Os segredos por descobrir no mar português

As riquezas no fundo da costa portuguesa são um mistério à espera de ser resolvido. A expedição Oceano Azul anda a investigar as águas ao largo de Cascais, Sintra e Mafra

São seis da manhã e apenas as luzes tremeluzentes da baía de Cascais rompem a escuridão com que segunda-feira se inicia. No silêncio da vila adormecida, o rolar das ondas contra o pontão é o único som que interrompe a acalmia. Não há comboios, os carros são poucos, mas ao longe há um ronco de motor que se aproxima.

Debaixo de fortes holofotes chega a traineira Praia da Ribeira, a nossa primeira boleia do dia. Na curta e balançada viagem, o mestre Pedro Teixeira diz-nos que temos sorte. O mar está anormalmente calmo para esta geografia e o tempo quente para outubro.

Quando falta hora e meia para a aurora, o Santa Maria Manuela - com os seus quatro longos mastros e luzes brilhantes - é uma visão que impressiona. 

Lançado ao mar em 1937, o navio foi parte da afamada Frota Branca portuguesa e das campanhas do bacalhau na Terra Nova e Gronelândia. Hoje é um navio de turismo marítimo e de treino de mar. Por estes dias foi casa de 58 cientistas dos principais centros portugueses de investigação do oceano.

O navio Santa Maria Manuela, originalmente um bacalhoeiro lançado ao mar em 1937, foi a base da expedição de 12 dias ao largo de Cascais, Mafra e Sintra

O navio Santa Maria Manuela, originalmente um bacalhoeiro lançado ao mar em 1937, foi a base da expedição de 12 dias ao largo de Cascais, Mafra e Sintra

Entre 1 e 12 de outubro, a expedição científica Oceano Azul Cascais | Mafra | Sintra percorreu mais de 600 milhas ao longo de cerca de 50 km de costa nestes três municípios. O objetivo? Descobrir e estudar o que há neste mar. “O objetivo é fazer um levantamento sistematizado dos valores naturais desta área do país”, explica Emanuel Gonçalves, membro do conselho administrativo e coordenador científico da Fundação Oceano Azul.

Isto porque “ainda há um grande desconhecimento daquilo que é o nosso património natural, daquilo que são as riquezas que o país tem”. E isso “é um padrão infelizmente geral e global”.

“Ainda há um grande desconhecimento daquilo que é o nosso património natural, daquilo que são as riquezas que o país tem”
EMANUEL GONÇALVES

Segundo a Unesco, 71% da superfície da Terra está coberta por oceanos. Estes são o maior ecossistema do planeta e servem de casa a 94% das espécies existentes. No entanto, apenas 5% foi explorado e mapeado.

O resto, sobretudo o oceano aberto e as águas profundas, permanece um mistério por desvendar. 

O mar “é um ambiente hostil e difícil que requer recursos e meios significativos (para estudar)”, explica Emanuel Gonçalves.

No caso português, têm sido feitos “investimentos importantes” nas ciências do mar, mas o desconhecimento permanece.

Nestes três municípios, “há locais onde nunca tínhamos ido e dos quais não há registos científicos disponíveis”, explica Marisa Batista, investigadora do MARE-ULisboa.

Com excepção da costa sul de Cascais, toda a extensão entre o Cabo Raso e a zona da Praia do Porto do Barril é “muito exposta” e por isso “muito difícil de trabalhar”, corrobora David Jacinto, do MARE-UÉvora.

“São muito poucos dias do ano em que o mar tem condições. E isso vê-se não só no trabalho científico como na recreação. Enquanto há zonas no país, como a costa sul do Algarve ou Sesimbra, onde há muitos centros de mergulho e turismo subaquático, em Cascais esse número é reduzido.” 

Assim, continua Emanuel Costa, nesta área “há muito conhecimento empírico que vem dos utilizadores, como por exemplo dos pescadores e das empresas marítimo-turísticas”, mas “não há muitos estudos científicos sistematizados”. 

“O que temos são alguns indicadores de que esta zona do país parece ser muito importante, não só como ponto de passagem, mas também com alguns ambientes diferenciados - como montes marinhos ou afloramentos rochosos significativos -, que depois se traduzem alguns deles numa produtividade elevada, por exemplo para a pequena pesca costeira.”

E acrescenta: “O que estes estudos científicos permitem fazer é concretizar e ir em busca destas pistas.”

Para tal, o Santa Maria Manuela teve a bordo uma rara concentração de especialistas. Em equipas multidisciplinares e recorrendo a metodologias complementares, estes cientistas conseguiram recolher informações diferenciadas que irão permitir formar uma imagem mais completa destes ecossistemas.

Logo à chegada cruzamo-nos com alguns. São os primeiros a sair para campo, a bordo de barcos de pescadores. Mais tarde, pelas 8h30, quando a luz da manhã já o permitir segui-los-ão os mergulhadores.

Por essa hora, também nós faremos a balançada e veloz viagem num semirrígido para os vermos em ação. São quatro barcos, quatro paragens, espalhadas ao longo da costa entre a baía de Cascais e o Cabo Raso.

Os mais fáceis de encontrar neste tranquilo e infinito azul que faz de grandes embarcações pequenos pontos são os mergulhadores, que estão mais junto às rochas. Marisa Batista e David Jacinto são os coordenadores dos UVC (censos visuais subaquáticos). No total, em 12 dias de expedição, realizaram-se  270 mergulhos, 154 dos quais científicos.

Divididos em duas equipas, estes cientistas mergulhadores visitaram profundidades entre os 10 e 12 metros para poderem observar e contabilizar as espécies aqui avistadas e depois estimar a abundância das mesmas.

Por aqui encontraram sargos, safios, moreias, florestas de kelp (algas largas e compridas), esponjas, ouriços do mar.

“Até agora não encontrámos nada que não fosse expectável, mas de qualquer maneira não cremos que esse seja necessariamente o objetivo”
DAVID JACINTO

“Nesta expedição queremos fazer uma prospecção das zonas, porque para além das espécies que podemos ver de peixes ou invertebrados, o que muitas vezes nos dá sinais da importância de determinado local é a estrutura do habitat”, corrobora Marisa Batista.

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Mais fundo do que os mergulhadores foram as câmaras da equipa de BRUV (Baited Remote Underwater Video), uma técnica de monitorização com câmaras subaquáticas colocadas a poucos metros da superfície ou no fundo oceânico para capturar imagens dos animais. 

“Estas câmaras estão iscadas, portanto atraem uma quantidade (significativa) de fauna - principalmente carnívoros, mas também algumas espécies associadas”, explica Noelia Ríos, investigadora do MARE-ISPA.

As câmaras BRUV detetaram uma alta biodiversidade, nomeadamente peixes anthis e congro (também conhecido como safio)

As câmaras BRUV detetaram uma alta biodiversidade, nomeadamente peixes anthis e congro (também conhecido como safio)

E com outra vantagem: “O mergulhador vai sempre afastar a fauna e passa menos despercebido. As câmaras, ao terem o isco, atraem mais e podem ir a mais profundidade”.

No caso desta expedição, chegaram mesmo a uma profundidade máxima de cerca de 96 metros (numa zona conhecida como Montanha de Camões).

Com estas filmagens recolhidas é possível obter “informação sobre que espécies estão a viver lá (biodiversidade), em que número (abundância) e fazer medições (biomassa)”. Os três são “indicadores de qualidade ambiental”.

Enquanto isso, à superfície, o trabalho científico continuou. Os especialistas da SPEA (Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves) recolheram dados para caracterizar as aves marinhas e cetáceos. A equipa do CCMAR (Centro de Ciências do Mar) da Universidade do Algarve preservou em álcool e sílica as amostras recolhidas durante os mergulhos para posteriormente serem geneticamente analisadas.

Noutro ponto, a filmagem das BRUV captou um cardume de lírios a passar por uma floresta de kelp

Noutro ponto, a filmagem das BRUV captou um cardume de lírios a passar por uma floresta de kelp

Findo o trabalho de campo, encontramos os cientistas de volta ao Santa Maria Manuela, onde a cafetaria é o ponto de encontro. Uns estão debruçados sobre os computadores, onde digitam durante horas a fio os dados recolhidos. Outros trocam histórias à volta da mesa ou juntam cabeças para tentar identificar pelas imagens dos livros algumas espécies menos comuns que viram nesse dia.

Embalados pelos movimentos do navio, que nos obrigam a ter sempre uma mão a ajudar no equilíbrio para evitar dar mais três passos do que os que queremos, vamos passando as últimas horas do dia.

Algures no crepúsculo levantamos âncora e seguimos para as águas bem mais agitadas do corredor de navegação. O oscilar da ondulação irá acordar-nos a meio da noite, a inclinação fazer-nos rolar nos beliches. Coisas que só quem não está habituado a andar no mar sente.

Mas a noite passa sem marear e o dia volta a arrancar antes do amanhecer. A rotina a bordo repete-se, há horas rigorosas para as refeições, as equipas preparam-se para novos trabalhos.

Desta vez estamos nas águas menos calmas da Ericeira. Há novos desafios, mais frio e a neblina lá fora é tão densa que nem se distingue para que lado é terra. Isso não desmotiva os investigadores, que voltam a sair nas embarcações mais pequenas.

Mas nem só em mar se fez esta expedição. Em terra ficou ainda uma equipa que irá continuar o trabalho de caracterização da biodiversidade e cartografia da zona entre-marés (a extensão de costa entre a linha da água na maré vazia e cheia), nomeadamente utilizando drones. 

“Nestas zonas, embora as pessoas não tenham ideia, encontramos várias centenas de espécies, entre algas, invertebradas e peixes”, explica Frederico Almada, especialista do MARE-ISPA e um dos responsáveis deste trabalho. “Estas funcionam muitas vezes como berçários. Muitas espécies que conhecemos grandes vêm para estas zonas quando são juvenis ou larvas recém-eclodidas.”

Estudar esta zona tem assim uma dupla vantagem. Por um lado, “esta é a parte com que as pessoas mais interagem do meio marinho, (nomeadamente) quando vão à praia. É a parte que podemos aproveitar para sensibilizar as pessoas para a conservação e sustentabilidade”.

Por outro, é uma zona mais acessível e fácil de estudar do que as zonas que estão sempre submersas. “Os dados deste meio não são representativos do meio marinho em si, mas são uma espécie de aproximação àquilo que se está a passar no meio que é completamente marinho.”

“Isto é um primeiro esforço, um esforço conjunto, um grande esforço que envolve muitas entidades, muitas equipas e pessoas com diferentes áreas de especialização. Este é o grande ponto de partida para o que se pretende vir a fazer aqui, que no fundo é conhecer para proteger o nosso mar”
DAVID JACINTO

Todos estes dados resultarão num relatório (com publicação prevista para o final deste ano ou início do próximo) que irá fornecer uma quantidade significativa de novos dados sobre a região. 

Contudo, isto será apenas o início do que está planeado. A ideia é o conhecimento gerado servir de base para mais trabalhos científicos no futuro. 

“O que estamos a fazer aqui é tirar uma fotografia. Nós não sabemos se isto está bom, se está mais ou menos ou se está mau. Só vamos saber isso quando tivermos uma linha de tendência”, explica Frederico Almada.

E isso, acrescenta o investigador, só é possível quando tivermos “um conjunto de fotogramas que depois fazem um filme”, ou seja várias observações ao longo do tempo. E claro, os resultados obtidos agora também serão um ponto de referência para trabalhos futuros nesta área.

Mas a ambição da Fundação os promotores desta expedição vai mais longe. Alinhadas com o compromisso assumido por António Costa na Conferência dos Oceanos da ONU em junho (de ter 30% das áreas marítimas protegidas até 2030), os municípios de Cascais, Mafra e Sintra (apoiados pelo Governo) querem avançar com a iniciativa conjunta de criar uma AMPIC (Área Marinha Protegida de Iniciativa Comunitária) nesta região.

O trabalho realizado nesta expedição será também a base científica para esse projeto, que a concretizar-se será a segunda em Portugal (a seguir ao Parque Natural Marinho do Recife do Algarve - Pedra do Valado, que está já a ser avaliado no Algarve).

“O que é importante que se perceba é que as espécies estão todas interligadas. Alterando uma coisa podemos alterar muitas”
FREDERICO ALMADA

E isso torna-se particularmente relevante no contexto atual. “Neste contexto de alterações climáticas, é muito importante ter uma boa noção do que existe neste momento para se poder ir acompanhando e monitorizando, para perceber onde é que estas espécies estão a aumentar e os seus limites de distribuição biogeográfico. Isso é um aspeto relevante, também em termos económicos. É importante realmente ter esta informação detalhada e sistematizada para podermos gerir e conservar os nossos recursos da melhor forma possível.”

Do que já se sabe, o quadro não é necessariamente animador. “A tendência é de declínio em geral, do número de espécies e indivíduos”, afirma Frederico Almada. O seu centro de investigação está a analisar a zona entre-marés na área protegida das Avencas desde 2009 e de toda esta região desde 2015. Fazem trabalho de campo quinzenalmente.

“Muitas vezes não há alterações que são um declínio ou aumento lento, muitas vezes o que há é eventos bruscos em que uma coisa interfere depois nas outras todas. O que é importante que se perceba é que as espécies estão todas interligadas. Alterando uma coisa podemos alterar muitas.”

“Neste contexto de alterações climáticas, é muito importante ter uma boa noção do que existe neste momento"
DAVID JACINTO

Como o próprio nome indica, a criação de uma AMPIC é do interesse da comunidade. Por isso, a Fundação Oceano Azul e os municípios sublinham a importância de envolver desde logo a comunidade. 

Durante o nosso tempo a bordo com a expedição, tanto em Cascais como no norte da Ericeira (onde navegamos no segundo dia), cruzamo-nos também com alguns dos 17 pescadores, cinco embarcações e quatro associações de pesca, que colaboraram na expedição. 

Ao todo, realizaram 248 horas de trabalho, durante as quais serviram de embarcações de apoio às equipas científicas. Lado a lado com os cientistas, navegaram muitas milhas, lançaram câmaras, puxaram cordas, recolheram boias. 

João Ferreira, mestre da traineira São Bartolomeu do Mar, foi um deles. “Temos tido aqui um intercâmbio de conhecimentos e ideias que tem sido muito vantajoso, pelo menos da minha parte eu tenho gostado”, diz-nos enquanto aguardamos os 40 minutos para o momento de voltar a puxar o BRUV que está neste momento a filmar o fundo do mar, próximo de uma arriba rochosa na zona de Cascais.

“O mar não é como a agricultura. Aqui não semeamos nada. Ao fim e ao cabo isto vai ajudar toda a classe piscatória e toda a gente”
JOÃO FERREIRA

De dentro da sua cabine, junto ao leme, acompanha atentamente todos os movimentos dos seus pescadores e cientistas, enquanto esta recém-formada mas muito afinada equipa prepara todos os materiais para o próximo lançamento.

“Esta troca de conhecimentos, quer da nossa parte quer da parte dos investigadores com as experiências que eles fazem, acaba por ser vantajoso para todos. Nós pescadores estamos completamente abertos a que haja este tipo de iniciativas, a partir do momento em que estejamos envolvidos também”, sublinha o mestre da traineira João Ferreira.

Créditos

Texto Cláudia Monarca Almeida
Fotografias Fundação Oceano Azul e Nuno Vasco Rodrigues
Vídeo Fundação Oceano Azul e Nuno Sá
Webdesign e edição vídeo Tiago Pereira Santos
Apoio web João Melancia
Coordenação João Pedro Barros e Joana Beleza
Direção João Vieira Pereira

Expresso 2022