempo tive três filhos, todos do mesmo homem, mas o meu companheiro também vivia na rua comigo. Já estávamos juntos há três anos quando eu engravidei a primeira vez. Decidimos ficar com o bebé, metemo-nos na metadona para deixar de consumir, arranjámos casa, ele arranjou emprego, e ficámos com o nosso filho. Pouco depois nasceu a irmã dele. Mas entretanto começámos a destabilizar outra vez, caímos na rua… Graças a Deus a minha mãe ficou com os dois. Jamais pensei em trazê-los comigo, era impensável. Voltei a engravidar da minha terceira e última filha já vai fazer 12 anos.
Hoje em dia os meus filhos estão todos com a minha irmã. Ela adotou-os mesmo. Tudo o que eu ganhei com a droga foi perdê-los, com muita pena minha. Não faço ideia de onde estão. A minha família desligou-se mesmo, ao ponto de não dizerem para onde foram morar. A minha mãe deve estar na mesma casa, mas eu já lá fui duas vezes e ninguém me atendeu.
Gostava pelo menos que eles soubessem desta minha nova vida. Gostava muito de retomar as ligações. Mas por enquanto não vou voltar a tentar. Não sou capaz de me impor enquanto não estiverem preparados. Eu só lhes baixei a cabeça. Vou esperar. Vou ganhar forças noutras coisas e fazer agora por mim para ganhar cabedal, fazer uma ginasticazinha a todos os níveis, ao ego, a nível psicológico, emocional, até física. Para a frente é que é o caminho.
Quando a Crescer me encontrou a primeira vez, eu estava numa tenda em Santa Apolónia. Costumava dizer que tinha muitas casas. Como consumia andava o dia todo a andar de bairro em bairro, noites e noites acordada. Na rua, o nosso problema não é quando estamos acordados, é quando estamos a dormir. Eu não sei quem é que vem, quem é que me faz mal. E tive alguns sustos. Desde acordar com um homem a bater com um martelo por cima da minha cabeça e a dizer que me ia esmagar; ou acordar com os meus amigos do lado a correrem com um gajo que se tinha deitado no colchão ao meu lado. Muitas vezes evita-se dormir até se cair de cansaço, completamente exaustos. Eu chegava a meter-me em autocarros porque estava muito frio e fazia a viagem de um lado para o outro para dormir, quentinha e segura, com a minha mala e as minhas coisas e não estar preocupada.
Ainda vou todos os dias a Santa Apolónia porque é lá que eu tomo a metadona. E agora faz-me mais impressão ver como as pessoas estão em baixo, não tinha tanto essa noção porque estava no mesmo barco. E vejo que o barco delas está um bocado a afundar. A rua é muito madrasta, é quase tudo mau, mas também se conhecem pessoas a quem ainda hoje falo. Não é por estar aqui em casa e eles não terem casa que vou deixar de falar com eles ou deixar de ser vista com eles.

Da rua trouxe um peluche que anda comigo há já muito, um ursinho do Dia dos Namorados que encontrei ainda com etiqueta dentro de um saco ao pé de uma loja dos chineses. Trouxe-o para me fazer companhia. Da última vez que caí na rua estava sozinha. A tenda era só minha. O meu companheiro tinha deixado de consumir, já estava a trabalhar. Foi ele que me ofereceu o livro que também sobreviveu aos anos de rua. Eu adoro ler. É do José Rodrigues dos Santos. Escrevi lá o meu nome quarenta mil vezes, era quase uma agenda, apanhou chuva, humidade, comida, vinho, fazia de mesa, fazia de muita coisa. E veio comigo.
[“Recebi do meu mais que tudo”, lê-se na primeira página d’A Amante do Governador. Na contracapa está a morada da ‘Porta Aberta’, da Crescer: “devolver se encontrar à Dra. Inês”.]
Eu sempre quis um cantinho para mim, onde pudesse entrar, que fosse uma barreirazinha, este lado era meu, eu escolho quem entra, eu escolho se estou sozinha, como é que estou, se me apetece estar espojada no chão, passar o dia todo na cama, não interessa. A partir do momento em que a Crescer me deu a chave disseram-me que esta é a minha casa. E foi mais isso que foi difícil eu entender, que é mesmo minha, sem condições, sem pressões. Não me disseram que não podia consumir, quem é que posso receber em minha casa.
- É a tua casa. Tu decides.
Estes últimos meses são o tempo em que eu estou mais certa do que estou a fazer, durante mais tempo, com mais coerência. Não sei como vai ser o futuro porque a minha saúde degradou-se um bocadinho enquanto estive na rua mas estou a recuperar. Vamos ver se recupero o suficiente para andar por cá muito tempo, porque agora é que isto está bom.
Do Ritz para a rua


Eu não me apercebia que era uma pessoa sem-abrigo. Sendo sem-abrigo, eu pensava que não era. Fazendo as contas, fui uns 15 ou 16 anos. Mas como não dormia na rua… Fazia prostituição, fui toxicodependente durante 10 anos, quando tinha dinheiro pagava a minha pensão ou então dormia em casa de amigos, tudo assim. Quando me apanhei mesmo na rua foi quando fui para o Martim Moniz ao relento, à luz do luar. Aí é que tomei consciência do que era.
Sou mestiça, filha de pai português e mãe timorense. Não nasci cá. Nasci em Timor e em 1975, com sete anos, vim para Portugal viver com a minha avó paterna. Cresci no Cacém até aos 22 anos, estudei lá, fiz o preparatório e parte do secundário. Entretanto, com 16 deu-me aquelas venetas das miúdas adolescentes que pensam que estão apaixonadas e quis juntar-me com o meu namorado. A minha avó, que era extremamente católica, disse que juntar era uma vergonha, que tinha de casar-me. E casei, de branquinho, véu e grinalda, na Igreja, como mandam todas as regras. Fiquei logo grávida, tive o meu primeiro filho, o Carlos Miguel, que tem agora 36 anos, mas o enlace só durou seis anos.
Com 22 anos, separei-me. Aquilo foi uma história de infantis, não podia dar certo. Vim para Lisboa, arrisquei a minha vida sozinha com o meu filho, aluguei um quarto na Rua do Ouro e comecei a trabalhar no Hotel Ritz como camareira. Primeiro fui para as limpezas, mas a minha ambição era ser camareira, porque eu falava inglês, francês, e achava que podia fazer mais do que andar a limpar porcaria. Estive lá dois anos, mas quando o hotel deixou de ser Intercontinental e passou a ser Four Seasons o novo diretor-executivo tirou todos os efetivos do quadro, despediu os mais antigos com indemnizações e eu que estava quase a entrar para os quadros fui despedida.
Aí começou a minha decadência. Não conseguia pagar o quarto onde estava com o meu filho e não tinha dinheiro para pagar a quem ficasse com ele. Porque o Ritz tinha uma creche própria para os filhos dos funcionários, com horário adaptado aos turnos. Então comecei a trabalhar na noite, primeiro numa boîte, que era o Sol Nascente, ali nas Portas do Sol. E foi uma bola de neve. Da noite foi para alternes, depois prostituição de rua, comecei a conhecer as drogas. Eu nunca consumi muita heroína, era mais cocaína. Era cocainómana. E foram dez, doze anos nisto. Até que bati no fundo do poço. Um dia sozinha decidi entrar no programa da metadona e depois fui para as Taipas [centro de reabilitação de dependências] porque descobri que estava grávida do meu quarto filho.
Quando nasceu, a CPCJ colocou-o na Ajuda de Berço. E a condição que me puseram para poder ficar com ele era largar a metadona no espaço de seis meses, arranjar trabalho e uma casa. O maior erro que eu fiz foi aceitar esse acordo. Porque se eles me tivessem levado a tribunal, se calhar eu agora tinha o meu filho comigo. Não tive tempo suficiente para cumprir esse projeto todo.
Tenho quatro filhos de quatro homens diferentes. Antes tinha vergonha de dizer isso mas já não tenho. Os homens podem ter 15 filhos um de cada mulher, mas para as mulheres é horrível…
Fui para a comunidade, deram-me regras, disciplina, horários, trabalhava das 7h às 23h30, cada um tinha as suas responsabilidades. E eu digo-lhe: não senti absolutamente nada o desmame da metadona. Fui eu que disse para terminar no espaço de seis meses. E desde aí nunca mais peguei na heroína nem na metadona. Há 20 anos que não toco.
Tentava ligar para a Ajuda de Berço e eles nunca tinham oportunidade de me informar nada sobre o menino, já estava com dois anos e tal, e um dia passei-me dos carretos porque ninguém me ajudava, peguei numa mochila e larguei a comunidade. Cheguei aqui, estive três dias a ganhar coragem para ir à Ajuda de Berço e quando cheguei lá o menino já não estava lá, tinha ido para uma família de acolhimento e foi adotado. Fui ao Tribunal de Menores e também não me disseram onde estava. A partir daí tive de aceitar. Se calhar já passou por mim ‘n’ vezes, já me olhou nos olhos ‘n’ vezes e não sei quem é. Tem quase vinte anos.
Tenho quatro filhos de quatro homens diferentes. Antes tinha imensa vergonha de dizer isso, mas já não tenho. Os homens podem ter 15 filhos, um de cada mulher, mas para as mulheres é uma coisa horrível… Tenho o Carlos Miguel, que tem 36 anos; o Vítor Hugo, com 29; tenho a minha filha, Soraia, com 24 anos. Ela está em França e já tenho dois netinhos dela, comunicamos pelo Messenger e estou a fazer planos para ir lá visitá-la pelo Natal ou no aniversário, em janeiro. E tenho o Robertinho, que eu perdi para a adoção.
O mais velho, aos onze anos, meti-o na Casa Pia, porque estava a tornar-se um delinquente. O pai não queria saber dele, eu estava a trabalhar na noite, não conseguia controlá-lo, já andava a roubar com os amigos, falei com a assistente social e aconselhou-me a Casa Pia de Xabregas. Ficou super-revoltado comigo, deixou de querer as minhas visitas, nunca mais me quis falar e aos 18 anos saiu. Foi trabalhar para o Galeto, eu quis comprar-lhe a farda, mas não deixou. Desapareceu da minha vida.
Uma vez encontrei-o em Chelas, que ele é conhecido pelo Xanana de Chelas, esteve preso por vender haxixe. “Então, não falas à tua mãe?”. E ele disse-me: “A minha mãe morreu”. Nos meus olhos. A vida dá muitas voltas, talvez venha a perdoar-me. A minha filha diz que está farta de procurar pelos irmãos. Ela sabe tudo o que aconteceu, foi para o Alentejo ser educada pela família do pai porque eu era toxicodependente e mesmo assim nunca deixou de me amar. É o sol da minha vida.
Ela e o Pedro, o meu companheiro. Conheci-o na rua. Um dia entrámos num prédio, na Rua Washington [em Santa Apolónia], que pensávamos devoluto. Afinal estava numa guerra de partilhas, mas tinha sido todo ocupado. Um dia chegaram lá os dois donos, irmãos, correram com toda a gente, mas quando chegaram ao pé de nós pediram-nos para ficar. Deram-nos uma corrente e uma função: não deixar o prédio ser invadido por mais ninguém. Ficámos assim quatro anos. O senhor Eduardo tornou-se um grande amigo nosso. Ainda hoje telefona-nos, vem cá visitar-nos, todo contente por nós termos melhorado de vida.

Estava eu em Santa Apolónia e o Júnior, da Crescer, veio falar comigo. Estavam a começar o ‘É um Restaurante’ – [projeto que forma e emprega sem-abrigo em hotelaria] -, e disse-me para ir à entrevista para ingressar no curso. Eu, que não estava a fazer nada, fui. E a minha vida com a Crescer nunca mais parou desde aí. Tem sido a minha família.
Já estava no projeto e ainda era ocupa. Fiz o estágio na Jerónimo Martins, mas tive de parar de trabalhar porque fui diagnosticada com cancro. Quando a Crescer soube nunca mais me largou. Meteram-me logo numa residencial mesmo em frente ao IPO onde fazia a quimioterapia e a radioterapia. Estava sozinha, o meu companheiro tinha sido preso. Mas numa semana e meia tinha a minha casa.
A minha casa.
É tão bonita. Quando vim aqui a primeira vez senti uma coisa que já não sentia há muito tempo. Senti que era o meu abrigo, o meu refúgio. Aqui o tempo é meu, posso andar até às tantas na rua, mas está aqui a chave, meto-a à porta e estou no meu canto, ninguém me chateia. É uma sensação maravilhosa.
A gente quando está na rua não sabe o que há de fazer, só faz é porcaria, destrói-se porque não temos nada a perder. É muito triste, muito triste mesmo. E a casa faz uma grande diferença. Com a casa começas a sentir-te normal, igual às outras pessoas, e começas a pensar que já podes fazer aquilo que não fazias porque não tinhas uma casa.
Pode ser algo tão simples como fazer um bife com batatas fritas. Eu gosto de cozinhar. Acordar de manhã e poder tomar o meu duche sem ter de ir ao balneário, sem andar com a mochila às costas todos os dias, estar tardes e tardes inteiras sem saber o que fazer nem para onde ir. Para a parte psicológica de uma pessoa é extremamente importante. Acho que a habitação é o bem mais essencial que existe para um ser humano.
No meu tempo violência doméstica não era crime público, ninguém metia a colher. Fui vítima, tinha queixas em todas as esquadras de Lisboa e nunca aconteceu nada
Desde a casa da minha avó que eu não tinha uma casa que sentisse minha. Tive algumas casas, alugadas pelo pai da minha filha, mas eu como estava agarrada à droga, o dinheiro que ele me dava para a renda desaparecia. Eu estive três vezes para tirar a carta de condução e se não tenho hoje carta é porque gastei o dinheiro todo na droga. Era uma coisa terrível. E depois uma mulher quando é nova, mais ou menos vistosa, naquela altura fazia dinheiro com uma facilidade incrível. Punha os pés na rua e caia-me dinheiro por todo o lado. Eram traficantes, eram clientes da prostituição, era tudo. Ainda bem que o Casal Ventoso acabou, foi um alívio. Mas agora está lá outra vez, só tem outro nome.
Mas é diferente. A droga que anda aí hoje em dia não me diz nada. É só gastar dinheiro, mais vale rasgá-lo ou dar a alguém que precise. Para quê consumir um pó branco em que só 0,00001% é que é cocaína? O resto são medicamentos. Hoje dá-se um fumo de cocaína e fica-se com sono, dorme-se. As pessoas que estão agarradas no Loureiro não é à cocaína, é aos cortes. Não sabemos o que há lá.
Eu deixei a droga e agora estou na paz do Senhor, a lutar pela Somos, um projeto apoiado pela Crescer. É um grupo de mulheres como eu, somos sete, que viveram na rua e passaram por todas as situações que eu passei, desde violência, insegurança, falta de higiene, todas as consequências más advindas de ser mulher sem-abrigo. Nós queremos ajudar quem se encontra atualmente nesta situação. E podemos dizer-lhes:
- Eu sei, porque eu já estive no teu lugar, eu compreendo.
Temos um ano de existência, registadas, com estatutos, membros. Eu sou a presidente da Mesa da Assembleia. Já estivemos na Hungria, na Croácia, na Eslovénia e em Barcelona. A Espanha fui eu. Lá conheci um projeto que queremos trazer para cá. Até já temos uma doação de espaço, só falta o financiamento para as obras e materiais. É uma espécie de drop-in com cozinha, beliches para elas descansarem, casa de banho, roupa e um espaço para consumo, aberto, para que não consumam nas ruas o crack ou a heroína. Se precisarem de uma refeição quente, de dormir um bocadinho, de trocar de roupa, tomar banho, vão ali. Ou de ajuda para tratar do cartão de cidadão, para ir ao hospital, para apresentar queixa de violência doméstica – até já tivemos uma formação com a APAV para sabermos como lidar com essas situações. Queremos encaminhá-las, dar-lhes segurança, acolhê-las, se estiverem numa situação de perigo têm ali um sítio onde podem pedir ajuda.

No meu tempo violência doméstica não era crime público, ninguém metia a colher. Eu fui vítima, tinha queixas em todas as esquadras de Lisboa e nunca aconteceu nada. Uma vez estava a ser agredida e um taxista transportou-nos na mesma, comigo a ser agredida, ele a puxar-me pelos cabelos, eu toda rasgada e ele transportou-nos sem dizer nada. É nisto que eu quero ajudar estas mulheres, acabar com os estigmas todos.
Noto que há mais mulheres na rua. E jovens, muito jovens. Algumas não querem seguir as regras dos pais, outras não querem estudar, outras conhecem namorados que lhes põem ilusões na cabeça para virem para a cidade… São miúdas da província, da aldeia, do norte, vem tudo aqui parar e vêm desenganadas, acham que é uma coisa e sai-lhes outra. Umas já vêm a consumir, outras começam a consumir aqui. E há muitas mesmo.
A minha vida mudou radicalmente desde que tive a doença e recebi a casa. Sinto-me segura, sei que estou protegida. O meu companheiro já foi libertado e vivemos juntos outra vez. Ele está a trabalhar e eu, como ainda não voltei por causa do cancro, e a ‘Somos’ ainda não está a ocupar todo o meu tempo, vou regressar aos estudos. Já estou farta de estar parada em casa. Vou tirar um curso de Gestão com equivalência ao 12.º ano. Só falta entregar um papelinho para começar.
Da rua só trouxe as minhas duas gatas. Quando entrei aqui era para começar uma vida nova, do zero, não esquecer, mas deixar lá para trás tudo o que de mau aconteceu e enveredar agora pelo caminho certo. Desde que não vá contra mim própria já não é mau.
André, o trabalhador


Fui para a rua porque quis, são opções da vida. Tinha em casa uma pessoa que, para mim, está acima de tudo, que é o meu irmão. Ele era muito novo e decidi que aquela vida que eu levava, o estado em que eu estava, não era um exemplo.
Cresci no Algarve, em Bensafrim, terra boa, gente ruim. O meu pai mal soube que a minha mãe estava grávida ‘ala que é Cardoso’. Viemos a descobrir que engravidou duas em Lagos. A minha mãe tinha de trabalhar bastante e fui criado pelos meus avós. Depois ela conheceu o meu padrasto, casaram, mas eu sempre me dei muito mal com ele.
A minha avó era tudo para mim. Ia para a lavoura em cima do burrito atrás dela, tive uma infância superfeliz a cavar batatas. Aprendi muito, sou do mato e agora isso ajuda-me no trabalho de jardineiro. Sempre me incutiu boas coisas, só que a cabeça perdeu-se. Enfiei-me na droga. De um cordeirinho tornei-me um diabo, de amado tornei-me odiado.
Tinha 10 anos quando fumei o primeiro cigarro, aos onze experimentei a droga. Era muito rebelde, não queria parar em casa, tinha um grupo de amigos mais velhos que achava que eram os meus melhores amigos, mas foram a minha desgraça. Via-os todos malucos e também quis experimentar.
Sempre fui muito mimado, tinha acesso a dinheiro. A minha mãe dava-me cinco contos, chorava à minha avó, mais cinco; e como não gostava do meu padrasto roubava-lhe dinheiro. Não precisava, mas era para me vingar, é uma vergonha mas eu fazia. Os meus amigos não tinham dinheiro e aqui o puto é que comprava o haxixe e pagava o snooker. Conclusão: passadas umas semanas já estava a ressacar da heroína. Estava agarrado. Depois perdi-me, não me lembro, estive 25 anos nem sei onde, só queria morrer, consumia para morrer, não para viver, não comia, tornei-me um peso para a sociedade.
Jogava futebol, mas consumia antes de jogar. Tanto que vim para os treinos de captação do Benfica e antes fiz testes e o Artur Jorge disse:
- Podes voltar para o Algarve. Isto é só droga no sangue!
Caiu-me o mundo. A minha vida era o futebol. Daí foi sempre a descer. Do Farense passei para o Portimonense, do Portimonense passei para o Esperança de Lagos, do Esperança para o Bensafrim, do Bensafrim passei para a rua. Se não tinha o futebol, não queria nada. Roubava os colegas do balneário, coisas que envergonham. Tinha bons amigos e perdi-os.
A minha mãe viu-se obrigada a pedir dinheiro emprestado grávida de oito meses do meu irmão, perdeu os trabalhos todos porque o filho estava sempre lá à porta a pedir dinheiro para a droga
Antes toda a gente adorava o André, mas depois quando o André precisou daquele apoio a família partiu-se aos bocadinhos, deixou tudo de se falar e a culpa era do André. Virou-se tudo contra a minha mãe porque o filho era drogado. Quiseram pô-la na rua. E eu decidi cá para mim:
- Então o André vai desaparecer!
Fui-me embora. Vendi os telemóveis e desapareci. Dessa vez tinha 18 anos. Mas a primeira vez que fugi tinha 16, tinham-me posto numa associação, estive lá três dias e fugi para Lisboa. Aos 17 anos, a mesma coisa, obrigavam-me a pedir na rua, fugi e vim para Lisboa.
Quando fiquei maior percebi que estava a ser um peso para a minha mãe, que ela estava a sofrer muito com aquilo e que eu estava a ficar muito agressivo dentro de casa, partia tudo quando não me davam dinheiro. Hoje tenho muita vergonha disso, bué mesmo. Não consigo perdoar-me. A minha mãe diz:
- Esquece isso.
Mas não consigo. A minha mãe viu-se obrigada a pedir dinheiro emprestado grávida de oito meses do meu irmão, a minha mãe perdeu os trabalhos todos porque o filho estava sempre lá à porta a pedir dinheiro para a droga, ela deixou de sair de casa porque o filho era o que era, era drogado, era ladrão. Era a GNR todos os dias à porta de casa, era uma vergonha para a família.
Eu não conseguia trabalhar, mas conseguia arrumar carros. Comecei a arrumar ainda no Algarve, percebi que dava muito dinheiro, já não precisava da família e fiquei na rua, a dormir com ratazanas e tudo, mas estava bem era lá. Eu não era má pessoa, era humilde, tinha ar de cordeirinho e tinha muita facilidade em fazer dinheiro para a droga. Chegava a fazer quatro a cinco quilómetros a pé por dia e fazia 400 a 500 euros, a bater às portas. No verão tinha sempre muito dinheiro, vendia haxixe aos estrangeiros. Comprava a 5 euros e vendia a 80. Mas quando ia para comer já não tinha um euro.
Eu era um bicho do mato, só conseguia funcionar na sociedade de cabeça cheia, fosse álcool ou heroína. Eu sempre usei a heroína para me inserir, tinha dificuldades, na escola ou fosse onde fosse. Quando consumia sentia-me o dono do mundo, ninguém me tocava, era o maior, os traficantes estavam todos comigo. Depois percebi que não era aquele estilo de vida que eu queria, mas os meus supostos amigos não me deixaram sair, queriam que eu vendesse droga para eles, enfiaram-se em casa da minha mãe, partiram a casa toda. Foi o meu próprio padrasto que chamou lá a GNR.
A minha sorte foi a prisão. Estive preso quatro vezes. Dois anos e seis meses de uma vez, 29 dias de outra, seis doutra… As penas mais pequenas por multas de carro e depois fui apanhado a traficar droga. Aí abri os olhos. Foi na prisão que eu mudei, os guardas prisionais abriram-me os olhos, tirei os meus cursos, aprendi a ser homem, a ser responsável e aprendi que somos nós que fazemos o nosso futuro, não são as outras pessoas.
Quando entrei pegava fogo a tudo, tentei matar-me várias vezes, chorava pela minha mãe, atirava cadeiras aos guardas, levava grandes enxertos de porrada. Até que um guarda que conhecia a minha família me disse um dia:
- Se continuas assim matamos-te à porrada, se mudares vai ser um homem.
Aquilo assustou-me. No dia seguinte pedi para trabalhar. A minha vida mudou totalmente. Comecei a gostar de trabalhar, sentia-me bem a fazer o bem. Aquilo fez-me crescer. Tirei o curso de pedreiro e um curso de inglês e quando saí queria reerguer a minha vida. Precisei de ir mesmo ao fundo. Quando entrei o meu objetivo era ser o maior traficante de Portugal e quando saí era ter um trabalho, ter uma casinha, arranjar uma boa mulher e ter um filho.

Não foi fácil. Cá fora comecei a trabalhar, mas nem sempre o dinheiro vinha, às vezes ainda ia vender droga, fui apanhado outra vez, levei pena suspensa. Às tantas já estava a consumir todos os dias, com o dinheiro que recebi por ter trabalhado na cadeia. Saí de lá com mil e tal euros. Não queria, não queria, mas a primeira coisa que fiz quando saí foi comprar droga. Era só naquele dia, e depois no dia seguinte. E a metadona lá ficava a 60 quilómetros. Quando hoje vejo a placa de Messines até fico com suores por todo o lado, volta tudo, começo a querer ligar a certas pessoas. Agora se vou ao Algarve não saio de Bensafrim, porque sei que ainda não consigo controlar, é automático.
Foi então que decidi mesmo largar o Algarve. Não conseguia fazer vida ali. Fazia uma cura, juntava-me com uma mulher e sempre que estava bem, bastava uma discussão, uma arrelia, uma tristeza, um vazio, era a droga que ia procurar. Dava sempre cambalhotas. E a minha mãe sempre a sofrer. Um dia roubei 50 euros a um toxicodependente que queria comprar-me droga - vendi-a mas fumei tudo antes de vir para cima – e às 4 da manhã estava na estação para ir para Lisboa. Achei que aqui era mais fácil, o acesso à metadona era melhor, havia mais associações de apoio e as carrinhas no Oriente com refeições quentes, mas o que encontrei foram pessoas muito más.
Lisboa para mim era um mundo. Fiquei na rua outra vez, muito magro, um médico disse-me que mais um inverno e morria. Fiquei tão revoltado. Tornava-me um diabo com as associações que me queriam ajudar. Era apedrejar a Vida e Paz, era apedrejar a Crescer.
Um dia estava na Avenida de Ceuta e conheci um cigano que me deu 20 euros, porque eu estava a viver na rua, com uns 42 quilos. No dia seguinte, o mesmo, muito bem-vestido, com um monte de notas, e deu-me mais 20 euros para ir comer. Estava a dormir no Saldanha, debaixo do McDonnalds, apareceu outra vez, com uma panela cheia de comida, umas mantas e 50 euros. Achei estranho mas aceitei. No dia seguinte convidou-me para trabalhar com ele, para distribuir panfletos de compra e venda de carros, 150 euros para distribuir 500 panfletos, mais pensão paga. Eu aceitei. Passados dois dias, já tinha ganho a minha confiança, e disse-me para assinar um papel:
- É para atestar que trabalhas para mim, que está tudo legal.
Mas a folha estava em branco, só tinha espaço para a assinatura e o número do meu BI. Disse que depois desenrascava o resto e eu assinei. Passados três anos, agora que já estou a trabalhar, tenho uma dívida de 36 mil euros, um BMW em meu nome, dívidas na Cofidis, dívidas de uma mota que foi buscar. Recebo o ordenado e vai tudo para pagar bens que eu não tenho. Eu nunca apresentei queixa porque ele dizia que se fizesse matava o meu irmão e a minha mãe. Quando eu o acompanhava, ele comprava uma arma aqui, outra ali. Era gente da pesada. Chegou a pôr-me à força de volta no Algarve, quando as coisas começaram a dar para o torto com a polícia. Estive lá dois meses e regressei a Lisboa, voltei para a rua, a fugir de medo dele, mudei de sítio, tentou atropelar-me com o carro várias vezes.
Sempre foi o meu sonho ter um filho, e o meu irmão é um bocadinho isso. A minha mãe teve-o com 44 anos. Tenho bué orgulho do meu irmão. Está com 18 anos
Nos dois últimos anos desapareceu. E eu comecei a atinar, direitinho na vida. Fui para um centro de acolhimento, a senhora começou a levar lá metadona na altura da Covid-19, para ocupar o tempo pedi para arranjar um terreno lá ao lado que era só mato, desmatei aquilo por 30 euros por dia, e fiz uma horta. Um engenheiro-agrónomo arranjou os vegetais para plantar. O André cavou, cavou, e às tantas já lá estava a televisão, o presidente de Campo de Ourique, pessoas a querer comprar cabazes.
Isto abriu portas, a Crescer viu e em pouco tempo tinha uma casa. Parecia surreal.
- Eu, uma casa? 'Tá a brincar comigo…
Lá fui, mostraram-me a casa, eu que nunca tive uma casa, que não sei cozinhar, eu não sei fazer nada, sem a minha mãe era zero. A Cristiana, coordenadora da Crescer, sempre me orientou, depois estive com o apoio da Diana e da Catarina. Ensinaram-me tanto. Passados seis meses eu já fazia tudo e mais alguma coisa em Lisboa, sabia andar de metro sem saltar os torniquetes, comportava-me como uma pessoa normal. As coisas foram correndo bem.
Quando me deram a casa, a presidente da junta das Avenidas Novas ligou-me a dar-me emprego. Fui logo assinar o contrato como operacional de higiene urbana. Estive lá dois anos. Estava quase a ficar efetivo, ela perde as eleições e o novo presidente da junta despediu 50 e tal pessoas e a mim também.
Eu trabalhava à noite, mas a casa era num sítio muito barulhento, não conseguia dormir de dia, e para conseguir estar acordado no turno tive outra recaída. Recebia 830 euros a recibos verdes a dia 20 e a 22 já não tinha um euro. Pedi à Crescer para me tirar dali, que eu não estava a conseguir evitar a Mouraria. Qualquer coisa menos esta zona, e longe de Alcântara, Serafina e Lumiar.
Disseram-me que havia uma casa em Benfica mas que precisava de obras, nem tinha chão, só tinha frigorífico, mas eu quis ir logo. É esta mesma. Já não saí daqui. Foi quando atinei. Comecei a juntar dinheiro e sempre que consigo mando algum para baixo. Já tinha 1300 euros mas estas penhoras começaram a afunilar-me a vida e eu vi-me obrigado a tirar mais do que ponho. Só estou com 500. Agora estou a tentar com advogados e alguns amigos resolver a situação. Já fui ao Campus de Justiça com as provas todas que conseguimos recolher, mas o procurador rasgou tudo.
O meu irmão ao fim de semana vem para aqui. Eu com a ressaca ficava muito violento com as pessoas, mas com ele nunca fiquei. Sempre foi o meu sonho ter um filho, e o meu irmão é um bocadinho isso. A minha mãe teve-o com 44 anos, numa gravidez de risco. Tenho bué orgulho do meu irmão. Está com 18 anos. Agora voltei a falar com ele outra vez, a dar-lhe conselhos:
- Mano não faças isto, não mexas na droga.
Estive oito meses desempregado, depois fui para a BP mas só lá estive um mês, e agora trabalho nos Jardins Tesoura. Fui a uma entrevista e fiquei. Fui ganhando o meu espaço com a minha humildade. Com as lições da minha vida aprendi que o dia de amanhã será melhor. Por exemplo, hoje tive um dia terrível, mesmo mau, mas não vou tirar o sorriso. Doem-me as costas, doem-me as pernas, estive à chuva, mas sei que tenho de trabalhar para ter o mínimo de conforto possível, se não trabalhar não pago a renda, a MEO, o passe, não conseguia comprar uns ténis, as minhas coisas e juntar para a cartinha.
Eu sempre fui contra o trabalho, odiava o trabalho. Dizia a quem quisesse ouvir:
- Mais vale uma mão inchada que uma enxada na mão.
Achava que o dinheiro fácil era melhor. E agora estou mesmo a gostar, sinto-me bem. Tinha um contrato de três meses, que renovou por seis e que renovou por um ano. Supostamente vão pôr-me efetivo. Não sabia trabalhar com máquinas e hoje parece que nasci ligado àquilo.
Nos primeiros tempos de casa estava sempre revoltado, desgastado com as pessoas, com os autocarros, a chamar nomes. Porque era a vida da rua, somos obrigados a ser assim, sempre à defesa, de arma em punho para quem viesse tratar-nos mal. Ainda andei muito tempo a viver como se estivesse na rua. O desprezo da população, marca-nos.
Tenho bué pânico social. Eu se vejo muitas pessoas, acho que estão todos a olhar para mim. Quando estava na rua e ia a um supermercado, o segurança andava atrás de mim porque eu estava todo sujo. Agora se entro e se vejo o segurança acho que ele está atrás de mim, atiro com as compras ao chão e saio. Não aceito críticas. O psicólogo diz-me que eu não sou o centro do mundo, que as pessoas não te estão sequer a ver. Ainda me está a ser muito difícil… sair à noite não consigo, para ir ao estádio do Benfica tenho de beber três ou quatro cervejas para descontrair, festas não, sítios com muita gente só entro na Igreja. Mas ainda assim sei que as coisas estão melhores.

Às vezes paro para pensar, olho em volta, ponho-me a reparar… Eu estava na rua, não tinha um teto, não tinha um prato de comida, não conseguia fazer nada da minha vida sozinho, e agora já vou ao advogado, à segurança social, já sei ir ao médico, lavo a roupa, estendo, dobro. Cozinhar está difícil. Mas já aprendi a fazer arroz. Comi um tacho inteiro num dia. Se a Crescer não existisse eu ainda estava na rua a pedir dinheiro, não tinha vontade de viver, de trabalhar, não tinha nada. Pensava:
- Quando morrer isto passa tudo e ninguém me chateia a cabeça.
Mas eles deram-me uma casa, apoio psicológico, estão 24h disponíveis para falar, estão lá sempre. Na altura odiava-os, mas dou o braço a torcer. Não desistiram de mim. E eu mandei-os embora umas sete vezes. Eu já tinha desistido, mas eles não.
Todos os dias é uma luta, porque a vida de trás deixou sequelas. Tive depressões, cheguei a estar meses dentro do quarto com tudo apagado, tudo desarrumado. Quando a casa está desarrumada é porque a cabeça da pessoa não está boa, digo-lhe de fonte limpa. Se a pessoa tem tempo e não arruma… Eu agora tenho tudo desarrumado, mas é porque chego tão cansado a casa e só estou bom para ver o Benfica e o Tom & Jerry. O que eu me rio com aquilo. O resto é só violência e disso eu já tive a minha dose.
Só fiz a quarta classe, quando fui para o 5.º ano já era só droga, até vendia cocaína ao pessoal lá da escola, mas estou a escrever um livro da minha vida para alertar os jovens a não baixarem os braços, para lutarem pela vida, pelos objetivos. Olhem para mim. Saí da rua, deixei a heroína, aprendi a viver em sociedade, a ter postura no trabalho. Mas levo a vida um dia de cada vez, cada mês uma etapa. Eu queria tudo logo e espalhava-me ao comprido. Ser autónomo é uma das vitórias que já consegui, ter um emprego, andar de cabeça levantada na rua também já está.
Tinha 33 anos, a idade de Jesus Cristo, quando ganhei mesmo tino. Renasci aos 33. Agora estou na metadona. À heroína não vou lá mais, mas tive a infelicidade de conhecer a cocaína e não está a ser fácil deixar. Estou duas ou três semanas sem ir lá mas há um problema qualquer e acho que vou resolver assim, tenho de ter um escape. Aquilo já nem é crack, é veneno. São aqueles medicamentos que eles metem e tenho mais dificuldade em largar, porque é uma coisa psicológica.
Eu sou bué fraco do psicológico. É só cinco euros a dose, é só uma… Venho do trabalho, o meu colega deixa-me em Campolide e vou direto ao bairro. Quando vejo estou aqui a consumir. Nem sei como cheguei cá. Parece que sou um robô. Não quero, não quero, e depois dou a primeira passa e começo a chorar, não é isto que quero para a minha vida, fico bué revoltado, de um problema arranjo sete ou oito. Quem anda à minha volta leva com os baralhos. Fumo e choro de arrelia, nem sequer fico alegre.
Ainda tenho o automático da droga ligado, tento tanto desligar, mas às vezes ainda salta sozinho para cima.
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Créditos
Texto Raquel Moleiro
Fotografias Tiago Miranda
Vídeo Rúben Tiago Pereira
Webdesign e ilustração Tiago Pereira Santos
Apoio web João Melancia
Coordenação Marta Gonçalves, Pedro Candeias e Joana Beleza
Direção João Vieira Pereira
Expresso 2023