A grande volta à ilha

Os movimentos de fé dos romeiros nasceram nos Açores há 500 anos

Roberto Araújo sobreviveu a vários problemas de saúde, mas prefere sempre agarrar-se ao lado bom do mau que lhe acontece. Esta é a história de um romeiro do Porto Formoso que percorreu quase 400 quilómetros a pé e sozinho, na ilha de São Miguel.

Ligamos uma vez e ninguém atende. Voltamos a insistir, sem sucesso. Quatro tentativas depois, em dias e horas diferentes, lá o ouvimos com uma confiança e boa disposição desconcertantes:

- Onde está o irmão Roberto, não está o telemóvel.  

Contacto feito, dia e hora marcados para a entrevista. Local: Miradouro de Santa Iria, concelho de Ribeira Grande, em São Miguel, nos Açores, um dos locais mais turísticos da costa norte da ilha, por onde passam dezenas de turistas diariamente. Ali, todos procuram encontrar deslumbramento na imensidão do mar e da costa onde se vê o Porto Formoso, uma freguesia com pouco mais de 11 quilómetros quadrados e cerca de 1200 habitantes, dados dos censos de 2011. 

O fotógrafo chegou ao tal miradouro bem mais cedo que a hora marcada; a jornalista, uns cinco minutos antes do combinado; esperaram os dois mais de 40 minutos . 

A história justificava a paciência.

Roberto é o romeiro que percorreu quase 400 quilómetros a pé ao longo da maior ilha dos Açores durante sete dias seguidos, em março. Contra a indicação dos médicos que o seguiam, fê-lo a pé, sozinho, por sua conta e risco. Nas costas carregou uma saca, que toda a gente chama de "sovadeira", onde cabe comida e alguma roupa. Ao peito levou um terço com a cruz de Cristo ao qual se agarrou durante toda a caminhada; sobre os ombros, um xaile e um lenço para cobrir a cabeça em caso de chuva, mas com o casaco de capuz impermeável por baixo do traje. 

Fomos procurá-lo, onde mora, no Porto Formoso. Dois homens que por ali andavam indicaram-nos o caminho que procurávamos e antes de lá chegarmos o telefone tocou.

- Desculpem, atrasei-me! Vocês não estavam lá em cima, pois não?

 Traz duas flores brancas na mão. Tem 39 anos e, quando se apresenta, explica que teve de assinar um termo de responsabilidade apresentado pelo neurocirurgião que o segue para poder ir de romeiro sozinho, ilha fora. Leva já 34 romarias nos pés, porque em “quatro anos” foi “em dois ranchos diferentes”. 

 Seguiu-se um diálogo animado, como se nos conhecesse há anos. Entrou no carro e indicou-nos o caminho para sua casa. “Oh Joaquim sai da terra!”, diz, a rir-se ao gato que se atravessou à frente do nosso carro. “Aquele também me pertence, só tenho 22 gatos, é espetacular!”, conta a rir-se.  

 Quando entramos no espaço de Roberto, a primeira coisa que faz é mostrar-nos os animais: “Devo ter perto de 100 a 150 animais, tudo contado, tenho as cabras aqui em baixo, estão a dar crias.”  Também vimos vacas, porcos, galinhas poedeiras que lhe dão 22 ovos por dia, e cães. Naquele dia de mar agreste, via-se o quão intensa pode ser a natureza dos Açores. “O Roberto não tem inimigos. Eu antes já era, mas agora estou super-rico, super-rico, espetacularmente rico”.

Em tudo o que diz, faz questão de sobrepor o lado positivo ao negativo das situações. “Eu sofri muito com a radioterapia. Quando vinha para cima [no pasto que tem em casa] caía muitas vezes. O Roberto caia muita vez ali e levantava-se a chorar e a olhar para cima pelo que estava a passar no meio daquela terra, sentado [no chão], depois de ter tratado dos meus animais.”

 Antes da última romaria, apareceu-lhe um glioma no cérebro, um tumor raro difícil de detetar. O problema de saúde implicou cirurgia, no Hospital Egas Moniz, em Lisboa, radioterapia e quimioterapia. Mas o sofrimento deste homem começou cedo: aos 16 anos, começou a perder progressivamente a visão e teve de ser operado várias vezes.  

“Eu não era cego, eu estava a ficar cego. Esses olhos não são meus, estas vistas não são minhas. Este aqui [aponta para o olho direito], o meu organismo aceitou, mas este aqui [aponta para o olho esquerdo] o meu organismo já rejeitou duas vezes e este é o terceiro [transplante]”, só no lado esquerdo, nos últimos cinco anos.  Quando efetuou o terceiro transplante no lado esquerdo, “apareceu o tumor na cabeça” que lhe adicionou 85 pontos ao crânio, deixando-lhe marcas bem visíveis num dos lados da cabeça. 

Durante as quase duas horas em que esteve a conversar com o Expresso, sentado no chão de cimento que tem em frente à sua porta de casa, Roberto mostrou-nos as fotos das filhas Margarida (onze anos) e Maria Inês (cinco) e explicou o longo processo de exames e consultas, entre a ilha de São Miguel e Lisboa, onde foi operado no ano passado, e onde ainda é seguido de forma regular, por especialistas. 

 “Lá no hospital [no continente], a médica disse-me: ‘Paulo, queremos ver se o teu organismo consegue segurar os pontos [no olho esquerdo] o resto da tua vida, o mais possível, porque foste operado à cabeça e uma coisa pode prejudicar a outra. Daí o Roberto ter aqui os seus 40 pontos na vista. Na sua cabeça retirou 80 por cento do tumor, o resto está a desaparecer e o Roberto está aqui espetacularmente bem”, garante.

E prossegue: “Já fiz exames e estou espetacularmente bem porque tirei os 80 por cento do tumor da minha cabeça. Não podia tirar tudo porque senão podia ficar paralisado do lado esquerdo. Eles [os médicos] disseram: ‘Paulo, agora com tratamento vamos tentar queimar os outros 20 por cento que faltam. Então já queimaram e estou a tomar outro tipo de medicamentos para não nascer novamente ali um tumor. De medicina não percebo nada, mas foi isso que eles justificaram que, para os outros 20 por cento, podia haver remissão”, assegura. 

Sete dias a pé

Contra a recomendação dos médicos, o medo da mulher, dos pais e de quem gosta dele, Roberto quis sair em romaria para “agradecer à Senhora da Graça”, padroeira do Porto Formoso. Não é uma peregrinação qualquer. Sair em romaria, em São Miguel, significa, percorrer a ilha a pé durante sete dias consecutivos, desde as quatro da manhã até ao sol se pôr. Os romeiros fazem-no numa corrente de oração constante, com chuva, vento ou sol, sem que nada trave a sua caminhada. “Até o meu pai dizia, ‘tu és maluco? vais por aí sozinho?’. Eu não vou sozinho”.

 Os ranchos de romeiros - grupos de homens que circulam pela ilha, sempre com o mar pelo lado esquerdo nas semanas que antecedem a Páscoa - voltaram a não sair de forma organizada este ano. Alguns ranchos saíram apenas umas horas ou um dia, sem pernoitar  nas diferentes freguesias da ilha, como foi o caso do rancho da paróquia de Santa Cruz, da Lagoa.  

Roberto foi execção. O único que cumpriu os sete dias de romaria e dependeu exclusivamente da boa vontade de quem o acolheu, sem nada praticamente planeado. “A ilha de São Miguel ficou olhando para o Roberto do género, ‘ah, mas vais sozinho? Tu és do Porto Formoso, como vais para casa logo à noite?’”, conta, sempre de sorriso rasgado. “Não vou para casa logo à noite. Eu tenho que agradecer a Ela. A Senhora da Graça sabe bem o que se passou com o Roberto porque o Roberto está brilhante”. 

Assim foi.

Fez um post na sua página de Facebook a anunciar que ia sair do Porto Formoso de romeiro. Pedia apenas para poder pernoitar na igreja ou salão paroquial de uma das sete freguesias da ilha de São Miguel, onde habitualmente fica o rancho que costuma integrar. O seu post teve mais de 150 partilhas e a mensagem chegou ao destino. “Em quatro freguesias os irmãos [pessoas] ‘brigaram’ que queriam ficar comigo. Pessoas da freguesia que sabiam que eu ia, que precisavam de oração, queriam arrumar o irmão Roberto e eu fui arrumado”, explica. 

 Arrumar significa dar alojamento e refeição ao romeiro que decide percorrer, em oração, as ruas da ilha.

 Dos sete dias de romaria, Roberto guarda incontáveis histórias. Uma das que mais o impressionou passou-se numa paróquia, numa das pontas da ilha. “Infelizmente o irmão padre de lá mandou-me apanhar um táxi para casa. Foi aí que o Roberto chorou muito. Eu não ia para casa. O Roberto apanhou uma paragem de autocarro, novamente. Estendi o meu xaile no chão, por causa da humidade e das minhas costas, e deitei-me ali. Comi uma sandes, espetacularmente bem, ninguém quis arrumar-me, ninguém quis que eu dormisse na igreja. À meia-noite e qualquer coisa, aparece um casal. Tinham passado, ouviram falar e foram buscar-me. A senhora fez comida para mim, àquela hora, e foi-me mostrar a minha cama”, conta, feliz.

Quando às quatro da manhã saiu da casa que o albergou naquela noite, percebeu que, ao descer as escadas, o casal que o ajudara “estava a dormir no sofá”. “Eles ofereceram-me a sua cama. Aquilo é fé, muita fé, mexeu muito comigo, rezei muito por aquele casal”. 

Durante a romaria, aquilo que Roberto mais temia era a chuva já que uma constipação ou até mesmo uma pneumonia poderia comprometer e muito a sua saúde. A certa altura, ao passar numa das freguesias da costa norte do concelho de Ponta Delgada, conta: “Ai eu não quero chuva, eu não quero chuva, vamos lá ver se aparece uma paragem de autocarros. Ah Nossa Senhora, vá lá, eu rezo-te mais um terço[dá uma grande gargalhada]”.

Juro-lhe, duzentos, trezentos metros depois, aparecia. O Roberto sentava-se, começava a chover, 15 minutos depois parava”.

 “Encontrei pessoas a chorar porque viram um romeiro a sair e compreenderam que, para aquele homem sair, alguma coisa se passou. O que se passou este ano com o Roberto foi lindo, espectacular, lindo, lindo! As horas passavam a voar. Na minha caminhada eu não ia cantando, ia rezando e aquelas orações saíam-me. Aparecia qualquer coisa e eu dizia: ‘Roberto, aquele irmão precisa de um Pai Nosso, e o Roberto, bomba, Pai Nosso’”. 

 Garante que não trouxe bolhas nos pés ou mazelas no corpo: “Quando o Roberto chegou a casa, no domingo, os romeiros do Porto Formoso aceitaram-me lá [na igreja], as lágrimas vieram-me aos olhos porque eu tinha muita coisa para dizer a Nossa Senhora da Graça. O Roberto romeiro chegou e já não disse metade. Mas aqui dentro [colocando a mão no coração] estava, e Ela veio aqui buscar”.

Enquanto andou pelas estradas da maior ilha dos Açores, Roberto garante que não ligou a ninguém, nem para a mulher. “Ela chorou muito”, conta, e antes tentara demovê-lo de ir. “Pensa bem Roberto, fica em casa, não vás”, disse-lhe. Mas nada o impediu de sair apenas apenas e só para agradecer o que tem.

Vem de uma família de seis irmãos e foi o único que nasceu na casa da família, no Porto Formoso. Não conseguiu completar o oitavo ano de escolaridade porque desistiu para ajudar o pai. “O Roberto com seis anos já tirava leite às vacas”, recorda. Durante 15 anos trabalhou numa empresa de segurança, mas “entrou em acordo com eles” e saiu, na sequência dos problemas de saúde que vem somando. Está desempregado.

A fé e a vontade de ajudar o outro, movem este homem de sorriso fácil. A alegria, o entusiasmo e a naturalidade com que conta a experiência que teve chega mesmo a impressionar quem está do outro lado a ouvir a sua história. 

“Eu sinto-me romeiro dentro de mim mesmo e um romeiro serve para ajudar”. Diz que ajuda sempre quem pode. “Eu sinto-me romeiro dentro de mim mesmo e um romeiro serve para ajudar”.

Ilha de São Miguel tem mais de meia centena de ranchos mas nenhum fez a romaria completa

João Botelho é romeiro há 40 anos e é atualmente mestre do rancho de romeiros da freguesia de Santa Cruz, concelho de Lagoa. Este grupo de homens foi um dos poucos que este ano saiu durante um único dia: 9 de abril.

 Na ilha de São Miguel existem mais de meia centena de ranchos e, devido à pandemia, não houve consenso geral para a saída habitual e organizada dos romeiros, que não acontece há três anos consecutivos devido à covid-19.  “A pandemia veio arrefecer muito o interior das pessoas, as pessoas ficaram afastadas. Há pessoas que só conseguem rezar quando veem as coisas nas manifestações de fé. A romaria que estamos a fazer hoje é quase como uma procissão que estamos a fazer na paróquia”, começa por explicar João Botelho que é também bancário. 

 Ele e mais 25 homens juntaram-se debaixo do alpendre do centro comunitário Padre João Caetano Flores, ao lado da igreja de São José, na freguesia da Ribeira Chã, antes do sol nascer. Noite escura, cinco da manhã, e com o secular traje do romeiro da ilha de São Miguel, aguardavam a tão desejada saída, ainda que apenas por um dia.

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No grupo, mais pequeno que o habitual, há profissões de todos os quadrantes: um militar, um massagista, o presidente da Junta, o padre da paróquia, pintores, motoristas, varredores, só para nomear alguns. Tratam-se todos por “irmãos”, sempre, esquecendo até os nomes próprios de cada um.  

Quando perguntamos quantos são, a resposta é sempre esta: “Somos 29”. Isto porque, contabilizam-se a eles e à tríade da Santíssima Trindade: Pai, filho e Espírito Santo. É essa a pergunta que, quem está na rua, e vê um rancho de romeiros a passar, faz ao “Procurador da Almas”, o último romeiro do rancho que caminha destacado dos pares. 

No rancho de Santa Cruz, Mário Luís Pereira, romeiro há 26 anos, é quem assume esse papel. É ele quem recebe os pedidos de oração de quem se cruza com eles nas ruas da ilha. “Nos anos em que temos mais crises, tempestades, fases menos boas da vida, as pessoas procuram-nos mais. Vemos a aflição das pessoas a virem ter connosco, acreditar nas nossas rezas, confiar no trabalho que estamos a fazer. Há muitas pessoas aflitas por doenças, outras por desemprego, as pessoas vêm ter connosco e desabafam. A gente reza por elas e elas rezam por nós”, explica este romeiro que é também empresário. 

Já depois de deixarem a Ribeira Chã, e de entrarem na igreja da freguesia, o grupo segue rezando o terço em uníssono, onde o som grave da oração, cuja melodia chega longe, se mistura com o vento forte que se faz sentir e o negro da noite. Alguns quilómetros à frente, o som compassado e melódico do terço dos romeiros, desperta quem ainda está de pijama e vem de propósito à porta de casa, ver o rancho passar.  

 Na primeira linha, no meio das duas filas de homens, está o elemento mais novo do grupo. Francisco Ponte tem 11 anos e agarra-se à cruz com as duas mãos. É a sua primeira vez como romeiro. Vem com o irmão e com o tio. Diz que veio porque gosta de experimentar coisas novas e sempre gostou dos romeiros. 

 O que sentes ao levar a cruz?, perguntámos. “Gratidão, importância”. E no coração? “Alegria e espanto. Nunca fiz isto na minha vida”, responde, com um sorriso tímido, à saída da igreja de Nossa Senhora dos Anjos. 

Em Água de Pau, o grupo ruma ao cimo do conhecido Monte Santo de onde se avista a vila. Mal os vê chegar, Maria do Carmo Matos, mais conhecida por Carminha, agarra no telemóvel e filma-os a passar. Munida com dois sacos de compras, é a única mulher a acompanhar aquele grupo que, até à ermida do Monte Santo, vai parando e rezando de acordo com as pausas que impõe a via sacra ao longo do caminho daquele monte. “Todos os anos gosto de vir trazer uma refeição quentinha aos romeiros de manhã, mas este ano como é uma romaria especial vim trazer um cafezinho quentinho para todos.” 

 Carminha tem o filho Manuel como romeiro naquele grupo: “Ele adora a romaria e eu também”. Quando lhe perguntamos o que sente ao acompanhar os romeiros, esta mãe e avó responde, a chorar: “Muita emoção, especialmente neste momento que atravessamos. Nunca mais orei nem por mim, nem pela minha família. Agora só me interessa é orar pela paz do mundo, pelas pessoas inocentes a sofrer. Eu não durmo a lembrar-me das cenas que tenho visto. Ainda esta semana uma menina de dois anos de idade, a idade da minha neta, nua na rua com tanto frio, com o número de telefone marcado nas costas. Onde está a dignidade humana? Onde está?”, pergunta, indignada, com as lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto. “Estou muito emocionada hoje porque eu tenho muito respeito por estes grupos de homens que andam pela rua a orar e em grande sacrifício, tenho muito respeito mesmo. Estou muito feliz porque posso contribuir com alguma coisa para aliviar o sacrifício deles e estou em oração com eles”, garante.  

 Num diálogo que quase não precisou de perguntas, Carminha sublinha a ligação dos açorianos à fé. “Como estamos muito isolados, limitados pelo mar isso fez com que a nossa cultura se desenvolvesse muito na proximidade com o interior. Isso acompanhado das catástrofes - porque temos manifestações naturais muito fortes - fez com que nos agarrássemos muito a Deus”, assegura. E foi precisamente por causa do terramoto de outubro de 1522, na ilha de São Miguel, que nasceram as romarias quaresmais.

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“Na semana da romaria estamos numa espécie de redoma” 

Carlos Vieira é mestre dos romeiros da freguesia de São Miguel, concelho de Vila Franca do Campo. Nasceu num emaranhado de romeiros. O avô foi, depois levou o pai, os tios e ele. Já escreveu um livro sobre o tema, “Diário de uma Romaria”, publicado em 2005, atualmente esgotado. Em outubro prevê publicar a segunda obra, “Romeiros de São Miguel Arcanjo, 500 anos de história”.  

 “Uma romaria é sem dúvida um retiro espiritual que faz falta a toda a gente. Neste caso em específico faz muita falta aos homens, uma vez que as nossas romarias quaresmais são exclusivas a homens. Eu diria mesmo que é um recarregar de baterias. Após a conclusão de uma romaria, nós trazemos o nosso coração cheio do Espírito Santo, a nossa prática do bem após alguns dias ou algumas semanas depois da romaria é constante. Depois, aquela chama que trazemos começa a enfraquecer e algumas até apagam-se, daí aquela necessidade de, no ano seguinte, incorporar uma romaria fazer todo o sentido”, explica.

 Carlos Vieira é escriturário, mas estuda e interessa-se muito por este movimento de fé. “Na semana da romaria estamos numa espécie de redoma. Estamos blindados do exterior, não ouvimos maledicência de quem nos rodeia, só ouvimos coisas boas, daí que a nossa mente fica totalmente transformada do ponto de vista espiritual, moral e cívico”, assegura. 

Em outubro deste ano, as romarias da ilha de São Miguel, uma das maiores manifestações de fé dos Açores, completam meio milénio. “Dizer que são 500 anos de romarias poderá levantar alguma controvérsia porque inicialmente eram procissões que mais tarde originaram as romarias. Até ao século XX eram sempre romarias mistas, homens, mulheres e crianças. Só quando a Igreja começa a regulamentar as romarias é que as senhoras foram desaconselhadas a irem numa romaria, por diversos motivos, por motivos higiénicos, por motivos de falta de proteção individual, também para cuidarem dos seus filhos mais pequenos”, explica Carlos Vieira. E na origem desta manifestação de fé coletiva está, segundo relatos históricos, de Gaspar Frutuoso ou do Frei Agostinho de Montalverne, o terramoto de 1522. 

“Um monte desabou e subverteu, ou seja, passou por cima de toda a Vila Franca do Campo. Estima-se que morreram cerca de cinco mil pessoas. Os poucos sobreviventes, segundo a história, cerca de 70, foram aqueles que fizeram a primeira procissão que originou as primeiras romarias”, precisa o romeiro de Vila Franca. Segundo Carlos Vieira, logo após o terramoto, o frei Afonso de Toledo apelou aos poucos sobreviventes que realizassem uma procissão em memória das vítimas. Isso ocorreu precisamente oito dias depois e durante muitos anos, todas as quartas-feiras. O que é certo é que quando faziam as procissões, a terra parava de tremer. A notícia espalhou-se na ilha e todos os habitantes começaram a repetir aquela prática, a visitar a capelinha mais próxima de Nossa Senhora”, relata o escriturário. “Tudo começou como um modo de súplica e clemência a Deus para que a terra parasse de tremer e para que parassem as grandes calamidades”.  

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Créditos

Texto Sara Sousa Oliveira
Fotografias Hugo Moreira
Web Design Tiago Pereira Santos
Apoio web Maria Romero
Coordenação editorial Pedro Candeias, Joana Beleza e João Carlos Santos
Direção João Vieira Pereira

Expresso 2022