Francisco queria explicar que não estava a ter uma overdose mas não conseguia falar. Também não se conseguia mexer, só uma das mãos e mal, e os dedos ainda menos. Mesmo assim conseguiu agarrar numa pedra que estava ali perto. “Peguei nela e desenhei um charro no chão. Queria que eles percebessem que eu só tinha fumado uma ganza.” Custou, tudo lhe doía, as lágrimas não ajudavam, mas os bombeiros acabaram por perceber: ao fim de alguns minutos estava a caminho do hospital.
Dias antes deste episódio entrara em vigor um regime especial criado pelo Governo que determinava a libertação de reclusos de modo a criar espaço nas prisões e, assim, evitar surtos de covid-19. Foi a 14 de abril, quando faltavam seis dias para acabar de cumprir a pena, que Francisco Fonseca, 48 anos e nascido em Angola, soube que ia ser libertado. Os técnicos da prisão perguntaram-lhe se tinha para onde ir e com quem ficar, quem o ajudar, e Francisco disse que sim. Estava a mentir. “Saí da prisão às seis e tal da tarde, sem dinheiro no bolso, sem nada. Sentia-me desesperado porque não sabia para onde ir”, conta sentado à mesa de uma sala na associação O Companheiro, que apoia reclusos e ex-reclusos. Dormiu na rua duas noites e na terceira decidiu ir a casa de um amigo que conheceu na prisão. Fumaram, “mas só uma ganza”. Beberam uns copos, poucos, mas “só cerveja”. Depois apanhou um autocarro e foi durante essa viagem que se sentiu mal.
“Comecei a sentir o corpo a desligar, a desmaiar. A cabeça estava bem mas o corpo não, não tinha controlo sobre ele, comecei a perder as forças, a transpirar, a transpirar, a transpirar”, conta Francisco. Pediu ao motorista para chamar uma ambulância porque não se estava a sentir bem, mas ele não acreditou e obrigou-o a sair do autocarro na última paragem - ameaçou, aliás, que chamava a polícia se não o fizesse. Francisco obedeceu, tinha de ser. Saiu, deu uns passos e caiu no chão. Nesse momento o motorista acabou mesmo por telefonar para o 112. Já não dava para acreditar que alguém fingisse assim tão bem estar tão mal.
As associações que falaram com o Expresso explicaram que é prática comum no processo de reintegração de ex-reclusos não divulgar os crimes pelos quais as pessoas foram condenadas, seja em contexto laboral, seja habitacional. O Expresso decidiu seguir esse exemplo em três dos quatro casos apresentados: uma das pessoas quis que o seu crime fosse divulgado, mas não o nome
Lá dentro, Rui não largava o rádio que tinha na cela. Cá fora, foi surpreendido pelo vírus na mesma: “Eu sabia da pandemia mas não tinha noção do problema. Podiam ter-me dito que podia sair descansado, que havia autocarros de graça, que isto e aquilo, mas não, não me disseram nada.” Tem 53 anos, foi libertado da prisão de Caixas em abril: saiu sem dinheiro, era fim de semana, os bancos estavam fechados. Dirigiu-se à sua antiga casa em Mafra, viu-a ocupada por outras pessoas. Também ficou sem saber para onde ir.
Pedir ajuda aos mais próximos não era uma hipótese. A família não sabia que tinha sido libertado. Aliás, não sabia sequer que tinha estado preso: Rui passou os 15 anos anteriores à sua detenção em França e a família acha que ainda está lá. Se não contou a verdade “não foi por vergonha”. “Não tenho vergonha de nada, só não quis dizer que estava preso por uma coisa que eu não fiz.” Não é bem uma resposta, ele insiste que é. “Você gostava de estar presa por uma coisa que não fez? Não, pois não? Pronto, eu também não.” Em França, como em Espanha e na Alemanha, trabalhava com gruas.
Gosta tanto de alturas que quando lhe foi mostrada a cela onde iria ficar, em Caxias, pediu para ficar no beliche de cima. Dividia o espaço com “outras sete pessoas” e passava o tempo entre a televisão e o rádio e a cama. “Ou dormia ou via notícias. Também jogava dominó com a malta que estava lá a trabalhar. Se tivesse bom tempo ia lá fora andar um bocadinho.” Do muro da prisão via a ponte 25 de Abril e via o rio, a paisagem confortava-o. Não recebia visitas mas isso também não o incomodava muito. “Foi decisão minha porque quis que a minha filha pensasse que eu estava lá fora a trabalhar. E quando eu tomo uma decisão nunca volto atrás com a minha palavra. O início e o meio das coisas são para mim quase o mesmo porque assim que começo já estou no meio e depois estou no fim. É a minha forma de estar na vida, de ser útil.” Além disso, “mais fácil às vezes é mesmo não ter visitas porque os reclusos queixam-se de que ou não chegaram a horas ou não trouxeram o que eles queriam, assim ao menos não há nada, é menos um problema para mim”. Nesses momentos ficava com outro recluso, “o que menos visitas recebia de toda a prisão”, e quando precisava de alguma coisa os guardas davam-lhe. Um chegou a dar-lhe um par de chinelos de plástico quando os seus se estragaram.
Um caminho de pedra estreito e incerto anuncia a chegada ao lugar do Fojo, a poucos quilómetros de Cucujães, Oliveira de Azeméis. O portão da casa está fechado e Elisabete está do lado de dentro, à espreita. É outra das pessoas que saíram da prisão através do regime excecional. Não pode avançar para lá do portão. “Estou a cumprir tudo como manda a lei. Não saio nem para pôr o lixo.”
Está na casa da mãe, tem 43 anos e desde setembro de 2016 que cumpria uma pena de sete anos e meio no Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo. A pandemia aumentou a incerteza, a notícia da libertação de reclusos duplicou-a. Ela e várias outras reclusas preenchiam os requisitos. Elisabete já tinha tido dez saídas precárias e todos os relatórios de comportamento eram positivos. “Sofremos bastante. A diretora perguntou-nos se queríamos ir para casa mas depois foi tudo muito confuso. Um dia diziam uma coisa, no outro parecia que nos tiravam o tapete dos pés. Algumas guardas faziam pressão psicológica. Diziam ‘vocês pensam que a cadeia vai ficar vazia, que se vão embora’.” Esteve quase um mês sem saber. Ouvia as notícias, vais sair, não vais sair, é amanhã, é para a semana. E o seu advogado sem novidades. “Só me dizia para ter calma, que tinha tudo favorável para sair mas que ia depender de várias coisas.”
Num sábado finalmente aconteceu. “Não nos disseram que tínhamos de sair imediatamente, deram-nos até ao dia seguinte. Mas eu já tinha tudo arrumado e preparado, portanto saí logo.” Seriam 45 dias em liberdade que podiam ser renovados se cumprisse as obrigações e não saísse da residência. Elisabete precisa urgentemente de arranjar trabalho: o divórcio tirou-lhe a casa e o carro, deu-lhe uma dívida de 20 mil euros, tem de começar a pagá-la e ajudar a mãe com as despesas. A urgência é grande, o confinamento e a crise financeira trocaram-lhe as voltas. A 27 de setembro cumpriu cinco sextos da pena: ficou em liberdade condicional, mas sente que o processo podia ter avançado mais cedo. A audiência chegou a estar marcada para maio mas foi adiada devido à covid-19. “Antes da pandemia já tinha muitas precárias, inclusive com o RAI [regime aberto para o interior]. Por tão pouco tempo já me podiam ter dado a liberdade condicional, senão como é que me vou reintegrar na sociedade?”
Devido à pandemia saíram das prisões mais de 2000 reclusos. Estas saídas aconteceram no âmbito do regime excecional de libertação de presos criado pelo Governo (lei n.º 9/2020, de 10 de abril) e dividiram-se em quatro categorias: perdões parciais da pena para quem tivesse sido condenado a dois ou menos ou estivesse a dois ou menos anos de terminar a pena, com exceção de alguns crimes (homicídio, violência doméstica, crimes sexuais, entre outros); autorizações para saídas administrativas, as chamadas “saídas precárias”, que nestas circunstâncias foram de 45 dias; antecipação da liberdade condicional; e indultos presidenciais.
Ao Expresso, o Ministério da Justiça e a DGRSP fazem um balanço “positivo” da aplicação do regime de flexibilização de penas. Apoiam-se no facto de as taxas de reincidência terem sido baixas: dos reclusos que viram as penas perdoadas, 70 regressaram à prisão na sequência de novos crimes. Também regressaram 84 dos reclusos a quem havia sido concedida licença administrativa, por incumprimento das regras. Além destes, 11 não consentiram que a licença fosse renovada, e 14 não viram a sua licença ser renovada porque receberam um parecer desfavorável por parte dos serviços prisionais. Mais: 11 regressaram voluntariamente aos estabelecimentos prisionais. O Expresso não conseguiu localizar nenhuma destas 11 pessoas.
Rui e Francisco foram acolhidos pela associação O Companheiro, que os encaminhou para os bungalows que havia reservado no parque de campismo de Monsanto, depois de negociações com juntas de freguesia e a Câmara de Lisboa. “Lembro-me de estar a ver na televisão que algumas unidades hoteleiras se tinham oferecido para acolher profissionais de saúde e pensei ‘porque é que não fazemos o mesmo com os ex-reclusos?’”, conta José Brites, presidente desta associação fundada em 1987. Nessa altura já se sabia que iriam ser libertados vários reclusos e que muitos deles não teriam para onde ir. A própria residência da associação já estava lotada. Falou com o presidente da Junta de Freguesia de Benfica no sentido de “encontrar um lugar para receber temporariamente os reclusos recém-libertados até as coisas se estabilizarem” e foi aí que surgiu a ideia de Monsanto.
Havia espaço no parque para 40 pessoas mas em nenhum momento estiveram mais de 20. Porquê? “Provavelmente os restantes reclusos encontraram uma estrutura e conseguiram seguir o seu caminho. Nós demos a cobertura, mas se as pessoas não pediram ajuda ficamos felizes porque acreditamos que a família, os amigos no bairro onde vivem, deram esse apoio.” E que assim tenha acontecido também não o surpreende, uma vez que “muitos antigos reclusos, depois de terem estado presos, a última coisa que querem é ser institucionalizados de novo”. “Vêm famintos de liberdade e para regras já bastou a prisão.”
“Situações de emergência obrigam a respostas de emergência”, continua José Brites, e por isso a avaliação que faz do processo de libertação dos reclusos em contexto de pandemia é “positiva”. Admite, contudo, que houve falhas. “Muitos deles mentiram e disseram aos técnicos que tinham uma estrutura de apoio cá fora quando não tinham. Só assim podiam sair da prisão.” Por norma a saída implica que sejam apresentadas “provas eficazes de que o recluso tem quem o apoie no exterior” mas não houve tempo para isso. Assim que entrou em vigor o regime excecional de libertação de presos, a 11 de abril, os reclusos tiveram de abandonar os estabelecimentos prisionais onde se encontravam detidos.
Com a flexibilização das penas, o Governo quis evitar os contágios nas prisões nacionais e diminuir o problema da superlotação crónica na maioria delas. A ideia era boa mas não parece ter sido bem executada. Pouco passava da meia-noite quando Francisco Chaves, presidente da Desafio Jovem, que dá apoio a pessoas com problemas de dependência e comportamentos aditivos, incluindo dentro das prisões, recebeu uma chamada: era suposto ir buscar um desses reclusos para acolher na instituição. Recusou-se a fazê-lo. “Era domingo e não eram horas de ir buscar alguém.” Além disso, se o fizesse “estaria a violar as normas da Direção-Geral da Saúde”, que “obrigam à apresentação de um teste negativo para a covid-19 e de uma declaração a consentir a quarentena por parte dos que pretendem integrar a comunidade”. “Como temos uma residência e pessoas internadas, e sendo a instituição um misto de lar, escola e creche, temos de ter todos os cuidados de modo a proteger e salvaguardar o estado de saúde dos nossos residentes e a própria equipa”, justifica também.
Mais tarde, Francisco Chaves viria a saber que esse recluso acabara por passar a noite na rua, “sentado num banco de jardim em frente à prisão”. “Um guarda que o conhecia deu-lhe comida durante a noite.” Só na segunda-feira seguinte, já com os serviços administrativos abertos, “pôde ir levantar o resto dos seus pertences à prisão e o dinheiro que supostamente teria”, tendo sido, julga Francisco Chaves, acolhido depois por outra associação. Francisco Chaves lembra-se também de ter visto nas notícias que outro ex-recluso fora libertado “apenas com 60 cêntimos no bolso e a uma segunda-feira de manhã”, o que o leva a perguntar: “Uma pessoa está cinco, seis, sete anos na prisão e depois sai sem ter apoio familiar. É suposto fazer o quê?”.
E, como esse, tantos outros. “Houve um boom de saídas da prisão nesse célebre fim de semana de 11 e 12 de abril. De repente foram colocados nas ruas não sei quantos reclusos sem ter havido articulação com as diferentes instituições. Foi caótico.” A partir do momento em “que é dada ordem de libertação por parte do tribunal, os reclusos têm mesmo de ser libertados, mesmo que essa ordem chegue à prisão, via fax ou e-mail, às onze e meia da noite”. “É fazer as malas e sair, e mesmo que peça para dormir e sair no dia seguinte, ou esperar pela família, vão dizer-lhe que não, que tem de sair imediatamente, e o se recluso não obedecer o guarda vai buscá-lo e tirá-lo da prisão, nem que tenha de arrastá-lo até à porta”, diz também Francisco Chaves, cuja instituição tinha acolhido, até finais de junho, um dos ex-reclusos libertados no contexto da pandemia. O responsável defende que muitos problemas se teriam evitado se “os juízes, ao dar seguimento ao despacho, determinassem um dia específico para a saída”. “Tenho a certeza de que se isto tivesse sido feito o recluso que nos pediram para ir buscar não teria ficado na rua.”
José Brites diz que, em alguns casos, “poderia ter havido um acompanhamento mais específico”. Dá o exemplo de reclusos que estavam a fazer determinado tratamento quando foram libertados da prisão e “trouxeram dois ou três medicamentos” mas depois ficaram sem acesso à medicação. Noutros casos, diz, “foram interrompidos programas de substituição de metadona”.
Uma notícia publicada pela Lusa a 14 de abril dava conta disso mesmo. “Nos últimos dias, praticamente diariamente têm chegado pessoas que vêm das prisões e que são postas em liberdade em situações de muita vulnerabilidade, em termos sociais e também de consumos”, dizia Hugo Faria, coordenador de uma dessas unidades móveis, em declarações à agência de notícias. São pessoas, acrescentava, que tinham consumos dentros da prisão ou estavam inseridas em programas de metadona nos estabelecimentos prisionais e que saíram sem qualquer apoio social.
Também à Unidade de Emergência da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), instalada perto do Cais do Sodré, chegou pelo menos um caso assim, de um ex-recluso que estava a fazer hemodiálise três vezes por semana e que quando foi libertado ficou sem acesso ao tratamento. “Era a prisão que assegurava esse tratamento e seria necessário ter dado continuidade ao mesmo”, diz ao Expresso Marisa Melo, assistente social na instituição. Garante, contudo, que foi dada “assistência imediata”. “A pessoa recorreu e nós agilizámos para que não ficasse sem tratamento.”
Outros 32 ex-reclusos, libertados no contexto da pandemia, recorreram àquela unidade em busca de comida e alojamento entre 14 de abril e 7 de maio. Um número que não só Marisa Melo como também Celeste Brissos, diretora da unidade, consideram excecional. “Posso dizer que nunca tivemos um boom assim desde que aqui estamos”, diz Marisa Melo. “Não, nem pensar, um boom assim não, nunca aconteceu”, acrescenta Celeste Brissos, concordando que a “libertação repentina, dada a entrada em vigor da lei com efeitos imediatos, fez com que as pessoas se vissem desprovidas da resposta normal e recorressem em situação de emergência”. Por resposta normal entenda-se Casa de Transição, residência da SCML onde são acolhidos ex-reclusos e criada no âmbito de um protocolo assinado com a DGRSP.
Marisa Melo admite que não houve qualquer contacto por parte da DGRSP mas Celeste Brissos apressa-se a garantir que ninguém saiu da Unidade de Emergência “sem ser alojado”. Dos 33 ex-reclusos que lhes bateram à porta, 12 foram alojados em hostels, nove voltaram para junto das suas famílias, depois de se ter percebido que a rede familiar não se tinha ainda desfeito por completo, e os restantes alugaram quartos com o dinheiro que lhes sobrou da prisão e a ajuda financeira da SCML. Que ajuda financeira é essa? É difícil responder porque “varia”. “Temos de olhar para a pessoa e avaliar a sua situação e perceber as suas necessidades específicas. Não somos a segurança social, somos ação social, e não há um apoio standard, há um apoio ajustado às necessidades”, explica Marisa Melo.
Uma fonte de outra instituição que acompanhou de perto o processo de libertação dos reclusos descreve-o com menos pruridos. “Saíram ao calhas. Foram libertados de um momento para o outro, foi uma desorganização, foi tudo feito à pressa. Abriram-se simplesmente as portas da prisão e os reclusos foram deixados ao deus-dará, sem dinheiro, sem habitação e sem terem para onde ir.” E a verdade é que, pelo menos durante algum tempo, vários destes ex-reclusos foram vistos a viver na rua. Celestino Cunha, da Comunidade Vida e Paz, que apoia pessoas em situação de exclusão, nomeadamente através da distribuição de comida nas ruas de Lisboa, diz ter encontrado “entre 20 a 30” ex-reclusos nas suas rondas pela cidade. “Logo depois de ter sido anunciada a libertação começámos a encontrar mais antigos reclusos. Diziam-nos que tinham acabado de sair da prisão e que não tinham para onde ir, que tinham dito na prisão que sim, que tinham onde ficar, porque tudo o que queriam era sair, mas na verdade não tinham.”
A ideia que dá “é que nada disso foi bem averiguado, que se tratou de uma medida administrativa que não foi propriamente validada”. “Foi essa a ideia com que fiquei ao falar com pessoas na rua. Disseram-me que não tinham onde dormir e o que comer. Estavam numa situação de grande vulnerabilidade”, explica Celestino Cunha. Estavam também “surpreendidos com o que eles próprios tinham encontrado na rua”. “Diziam que não era bem aquilo de que estavam à espera de encontrar, que a situação estava mais complicada do que tinham julgado, porque naquela altura já havia mais gente do que o normal a pedir comida nas ruas por causa da pandemia [o que levou, aliás, a associação a duplicar o número de refeições entregues]”. Com o tempo o coordenador deixou de os ver e supõe que pelo menos alguns deles tenham ido para os centros de acolhimento de emergência para sem-abrigo que a Câmara de Lisboa criou, nomeadamente o do Pavilhão Municipal Casal Vistoso.
No Grande Porto, as equipas de rua e os gestores de caso do Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem Abrigo (NPISA) tiveram conhecimento de 30 ex-reclusos nesta situação. Fernando Paulo, vereador da Câmara e coordenador do NPISA no distrito, lamenta que todo o processo tenha sido “atabalhoado”. Destas 30 pessoas, 12 foram referenciadas e acompanhadas pelo Centro Distrital do Instituto da Segurança Social (ISS) entre os dias 12 e 17 de abril, “o período mais crítico porque súbito”, diz o ISS. “Aqueles que se encontravam sem retaguarda familiar ou sem condições económicas que lhes permitissem subsistir foram acolhidos em centros de alojamento social, pensões ou quartos arrendados. As refeições foram asseguradas através das cantinas sociais ou de apoios económicos atribuídos”, explica a instituição. Destes 12, quatro foram encaminhados para o distrito de onde eram naturais, cinco continuaram a ser acompanhados pelo NPISA e três recusaram qualquer apoio.
Em abril, a ministra da Justiça revelou no Parlamento que as saídas administrativas estavam previstas para 1253 reclusos. Acabaram por sair, nessa primeira fase, 691. “Foi tudo feito com muito pouco critério e em alguns casos com uma injustiça atroz. Há decisões completamente absurdas”, lamenta Gil Balsemão, advogado e membro do Conselho Consultivo da Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso (APAR).
“A partir da terceira semana não saiu mais ninguém. Foi uma lotaria sem explicação.” Eventualmente as respostas negativas da DGRSP começaram a chegar. “Vi decisões que não apresentavam qualquer justificação e outras em que o parecer negativo era justificado sem fundamento jurídico. Começaram a interpretar a lei daquela forma para sair menos gente.”
O Expresso tem conhecimento do caso de duas pessoas condenadas pelo mesmo crime, no mesmo processo e com uma pena praticamente igual: uma saiu, outra não. “Foi uma questão de timing. Os primeiros casos que os Estabelecimentos Prisionais (EP) mandaram para a DGRSP, logo no início, tiveram sorte. Os outros não.”
Um dos requisitos para a saída por 45 dias era o recluso já ter tido saídas precárias anteriormente, além de um relatório positivo por parte da reinserção — algo que não se exigia no regime do perdão parcial de penas. “Fazia mais sentido deixarem sair um indivíduo já com várias precárias e até a trabalhar em regime aberto do que um indivíduo que está a dois anos do fim da pena mas se calhar nunca foi a casa e não tem qualquer estrutura familiar pronta para o receber”, considera Gil Balsemão.
Há também casos de reclusos que saíram após uma precária apenas, por estarem a dois anos do fim da pena, enquanto reclusos com dezenas de precárias não saíram. Gil Balsemão dá o exemplo de um cliente seu, um cidadão estrangeiro a cumprir pena no EP de Bragança. “É alguém que já passou o meio da pena e mudou completamente a sua vida. Todos os relatórios são positivos, teve várias saídas precárias, estudou e agora trabalha no Instituto Politécnico de Bragança em regime aberto. Mas se calhar a direcção do EP atrasou-se a enviar o processo para a DGRSP e por isso apanhou a fase das negas e não saiu”, lamenta.
Gil Balsemão considera que o Governo cedeu à pressão mediática de alguns órgãos de comunicação e partidos políticos, pois só isso explica o “volte-face” que aconteceu. A lei foi entretanto revogada. “Foi uma oportunidade perdida.”
Sobre as queixas feitas por ex-reclusos e associações a respeito do processo de libertação, que de tão repentino terá impedido uma saída organizada das prisões e levado muitos a ficar na rua, o Ministério sublinha que “a libertação dos reclusos é feita à medida e em função dos mandados de libertação recebidos dos tribunais e tem execução imediata, não tendo a DGRSP como reter pessoas mandadas libertar por um tribunal”. Sobre a interrupção de medicação ou tratamentos que estavam a ser feitos na prisão, garante “que os reclusos libertados e que se encontravam medicados levaram consigo medicação para os primeiros dias e receitas para posteriormente se poderem dirigir a farmácias para aquisição de medicação, bem como relatórios para se poderem apresentar nos centros de saúde das suas áreas de residência, como os demais cidadãos livres”.
Em relação às saídas por 45 dias, o Governo lembra que se tratou de um processo “dinâmico e, portanto, não pode ser simultâneo em todos os estabelecimentos prisionais”. Assim, entre o envio das autorizações e a saída dos reclusos “há um conjunto de procedimentos técnicos e administrativos que implicam algum tempo de execução”. Para perceber se o Ministério mudou de abordagem depois do início da medida e começou a rejeitar pedidos de reclusos que reuniam as condições para sair, o Expresso perguntou quantos processos foram analisados — e rejeitados ou concedidos — ao longo das semanas em que a medida esteve em vigor. O Ministério não divulgou esses dados “por serem matéria de trabalho e de avaliação técnica interna”. Certo é que o número de pessoas libertadas neste regime ficou bastante abaixo do que foi avançado em abril pela ministra.
Ao Expresso, a Provedoria de Justiça lembra que endereçou à ministra da Justiça uma recomendação para que o processo de libertação fosse baseado na “realidade conhecida”, ou seja, que chegasse a reclusos que já tivessem usufruído de saídas bem-sucedidas. Isto porque o “alargamento, pela consagração de outros mecanismos como o perdão de penas, conduziu a novas realidades, com problemas como a ausência de habitação ou enquadramento exterior”. A Provedoria de Justiça recebeu pelo menos dez exposições de reclusos referentes à não concessão de saídas.
Jorge (nome fictício) é o quarto “libertado covid” desta história. Tem 35 anos e também saiu da prisão em abril: estava a cumprir a quarta pena no norte do país e o seu caso preenche o vazio que é a reinserção de reclusos em Portugal - com ou sem pandemia. Está cá fora desde abril, mas já sabe que, eventualmente, voltará a ser preso.
Começou a consumir muito novo, ficou viciado, passou a vender droga para alimentar o vício. Tem no cadastro quatro detenções por tráfico - “no início penas pequenas, depois vão subindo” - mas quando saiu a primeira vez percebeu que queria mudar de vida. O seu ciclo é vicioso: trabalhou “em coisas fugazes”, teve “empregos de ocasião”, foi “trolha nas obras”, nunca conseguiu fazer descontos. Aceitou falar com o Expresso mas não ser fotografado nem dar o nome verdadeiro.
“Sem ter um bocadinho de estabilidade é difícil mudar. Se preciso de dinheiro para comer e não tenho outra opção, claro que vou fazer a única coisa que sei fazer e que me vai safar.” A única coisa que Jorge sabe fazer é traficar e foi ao tráfico que por quatro vezes voltou após alguns meses em dificuldades para chegar ao fim dos dias. E do tráfico ao consumo o passo é minúsculo.
“Quando finalmente os reclusos ficam em liberdade são deixados à sorte, sem apoios, não arranjam meios para uma vida digna, e por isso mais cedo ou mais tarde voltam ao crime”, lamenta Almeida Santos, da associação Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos.
Isto acontece porque “a reinserção social é cara”, disse Rómulo Mateus, director da DGRSP, numa audição parlamentar em julho. “Mas compensa” porque “cada euro investido na reinserção tem frutos sumarentos”, acrescentou. Almeida Santos ficou incrédulo quando ouviu o responsável da DGRSP a falar com tanta clareza no Parlamento sobre o problema: “O que estamos todos a dizer ou a admitir, basicamente, é que o Estado e o Governo compactuam com o crime.”
A reinserção não existe na máxima força também porque não há pessoas suficientes para isso. Rómulo Mateus apontou para a “emergência” do país em rever as carreiras e investir em Técnicos Superiores de Reinserção Social, cada vez mais envelhecidos. Atualmente só há 48 equipas de reinserção social - em média serão mais de 150 reclusos para cada uma - tornando-se impossível que acompanhem todos os casos à sua responsabilidade. “Os juízes são muito relutantes em conceder a liberdade condicional porque sabem que não há acompanhamento na ressocialização”, escreveu em abril Licínio Lima, ex-subdiretor da DGRSP, no Observador.
Isso não significa que estes funcionários trabalhem pouco ou mal - pelo contrário. “Há um esforço para garantir que as pessoas não voltam à prisão”, garante Catarina Frois, investigadora do sistema prisional português. “Vi muitos defeitos [no sistema] mas não há falta de empenho por parte dos técnicos de reinserção. Vi da parte deles uma preocupação genuína em garantir não aquilo que as pessoas precisam mas aquilo que querem. Às vezes dizia-lhes que parecia que viviam numa utopia: se pudessem salvar um entre mil, o trabalho estava feito. Têm a crença de que o trabalho deles faz a diferença.”
Almeida Santos diz que o sistema prisional só se tornará justo quando o país admitir que perdeu a guerra contra as drogas. “Cerca de 80% da população prisional foi condenada por crimes relacionados com droga. Oficialmente, nas estatísticas, até pode estar que assaltaram uma casa ou uma pessoa, mas ninguém o faz por desporto mas sim para arranjar dinheiro para comprar droga”, sentencia.
A história de Jorge encaixa nesta realidade: a sua última condenação não se deveu a posse ou tráfico de estupefacientes mas sim a ter assaltado uma casa. Tem um filho mas está com ele “raramente” porque o rapaz e a mãe vivem noutro distrito, no sul do país, e Jorge já aprendeu que o melhor é evitar reatar o contacto quando fica em liberdade porque eventualmente voltará “lá para dentro”.
A vida de Elisabete na prisão teve altos e baixos. “A prisão é uma escola, uma aprendizagem. Há coisas boas e menos boas. Aprendemos a fazer vários crimes, mas também a abrir os olhos. Alertam-nos para certas situações, a colocar os pés mais assentes na terra. Ensinou-me a ter mais calma. E a dizer não. Antes não sabia dizer não.” Elisabete não sabia dizer não a pressões, insultos, ameaças. Na prisão teve de aprender, conseguiu, promete levar a lição para a vida em liberdade.
A adaptação foi difícil, a revolta era muita, tem de agradecer à psicóloga e à psiquiatra do EP. “Ajudaram-me muito. Falavam comigo, receitaram-me medicação para a depressão e para os ataques de pânico, preocuparam-se sempre.” Não quis estudar mas trabalhou sempre, aprendeu a costurar, fez amigas que vão ficar para a vida. “Tomei conta de uma menina que nasceu lá dentro. A mãe, uma reclusa que se tornou minha amiga, deixou-me completamente à vontade.” Além disso ganhou uma afilhada. “Uma colega perguntou-me se queria ser madrinha da filha dela, que já tem 19 anos. Disse logo que sim.”
A “precária da covid” de Elisabete foi renovada uma terceira vez. Na altura o momento foi agridoce: “Mais 45 dias. É bom mas não posso sair de casa para falar com empresas e arranjar trabalho”, lamenta. A antecipação da liberdade condicional seria apenas de pouco mais de um mês, explica, e como já não deve voltar à cadeia acha que a decisão podia ser agilizada. “Porque sem trabalho não consigo começar a resolver a minha vida.”
O advogado e a técnica de reinserção social disseram-lhe que conseguir um contrato de trabalho iria jogar a seu favor na audiência futura. “Há alguns dias a técnica ligou-me a dizer que quem tinha regime aberto já podia começar a trabalhar mas que teria de lhe enviar os dados para depois a diretora da prisão autorizar.” Elisabete sempre trabalhou em fábricas. Antes da condenação era controladora de qualidade numa empresa de roupa e calçado. Desde que veio para casa devido à pandemia tem vasculhado a internet todos os dias fazendo os possíveis para conseguir uma tábua de salvação nesta altura de crise: teve dois trabalhos em vista, um numa fábrica de tecidos e outro numa associação a prestar apoio social a idosos. Foi sempre honesta em relação à pena, “expliquei sempre o que me tinha acontecido”, as pessoas compreenderam mas os trabalhos não se confirmaram. Entretanto a crise adensou-se e as ofertas secaram.
O tempo na prisão é recente mas faz parte do passado, já está cumprido mas ainda lhe condiciona os dias. Este limbo maltrata-lhe a cabeça e o corpo, cria discussões nervosas com a mãe, trouxe de volta os ataques de pânico. Continua a fazer máscaras, tal como aprendeu “lá dentro”, e começou a coser peças de decoração e almofadas para crianças. “É bom para me distrair, mas não chega.” Quer criar um blogue ou uma página de Facebook, qualquer coisa que sirva de montra para as amostras que tem em casa, “a ver se alguém compra.”
Rui ainda não sabe quando é que vai contar à família que esteve preso. “Hoje em dia fazer planos é complicado.” Está à espera da reforma e também não sabe se, quando ela chegar, irá continuar a viver na associação. Entretanto, talvez arranje um trabalho, qualquer coisa que envolva “máquinas multifunções, aquelas pequenotas com quatro pneus e que viram para todo o lado” - ou mesmo outras. Se com a pandemia será mais difícil encontrar trabalho? Não acha, até porque para ele “sempre foi difícil”. Quanto à prisão, é assunto encerrado. “Eu faço as coisas e acabou, passo sempre para o outro dia, não ando para trás, ando sempre para a frente, não ando nem para a esquerda nem para a direita, é sempre em frente.”
Francisco espera não voltar a consumir droga. A última vez que o fez foi na prisão, um problema generalizado no país que a DGRSP diz estar a combater de forma “particularmente ativa”. O ex-recluso explica: “Desde a pandemia deixou praticamente de haver droga na prisão devido à suspensão das visitas. A pouca que havia era metida pelos guardas mas era muito cara.” Sendo a vontade oscilante não tem outra solução a não ser confiar nas circunstâncias. “Tenho trabalho, estou ocupado, não tenho o dia todo o livre para fazer e pensar em asneiras. Estou a conhecer novos caminhos porque os que eu conhecia levavam-me sempre ao mesmo sítio.”
Como outros ex-reclusos apoiados pela associação O Companheiro, Francisco está a trabalhar para a junta de freguesia de São Domingos de Benfica, sendo responsável por atividades relacionadas com a higiene urbana. Trabalha das 6h às 13h e no resto do tempo caminha. “Gosto muito de andar a pé. Ponho som nos ouvidos e arranco.” Às vezes cruza-se no comboio ou no autocarro com outros ex-reclusos que conheceu na prisão mas evita conversas longas. “Tento fugir o mais rapidamente possível.” Na associação partilha quarto com outras pessoas e, ainda que preferisse estar a viver noutro sítio neste momento, sabe que é aqui que deve estar. “É bom para ganhar hábitos e rotinas que tinha perdido.”
José Brites explica que a “redução das equipas na higiene urbana, devido aos planos de contingência das entidades, fez com que deixasse de haver pessoas na rua para fazer a limpeza”, tendo a associação conseguido que os ex-reclusos se ocupassem desse trabalho. Quando as equipas voltarem, “provavelmente vão ser reenquadrados”, diz ainda, sendo também sua intenção encontrar trabalho para outros ex-reclusos na Câmara de Lisboa. “As pessoas que foram libertadas recentemente acabaram por ter uma resposta mais eficiente e eficaz do ponto de vista da reinserção.”
Nenhum dos ex-reclusos a que a Unidade de Emergência da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa deu apoio está ainda a trabalhar. “Até para os que já estavam antes da pandemia será difícil manter os seus trabalhos”, diz Marisa Melo, explicando que “estamos a falar de pessoas que, quando foram detidas, já estavam afastadas do mercado de trabalho há muito tempo”. “O processo terá de ser gradual.” Celeste Brissos complementa: “São processos que demoram - na Casa de Transição, aliás, nunca demora menos do que um ano”. Até porque há muita solidão e também estigma. “Estas pessoas estão habituadas a que lhes apontem apenas o que correu mal e nunca o que correu bem. A nossa sociedade ainda é muito assim. Além disso há o estigma de se ser ex-recluso e isso torna muito difícil a entrada no mercado de trabalho”, diz, por sua vez, Marisa Melo.
Quando Francisco soube que ia ser libertado, só telefonou a uma pessoa - um primo. Quer falar com a família mas não agora. “Ainda não estou em condições de o fazer. Vou estar aqui um tempinho, ver como é que estou, se o trabalho corre bem. Depois de tudo o que eu fiz, já ninguém acredita muito em mim. Tenho de começar sozinho.”
Rui conversou pela primeira vez com o Expresso a 5 de junho. Em meados de agosto, a associação O Companheiro disse que estava à procura de outro lugar para ele, visto que, devido aos seus problemas de saúde, não pode trabalhar e por isso "não cumpre os requisitos para estar na associação". Chegou a surgir a hipótese de ir para um lar mas é demasiado novo para isso.
A relação de Elisabete com os serviços prisionais continuou a fazer-se através de datas, adiamentos e incertezas até ter recebido a liberdade condicional a 27 de setembro. Continua à procura de trabalho.
A primeira conversa com Francisco foi também a 5 de junho. Numa segunda conversa, a 18 de agosto, durante um dos seus turnos a limpar ruas na freguesia de São Domingos de Benfica, contou que tinha saído da associação, com a qual se teria incompatibilizado. Estava a dormir na rua há várias semanas.
Jorge ainda não voltou à prisão.