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Capítulo I Capítulo II Capítulo III
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Calais
O Labirinto

Chamam-lhe 'a Selva'. O campo de refugiados de Calais foi fechado para evitar a concentração de migrantes, mas as pessoas continuam a chegar todos os dias. Qual é o preço a pagar para sobreviver? Estes são os refugiados que a Europa esqueceu

Antes escondiam-se em carros, camiões ou navios. Hoje arriscam mais e atiram-se ao Canal da Mancha em pequenas embarcações. “Está tudo cada vez mais visível, porque o desespero é maior.”

Em 2021 mais que triplicou o número de pessoas que morreram no mar que separa a União Europeia do Reino Unido.

Reportagem de Marta Gonçalves e José Fernandes
Em Calais e Dunquerque

  • Calais
    O Labirinto

  • Reportagem de Marta Gonçalves e José Fernandes
    Em Calais e Dunquerque

  • Chamam-lhe 'a Selva'. O campo de refugiados de Calais foi fechado para evitar a concentração de migrantes, mas as pessoas continuam a chegar todos os dias. Qual é o preço a pagar para sobreviver? Estes são os refugiados que a Europa esqueceu

  • Antes escondiam-se em carros, camiões ou navios. Hoje arriscam mais e atiram-se ao Canal da Mancha em pequenas embarcações. “Está tudo cada vez mais visível, porque o desespero é maior.”

  • Em 2021 mais que triplicou o número de pessoas que morreram no mar que separa a União Europeia do Reino Unido

  • I
    “Só tenho isto, nada mais”

I
“Só tenho isto, nada mais”

Tinha feito uma promessa: “eu encontro-vos”. Mas Rezan não está ali. Ele é curdo do Irão, tem 22 anos e uma cicatriz no braço, do pulso ao cotovelo, que já foi uma tatuagem: o desenho de uma cruz cristã que lhe foi arrancado do corpo pelo pai muçulmano.

Onde está Rezan?

Ainda ninguém o viu esta manhã. “Vamos então procurá-lo”, diz a enfermeira Charlotte Post. O caminho até ao descampado onde estão centenas de tendas é feito de lama e poças. Chove há dias. Faz frio.

“Era aqui que ele dormia”, aponta a enfermeira para o único local vazio. Ao lado, uma tenda foi abaixo com o peso da chuva, o amontoado tem a forma de um corpo caído. “Está alguém por baixo disto?” “Isto é do Rezan?”, pergunta ela a quem está ali à volta. Silêncio. “Sabem do rapaz que estava aqui ontem?”, insiste. Ninguém responde.

Um homem aparece acelerado. “Isso são as minhas coisas.” Ele não é Rezan.

Estamos em Grande-Synthe, entre Calais e Dunquerque, no norte de França.

  • Estima-se que vivam aqui cerca de 800 pessoas. Há mais famílias do que é habitual noutros acampamentos da região

  • É num descampado sem dono, escondido entre mato, mas apenas a uma estrada de distância da cidade que se junta a comunidade curda. Dizem ser este o local “mais fácil de atravessar para o outro lado”

Estima-se que vivam aqui cerca de 800 pessoas. Há mais famílias do que é habitual noutros acampamentos da região

É num descampado sem dono, escondido entre mato, mas apenas a uma estrada de distância da cidade que se junta a comunidade curda. Dizem ser este o local “mais fácil de atravessar para o outro lado”

  • O mau tempo dos últimos dias tem deixado dezenas de pessoas à espera da oportunidade para atravessar o Canal da Mancha e chegar ao Reino Unido

O mau tempo dos últimos dias tem deixado dezenas de pessoas à espera da oportunidade para atravessar o Canal da Mancha e chegar ao Reino Unido

“A cada duas semanas já não conhecemos ninguém nos campos. Há uma grande rotatividade de pessoas. Umas tentam atravessar, outras vão para Paris, outras são levadas pela polícia para centros no sul do país”, diz Charlotte. É australiana e está há menos de um mês a fazer voluntariado com a First Aid Support Team (FAST), uma das organizações civis que prestam apoio junto dos vários acampamentos entre Calais e Dunquerque. Ela está sozinha. Daqui a pouco vão chegar outros voluntários com refeições quentes e chá.

Foi numa dessas distribuições que Rezan apareceu pela primeira vez. Usava um impermeável para se proteger da chuva e, pela facilidade com que fala inglês, aproximou-se e ofereceu-se: “eu posso ajudar”. Haveria de passar toda a tarde encostado à carrinha azul que funciona como um centro de saúde com rodas a ouvir as maleitas de dezenas de pessoas em farsi para logo em seguida as explicar a Charlotte.

“Já cá estou há umas semanas”, conta. A primeira vez que fugiu de casa foi para cruzar a fronteira do Irão para o Iraque. “Queria ir comprar uma Bíblia”, sussurra. E é para explicar porque voltou a escapar da família, que Rezan diz que tem “um problema”. Fala pausadamente, como quem mede cada uma das palavras que usa. “Vivia num país islâmico, nasci numa família muçulmana e sou cristão.” Hoje, a milhares de quilómetros, arregaça a manga do casaco e mostra a nova tatuagem que esconde a cicatriz: outra cruz.

Saiu do Irão até à Turquia, de lá foi de barco para Itália. Subiu para norte, atravessou a fronteira e entrou em França. Depois foi só chegar até à região de Calais. “Paguei €2800 para chegar ao Reino Unido. Todos os que aqui estão querem o mesmo.” Trouxe pouco consigo. A tenda que tem foi-lhe oferecida. A roupa quente e impermeável também. “Só tenho isto, nada mais.”

O acampamento de Grande-Synthe foi completamente desmantelado há pouco mais de uma semana. A polícia chegou, deu ordem de despejo e limpou tudo o que estava no chão, levou tendas e sacos de cama. “As pessoas voltam sempre. Basta alguns dias”, conta a enfermeira. Uns metros ao lado voltaram a reerguer tudo. Com resguardos de plástico, madeira e paus que apanham no mato construíram uma mercearia, uma espécie de restaurante que vende refeições a preços bem mais baixos. Hoje servem um estufado de legumes. No meio da panela gigante nem se distingue quais, mas aquela comida cumpre o seu propósito: alimenta e aquece.

Não há casas de banho ou duches. Aquecem-se em fogueiras e ficam escondidos dentro das tendas com camadas de mantas para se manterem quentes

O supermercado do outro lado da estrada é paragem diária, seja para comprar alguma comida ou simplesmente usar as casas de banho

Não há casas de banho ou duches. Aquecem-se em fogueiras e ficam escondidos dentro das tendas com camadas de mantas para se manterem quentes

O supermercado do outro lado da estrada é paragem diária, seja para comprar alguma comida ou simplesmente usar as casas de banho

O céu está tão carregado de nuvens que é quase imperceptível se está a anoitecer ou se o dia ainda vai a meio. Um grupo de rapazes que esperam por ser assistidos pela enfermeira faz conversa de circunstância e perante a presença de estranhos lançam as perguntas. Querem sobretudo falar de outros lugares que não aquele onde estão.

“Querem saber o que vimos fazer, porque estamos a ajudar, de onde e quem somos. Alguns aproximam-se só para dizer olá, oferecer comida, bolachas ou um copo de chá. São pessoas que não têm nada e a quem já foi tirado tudo e nunca saberíamos nada disso falando com eles porque não vemos esse lado”, diz Charlotte enquanto arruma o rolo das ligaduras, que usou instantes antes para fazer um penso num pé magoado.

Todos eles parecem bem mais velhos do que são. O homem de pelo menos 30 anos é afinal um rapaz que ainda nem chegou aos 20, o outro que diz ter 32 tem as rugas marcadas, cabelos brancos e uma expressão cansada. “Se vocês vivessem no Curdistão também pareciam ter 50 anos”, diz ele a sorrir.

Discretamente Rezan olha por cima do ombro. “Nem todas as pessoas aqui são boas”, avisa. “Aquelas pessoas ali são traficantes.” Um outro grupo de cinco ou seis homens que não se destaca de forma alguma dos restantes conversa animadamente. “Eles estão metidos nessas coisas.

  • Um homem protege-se do frio dentro da tenda. Ali, no inverno, as temperaturas chegam a ser negativas

  • “Eles estão metidos nessas coisas. Eles vão ter com as organizações e dizem que ficaram sem tendas e pedem mais. Depois, quando chegam famílias novas ao campo, eles cobram muito dinheiro e vendem a tenda.” Rezan pede cuidado.

Um homem protege-se do frio dentro da tenda.

Ali, no inverno, as temperaturas chegam a ser negativas

O autocarro pára junto ao supermercado. Sai o pai com uma mochila às costas, uma criança pela mão e os olhos colados ao ecrã do telemóvel. Está a ver o mapa. Em seguida, sai a mãe, outra mochila nas costas e um bebé ao colo, aguarda pelas indicações. O homem aponta em frente. Esperam que o sinal vermelho passe a verde e atravessem a estrada. Esta noite haverá pelo menos mais quatro inquilinos em Grande-Synthe.

Ao longo de toda a costa norte de França há pessoas que querem cruzar o Canal da Mancha, a maioria fixa-se entre Calais e Dunquerque. E o problema não é de agora.

É entre uma das laterais do porto de Calais e uma zona de caça que está o antigo campo de refugiados. Era conhecido como “a selva” e surgiu como uma resposta ao rápido aumento de chegadas à Europa em 2015 - chegou a alojar mais de 10 mil pessoas. O objetivo de então era o mesmo de hoje: atravessar o canal da mancha para o Reino Unido. Na altura, faziam-no pelo eurotúnel em camiões ou de comboio. Agora, o mais frequente é um traficante vender lugares numa embarcação de madeira, esperam por um dia “em que o tempo esteja melhor” e seguem. Calais e Dover, no Reino Unido, são separadas por pouco mais de 50 quilómetros de água.

A presença de migrantes na região, recorda Michäel Neuman, do centro de reflexão para a ação e assuntos humanitários dos Médicos Sem Fronteiras, “levantou algum descontentamento” na população local. “A forma como as câmaras municipais lidavam com a situação era bastante diferente”, recorda. Se em Calais estava definida uma política mais rígida, em Dunquerque o controle policial era menos intenso.

É pouco mais de um ano após a abertura do campo que o então presidente francês, François Hollande, anuncia o desmantelamento faseado, que haveria de ficar concluído em outubro de 2016. “A partir de agora os nossos objetivos são claros: garantir a segurança das pessoas de Calais, manter a ordem pública e assegurar aos migrantes e refugiados condições dignas.” Ficou assegurado que as pessoas que até então viviam na Selva - em condições várias vezes consideradas como “desumanas” pelas organizações humanitárias que ali trabalhavam - seriam realojadas noutros locais do país e em condições mais dignas. “Mas o que aconteceu não foi uma solução definitiva”, aponta Neuman.

Passaram cinco anos e diariamente continuam a chegar migrantes à região de Calais. Agora espalham-se pelas cidades em vários pequenos acampamentos que quase semanalmente são destruídos pela polícia.

Despejos na região de Calais desde janeiro de 2020

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A garrafa do óleo já está quase vazia, deve chegar só para mais uma ou duas vezes. No meio da lama cavaram um buraco, procuraram os ramos deitados ao chão pela força do vento e da chuva, atearam fogo. O crepitar do óleo na frigideira que têm ao lume começa a ouvir-se. Quando o tomate migado cai no lume, uma explosão. Pchuuuu. O homem agachado junto à fogueira limpa os olhos com as costas da mão enquanto agarra uma faca. A cebola que corta é demasiado forte e todos os que estão à sua volta viram-se para não chorarem também. Mas não se afastam porque está frio e as chamas aquecem-nos.

“Fiquem, comam connosco.” O pedido é feito com um sorriso e já depois do refogado de cebola e tomate ter levado ovos e especiarias. A recusa leva a uma nova tentativa. “Comam, isto é na lama mas é tudo muito limpinho.”

Logo ali em frente, o homem que gere a mercearia improvisada tira dos caixotes pacotes de bolachas e de pão. Amontoa-as na bancada que construiu com tábuas de madeira e expõe-nos com o mesmo cuidado de uma montra de pastelaria. “Querem alguma coisa?” O homem grande senta-se num banco por trás do balcão. “Podem levar e se não tiverem dinheiro para pagar, pagam depois. Ou levam só assim.” A rapidez com que possibilita o fiado é de quem já está habituado.

Quase ninguém tem documentos. Trazem um ou dois sacos com roupa.
É tudo o que têm

Os homens estão sempre visíveis pelo campo, andam de um lado para o outro sem destino. As mulheres e crianças resguardam-se

Quase ninguém tem documentos. Trazem um ou dois sacos com roupa.
É tudo o que têm

Os homens estão sempre visíveis pelo campo, andam de um lado para o outro sem destino. As mulheres e crianças resguardam-se

Zana já não sabe há quanto tempo não fala com a família. Tem também 22 anos. “As pessoas nunca acreditam que eu sou do Iraque”, diz com os olhos azuis celeste a rebentarem de orgulho. “Talvez seja também pelo meu cabelo louro ou pela pele clara.” Fugiu porque trabalhou como voluntário num movimento que “não defende para já” a independência do Curdistão. “Perseguiram-me e ameaçaram-me.”

O destino não sabe bem explicar por que é o Reino Unido. “Foi o que o meu traficante me disse. Mandou-me entrar num barco na Turquia, eu entrei e depois cheguei a uma terra que eu nem sabia qual era. Os meu companheiros diziam que era Itália porque tinham telemóvel e conseguiam ver isso. Eu só tenho de seguir as instruções que me deram.”

“Aqui no campo a nossa situação é muito má, mas não temos outra escolha, temos de ficar aqui até conseguirmos passar. Aqui é muito frio e quando chove a minha tenda fica inundada. Tudo só vai piorar.” Em Calais e Dunquerque, em janeiro do ano passado, as temperaturas chegaram a valores negativos.

Zana pára e faz um pedido. “Usem o meu nome, a minha voz e a minha história mas não o meu rosto. Tenho medo.” Provas de que esteve noutro país da União Europeia antes de chegar ao Reino Unido podem impedi-lo de pedir asilo em território britânico. A Convenção de Dublin, da qual Portugal também faz parte, prevê que nem sempre o pedido seja analisado pelo país onde é pedido. A ligação a outros locais pode ser argumento para, por exemplo, Zana ter o seu pedido analisado pelas autoridades francesas, considerando que esteve em França.

Uma menina de cor-de-rosa passa a correr e só pára junto ao irmão. Chegaram há dias. “Os curdos têm problemas com o Irão e estamos a fugir deles”, conta o pai da família com 57 anos. Veio com a mulher de 28 e os cinco filhos com idades entre um e oito anos.

“Não aceito que me digam que é perigoso ir para o mar. Tenho aqui comigo os meus cinco filhos, não há ninguém com mais noção do que é o perigo do que eu. Ainda assim, qualquer coisa é melhor do que aquilo que tínhamos. É o último recurso, não há mais nada. O que posso eu fazer?” Trouxe ainda um cunhado e um sobrinho. No total são nove que esperam por ir para o Reino Unido.

Renaz também estava à espera de um dia sem chuva e de mar calmo. Como não se previa que o tempo melhorasse prometeu: “Amanhã encontro-vos às 10h”. Não apareceu.

Onde está Rezan? Ninguém sabe.

  • Uma semana após a visita do Expresso, o acampamento de Grande-Synthe foi desmantelado. Ficou apenas um campo de lama vazio. Dias depois, a poucos metros, novas tendas voltaram a ser erguidas

Uma semana após a visita do Expresso, o acampamento de Grande-Synthe foi desmantelado. Ficou apenas um campo de lama vazio. Dias depois, a poucos metros, novas tendas voltaram a ser erguidas

  • II
    Os invisíveis

II
Os invisíveis

Pela esquina uma cabeça espreita ao longe o amontoado de autocarros, carrinhas e pessoas fardadas. Um homem entroncado de gorro na cabeça encosta-se ao gradeamento e observa. Nunca fixa durante muito tempo: ora olha para todo aquele aparato que está longe de ser normal, ora volta a cabeça e por cima do ombro atenta a quem se aproxima de si.

Junto aos pés calçados apenas com uns chinelos de borracha já gasta tem um saco de supermercado, que carrega consigo cada vez que muda de lugar.

- Sabem para onde estão a levar as pessoas?

Pergunta-nos quando passamos junto dele. Agora o olhar fixa-nos à espera de resposta. Explicamos-lhe que apenas sabemos que a polícia está ali a tirar as pessoas da Selva.

- Eu sei, mas para onde vão os autocarros? Eu quero que me levem daqui.

Os primeiros dias de outubro em Calais são quase tão frios como o começo do inverno em Lisboa. Há menos sol e bem mais chuva.

- Eu queria ir para um alojamento, queria ir para um sítio quente mas não sei para onde vão levar as pessoas. Se forem para Boulogne, eu quero ir nos autocarros.

Se o destino for outro, conta, prefere ficar onde está. Boulogne-sur-Mer é uma cidade costeira também no norte de França, a não muitos quilómetros de Calais. Antes de lá chegar existe uma zona de grandes dunas onde muitos barcos saem sorrateiramente ao começo do dia em direção ao Reino Unido.

O homem de gorro, que tal como quase todos em Calais desconfia e não diz o nome, tem 41 anos. Fugiu do Irão. “Quer dizer sou do Curdistão, mas isso não vem no mapa”, corrige.

O trânsito foi cortado, ninguém passa nas estradas junto ao centro hospitalar. Num raio de 500 metros todas as bermas estão cheias de carrinhas e carros da polícia carregados com homens fardados e armados, preparados para agir a qualquer momento.

  • A polícia chega ainda antes do dia nascer. Ninguém é avisado de que o despejo vai acontecer

A polícia chega ainda antes do dia nascer. Ninguém é avisado de que o despejo vai acontecer

  • Quem é levado passa uma ou duas noites em alojamentos pagos pelo Estado francês. Outros são encaminhados para centros no sul do país. Grande parte regressa ao acampamento pouco depois

Quem é levado passa uma ou duas noites em alojamentos pagos pelo Estado francês. Outros são encaminhados para centros no sul do país. Grande parte regressa ao acampamento pouco depois

Junto ao hospital de Calais concentra-se o maior grupo de migrantes, cerca de mil. Quem não resiste é levado para autocarros, depois começa a pressão aos que não querem sair tão facilmente. Por fim, a força. Uns vão a tempo de guardar os que lhes pertencia, outros não. Outros tantos fugiram.

Na fileira de moradias creme com um pequeno pátio de cimento à porta não há ninguém. Mesmo com polícias e autocarros, quem ali mora prefere fingir que nada está a acontecer. Um homem de meia idade sai para pôr o lixo. Pára a olhar para o gigante descampado que tem à frente de sua casa e onde há anos foi montado um acampamento. “Eles estão lá mais para o fundo, metem-se no mato.” Tem uns 50 anos. “Não posso dizer nada. O que vou dizer? A polícia está a fazer o trabalho dela mas os refugiados que estão a viver ali também não estão a fazer mal a ninguém. A mim não me incomodam.” Fica em silêncio mais um pouco. Deseja um bom dia, vira costas e volta a entrar em casa.

A operação de despejo leva todo o dia. Os autocarros vão embora, alguma polícia também. Depois chegam as máquinas: alisam terra, derrubam árvores e arbustos. No meio as ervas arrancadas do chão, um sapato ou pedaço de tecido, os restos de uma refeição ou um saco de cama. O que ficou para trás, esquecido ou porque não houve tempo de pegar, é destruído.

ACAMPAMENTOS COM MAIOR POPULAÇÃO EM CALAIS

A prática mais recente é um despejo a cada 48 horas, denunciam as ONG que trabalham no local. A polícia nacional francesa e a prefeitura de Calais negaram os pedidos de entrevista do Expresso sobre esta matéria.

Está novamente a chover, continua a fazer muito frio e o terreno que até então era um campo de refugiados e migrantes improvisado é posto à venda. Um grande placard com um número de telefone denuncia as intenções.

“Sabem o que me impressiona mesmo?” É no meio da viagem silenciosa de Calais para Grande-Synthe que a enfermeira Charlotte deixa a voz tremer. “ É que lhes destroem tudo e no dia seguinte os refugiados estão no mesmo sítio e levantam o campo outra vez. São as pessoas mais resilientes que já conheci. Há despejos todas as semanas, em diferentes sítios.”

- Doutora, doutora.

Uma voz pede socorro.

- Há ali um homem quase morto.

Charlotte é encaminhada até uma tenda fechada, corre o fecho e espreita. Do outro lado, uma voz moribunda responde lentamente a cada pergunta, arregaça as calças até ao joelho. As feridas nas pernas infetaram e a infeção já se espalhou pelo corpo. “São aquilo a que chamamos de feridas da selva, causadas por cortes, arranhões ou picadas de insectos que pioram e infetam. Tornam-se úlceras, parecem crateras nas pernas, que cicatrizam da forma errada.” Todos os dias Charlotte limpa, desinfeta e faz pensos nas pernas e nos pés de quem vive nos campos, nunca antes tinha visto uma situação tão grave. É frequente encontrar pessoas com pedaços de pele podre ou morta.

“Há sempre muitas pessoas constipadas e com tosse. Mas encontramos muito uma lesão que se chama pé de trincheira, que era uma doença tipicamente dos soldados que estavam nas trincheiras na 2ª Guerra Mundial. “É terrível porque não estão a viver em trincheiras mas os seus pés estão constantemente molhados.”

Pede-lhe ‘bombons’. São uns rebuçados de mentol que pouco curam a garganta irritada mas é o remédio que mais querem. “Já acabaram, já não há mais bombons”, anuncia Charlotte poucos minutos depois de ter chegado ao “velho Lidl”, um novo ponto de distribuição de encontro para a distribuição de bens essenciais por parte das ONG.

  • Charlotte está como voluntária há seis semanas

Charlotte está como voluntária há seis semanas

  • A Calais Food Collective distribui cestas com polpa de tomate, cebolas, batatas, feijão, óleo, café e chá. Por vezes, há fruta e legumes frescos. Com sorte, também especiarias

  • Louis Woodhead também é voluntário. Está com uma ONG que assegura água e comida aos migrantes

Louis Woodhead também é voluntário. Está com uma ONG que assegura água e comida aos migrantes

A Calais Food Collective distribui cestas com polpa de tomate, cebolas, batatas, feijão, óleo, café e chá. Por vezes, há fruta e legumes frescos. Com sorte, também especiarias

“Põe-te no caralho.” A ordem é dada por um militar da Companhias Republicanas de Segurança (CRS), um ramo da polícia nacional francesa especializada na manutenção da ordem pública. Desta vez chegaram ao ponto de distribuição ainda antes das organizações. Charlotte volta para o carro. “Vou telefonar a outros voluntários para saber se também vêm para cá. Não quero arranjar problemas e preciso de ter a certeza que é seguro estar aqui”, explica. Do outro lado do telefone dizem-lhe que há voluntários a caminho.

“Estão sempre nos locais onde vamos, por vezes há problemas e obrigam-nos a sair, outras acabamos em trocas de palavras mais violentas. Às vezes somos apenas surpreendidos por multas”, conta enquanto volta a montar o pequeno centro de saúde na bagageira da carrinha.

O sudanês de camisola polar e pés descalços que quando abre os braços consegue agarrar três homens ao mesmo tempo traz um pé inchado para ser visto pela enfermeira. Espera até que a fila termine e só no final se senta na cadeira, tira o sapato e a meia. “Foi a polícia.” Ele é um dos que fugiu no despejo. “E quando me apanharam, bateram-me.”

A polícia está sempre presente por toda a cidade. As patrulhas de carrinhas com pelo menos quatro ou cinco agentes são constantes, sobretudo junto dos locais dos acampamentos. “Dificultam o nosso trabalho naquilo que podem”, sublinha Louis Woodhead, britânico de 26 anos e voluntário da Calais Food Collective. Tanques de água destruídos ou pedregulhos no meio da estrada para bloquear o acesso das carrinhas de distribuição aos acampamentos são algumas das estratégias mais recorrentes.

Bens como água, comida, cuidados básicos de saúde ou até energia para carregar as baterias dos telemóveis são assegurados por várias ONG. A Calais Food Collective entrega a “cada dois ou três dias” centenas de cabazes com ingredientes que permitem cozinhar algumas refeições. “Isto traz uma série de benefícios para a saúde mental e até a nível comunitário, dando ainda uma sensação de empoderamento em vez de dependerem exclusivamente da distribuição de comida”, defende Louis.

É num armazém gigante - cuja localização pedem que não seja revelada por razões de segurança - que têm quilos de enlatados e embalagens empilhadas. Guardam tudo ali, num espaço que é partilhado com mais uma série de outras organizações e associações. Também quem chega para ajudar funciona numa comunidade muito fechada e, por vezes, desconfiada com os estranhos.

Os voluntários abrem a bagageira da carrinha e tiram um gerador e dezenas de tomadas. Depois da comida o que as pessoas mais querem é carregar os telemóveis

Ligam para casa e falam com a família. Telefonam aos amigos e conhecidos que já chegaram ao Reino Unido. Vêem futebol, fazem scroll nas redes sociais

  • Ao contrário de Grande-Synthe, no centro de Calais não se encontram mulheres ou crianças

  • Ali concentram-se os homens que viajam sozinhos. Quase todos fugiram de países da África Subsariana

Ao contrário de que Grande-Synthe, no centro de Calais não se encontram mulheres ou crianças

Ali concentram-se os homens que viajam sozinhos. Quase todos fugiram de países da África Subsariana

  • Há também uma grande comunidade de eritreus, que não se misturam e têm o seu próprio acampamento mais afastado

  • A maioria são sudaneses

A maioria são sudaneses

Há também uma grande comunidade de eritreus, que não se misturam e têm o seu próprio acampamento mais afastado

Na região de Calais já não há campos de refugiados. “O que mudou é que agora não existe nenhum espaço específico e têm de mudar de local sistematicamente por causa da polícia”, explica Michäel Neuman, investigador dos Médicos Sem Fronteiras.

“O que está a acontecer não é a natureza humana, é o resultado de uma política de invisibilização que acelera as tensões entre a população e os migrantes”, insiste. O relato que faz dos tempos em que toda a Europa olhava para Calais pouco muda daquilo que hoje se encontra: reduzido acesso a água e saneamento, sistema de alimentação inteiramente suportado por voluntários e constante intimidação por parte das autoridades francesas.

“Tudo aqui foi feito para não correr bem. Não há soluções permanentes. Há dias lia um artigo em que um historiador usava a expressão ‘o eterno temporário' e acho que é a melhor forma para falar de Calais.”

  • III
    Cada uma destas pessoas é uma crise

III
Cada uma destas pessoas é uma crise

O irmão mais novo de Zana já conseguiu passar no Canal da Mancha. Aqui há dias falaram por chamada. Zana pediu um telemóvel emprestado. Sabe que o irmão está bem e tem a certeza que dentro de pouco tempo também será a sua vez. “Tenho que ir para lá para trabalhar e estudar.” Quer ser engenheiro civil.

“Eu também vou e também vai correr tudo bem.” Parece que ele precisa de se convencer que vai mesmo tudo correr bem. “Sei que é perigoso mas tenho de ir.”

Da costa norte de França até Dover, no Reino Unido e o principal ponto de desembarque, são cerca de 50 quilómetros. Com sorte, conseguem fazer a viagem em algumas horas. Com azar não chegam ao destino. “Um das ironias é que sugerimos que o que os migrantes estão a fazer para entrar é clandestino e, ao mesmo tempo, fazem-no da forma menos clandestina possível porque está à vista de todos”, diz Steve Symonds, diretor para a área dos refugiados e direitos dos migrantes da Amnistia Internacional britânica.

Os barcos saem quase sempre pela madrugada. Podem levar algumas dezenas de pessoas que pagaram centenas de euros por um lugar. Quanto mais deserta e menos patrulhada for a praia, melhor. Nos campos as pessoas não se comprometem com datas, esperam apenas por indicações dos traficantes. Hão-de receber informação do dia, hora e local. “O tempo não está bom”, argumentam. “Mais uns dias e vamos.” A resposta é sempre muito pouco concreta.

“Fazem-nos acreditar [o Governo e os media britânicos] que estamos perante alguma crise nacional, que estamos a ser invadidos”, continua o ativista, considerando que do seu lado da fronteira “há uma resposta muito manipulada a algo que é bastante vísivel”. “Até agora estas chegadas não aumentaram em nada o número de pedidos de asilo. É inegável que o número de pessoas que atravessam o canal de barco aumentou nos últimos anos. Antes faziam-no de outras formas. É uma crise no sentido em que cada pessoa que se vê encurralada no norte de França está em crise. Não é uma crise para o Reino Unido.”

Todas as entradas para o porto de Calais estão protegidas com arame farpado, o patrulhamento junto às vedações é constante

Em tempos era o principal ponto de acesso aos contentores dos navios e às cargas dos camiões. Escondiam-se e esperavam chegar em segurança ao Reino Unido sem serem apanhados

Todas as entradas para o porto de Calais estão protegidas com arame farpado, o patrulhamento junto às vedações é constante

Em tempos era o principal ponto de acesso aos contentores dos navios e às cargas dos camiões. Escondiam-se e esperavam chegar em segurança ao Reino Unido sem serem apanhados

Uma nova legislação foi recentemente discutida no Parlamento britânico para controlar o fluxo de entradas de migrantes no país. Entre várias outras medidas, estava previsto que o Ministério do Interior tivesse autoridade para reenviar alguém que ali pedisse asilo caso fosse provado que a pessoa em causa tinha ligação a outros países. Nesta situação em particular, por exemplo, qualquer pessoa que atravesse o Canal da Mancha numa embarcação podia ser devolvida a França sob o argumento de que os migrantes já deviam ter feito aí o pedido de proteção internacional.

“Claro que esta medida tem um grande impacto direto nas pessoas na região de Calais, porque ninguém chega ao Reino Unido sem passar por outro país”, explica Steve Symond. Na prática, isto já podia acontecer devido ao tratado de Dublin, assinado pelos estados-membros da União Europeia, mas o Brexit deixou os britânicos sem este mecanismo e, a nível interno, o Governo quis ter uma resposta.

Mas havia mais: as pessoas que viessem a ter o pedido de asilo aceite, teriam diferentes formas de tratamento consoante como entraram no Reino Unido. Se chegassem sem permissão prévia nem viessem imediatamente do sítio de onde fugiram - o que representa a larga maioria das pessoas no sistema de asilo - passavam a estar numa categoria inferior e com menos direitos. Só quem chegasse com um visto e pedisse posteriormente proteção manteria os mesmo direitos que atualmente estão previstos.

“Não estou a dizer que há uma correlação direta entre estas alterações e o aumento das travessias, mas a informação - boa ou má - difunde-se com rapidez. As pessoas que estão em Calais têm noção que as coisas estão mais difíceis no Reino Unido. Tenho a certeza que sabem que há mudanças a acontecer e quem se aproveita delas para fazer dinheiro também faz questão de mostrar para as aliciar a ir o mais depressa possível”, acrescentava Steve Symond, quando em setembro o projeto de lei foi aprovado. “A política de migração e asilo no Reino Unido não é feita a pensar nas necessidades das pessoas, tem o objetivo somente de dissuadir qualquer outra pessoa que esteja a pensar em vir.”

Agora, em abril deste ano, a poucos dias de o documento seguir para revisão legal, o Governo britânico travou tudo. A responsabilidade do patrulhamento do Canal da Mancha será agora da Marinha, deixando de estar a cargo do Departamento do Interior.

Há sempre um amigo ou familiar que já fez o caminho, histórias de sucesso que mantêm a esperança de quem continua a arriscar. E depois há também as más experiências largamente documentadas em países como Grécia, Croácia, Hungria, Polónia ou Itália. Ali esperam encontrar “um lugar que é Europa, mas não é bem Europa”.

“Posso imaginar que a maioria das pessoas que estão no sul de França seja sudaneses, curdos do Irão, Iraque, Síria e Turquia, bem como alguns Eritreus. Estou correto?” Ele está certo. Qualquer uma destas nacionalidades tem no Reino Unido uma maior probabilidade de ter o pedido de asilo aceite. Apenas os iraquianos são exceção.

Zana é dos que vai ter mais dificuldade. O irmão que já atravessou ainda aguarda por uma decisão.

TAXA DE ACEITAÇÃO DE PEDIDOS DE ASILO
Comparação entre a média de taxa de aceitação de pedidos de asilo na Europa com a taxa de aceitação no Reino Unido (UK) por país de origem



Quem alcança a outra margem de uma ilha que já foi parte de uma União a vinte oito é acolhido em alojamentos temporários, pensões ou hotéis pago pelo Estado britânico. Outras pessoas são levadas para centros de detenção. “Embora não estejam presas ou impedidas de sair, são zonas em que não há mais nada à volta e acabam por ficar isoladas”, denuncia a Amnistia Internacional. É um outro tipo de prisão.

Deste lado da margem, em Calais, O tempo está melhor. Não há chuva e o mar parece calmo. Os barcos vão voltar a sair.

  • Em 2021 triplicou o número de pessoas que morreu a atravessar o Canal da Mancha

  • Morreram 49 homens,
    mulheres e crianças

  • Todos os dias continuam a chegar a Calais dezenas de pessoas

Em 2021 triplicou o número de pessoas que morreu a atravessar o Canal da Mancha

Morreram 49 homens, mulheres e crianças

Todos os dias continuam a chegar a Calais dezenas de pessoas

O Expresso esteve em Calais em outubro de 2021


Créditos

Texto de Marta Gonçalves   |   Fotografia de José Fernandes
Design de Mário Henriques   |   Webdevelopment de João Melancia
Infografia de Sofia Miguel Rosa   |   Edição de vídeo de Tiago Pereira Santos
Coordenação de Joana Beleza e Pedro Cordeiro   |   Direção de João Vieira Pereira

Texto de Marta Gonçalves
Fotografia de José Fernandes
Design de Mário Henriques
Webdevelopment de João Melancia
Infografia de Sofia Miguel Rosa
Edição de vídeo de Tiago Pereira Santos
Coordenação de Joana Beleza
e Pedro Cordeiro
Direção de João Vieira Pereira

Expresso 2022


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