O primeiro
voo

A 10 de março de 2022 aterrou em Lisboa o primeiro voo humanitário do espaço europeu, desde o início da guerra, com 267 refugiados da Ucrânia. Em cada lugar do avião sentou-se uma história diferente do mesmo conflito. Passado um ano, 70% dos passageiros permanecem em Portugal, a maioria com casa e a trabalhar. Não fazem ideia do emaranhado de cordelinhos que foi preciso puxar para os trazer

Texto Raquel Moleiro Fotos Ana Baião Vídeo José Cedovim Pinto

10 de março de 2023

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Ganhar asas

Foi um voo tranquilo. Não houve turbulência, nem fora nem dentro do Boeing 747-300 ER. Um choro ou outro de criança, um cão a ganir baixinho, e pouco mais a agitar o ambiente estranhamento silencioso num avião com lotação esgotada, como se cada um dos 267 refugiados ucranianos que trazia a bordo tivesse finalmente, durante aquelas quatro horas de viagem, parado para pensar, para interiorizar o impossível, um país europeu invadido, a guerra à porta de casa, a morte dos seus aos milhares, eles entre os milhões em fuga.

Em cada lugar do avião sentou-se uma história diferente da mesma tragédia, que levava então 15 dias de duração. Como a de Olga e Oleksandr, reformados, de Kharkiv; de Olha, Nataliia e Kateryna, mãe, filha e neta de Irpin; das cunhadas Irina e Olga e quatro crianças pequenas, de Slavuta; de Yuliia e o filho Egor, com uma paralisia, de Vinnytsa; de Maria e a filha artista Viktoria, de Lviv. Tudo mulheres, crianças, idosos.

Ali, a 35 mil pés de altitude, estavam entre o que eram e o que iam ser, duas pontas de incerteza. Um ano depois da primeira ponte aérea humanitária no espaço europeu, que a 10 de março de 2022 ligou Lublin (Polónia) a Lisboa, continuam no mesmo limbo, ainda incrédulos com a guerra que não cessa, como se nunca tivessem chegado a por os pés no chão.

Cerca de 70% dos passageiros que nesse dia aterraram no aeródromo de Figo Maduro ainda vivem em Portugal, espalhados por todo o país. Quase uma centena (92), maioritariamente idosos, regressou a casa, apesar do perigo – o apego à terra falou mais alto do que o amor à vida, a que se aliou a dificuldade habitacional. Cinco mudaram de país: dois foram para a Polónia, dois para o Canadá, um para os Estados Unidos. Entre os que se mantêm em território nacional, 80% já conseguiram trabalho e alojamento de longo prazo, 10% são reformados.

A minuciosa contabilidade, das entradas, saídas, necessidades e integração, é mantida atualizada pela  Ukrainian Refugees – UAPT, a associação nacional que organizou este e os cinco voos humanitários que se seguiram. Criada quatro dias depois da invasão, e por causa da invasão, entre março e dezembro de 2022 trouxe para Portugal 1675 refugiados.

Roman Kurtysh, empresário ucraniano imigrado em Portugal há cerca de vinte anos, é o fundador da IPSS, juntamente com o luso-brasileiro José Ângelo Neto. Não aguentou ver as imagens da invasão, um país anichado em bunkers, morto nas estradas da fuga, em filas intermináveis de mulheres, crianças e velhos a pé em direção à fronteira, a despedir-se nas estações de comboios. Começou a ligar a amigos, disparou contactos. Era preciso ajudar, enviar bens, salvar gente. Criou-se uma rede, cresceu desmesuradamente, virou associação.

A empresa de construção civil de Roman, nas Olaias, em Lisboa, passou a sede e armazém das doações. Um autocarro não chegava para tanto, nem dois ou dez, era melhor um avião que levasse carga e trouxesse rapidamente os refugiados, que já não aguentavam mais quatro ou cinco dias de viagem por terra. Avançou-se para a ponte aérea. Contactaram a companhia euroAtlantic, que se ofereceu para operar o voo, com o comandante Mário Alvim no cockpit, um veterano de missões de resgate. A Portway assegurou gratuitamente a logística em terra. A Galp deu os 30 mil euros de combustível. Numa semana tinha-se tudo menos o selo de voo humanitário, que anula as taxas de embarque e facilita o transporte. Contactaram o Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), e aí o ritmo abrandou.

Roman tem um problema com a falta de ritmo. “Era sábado, estava a chover e fomos para a porta do Palácio de Belém. Tínhamos conseguido tudo e agora estava parado no ministério. Sentámo-nos à porta da garagem e dissemos que só saíamos dali depois de conversar com o presidente. Então começou aquela coisa, liga para um, liga para outro, e  depois de umas quatro horas, o Marcelo veio. Ainda confirmaram com a companhia aérea se era verdade ou se nós éramos dois malucos”, recorda José Ângelo.

A Presidência fez um ofício, associou o Governo à iniciativa, o ritmo retomou frenético para rapidamente bater noutra parede burocrática. Portugal permitia a entrada de refugiados sem passaporte mas a Polónia não os deixava sair. Foi o próprio ministro dos Negócios Estrangeiros, na altura Augusto Santos Silva, a ligar para o seu congénere polaco. Arranjaram-se salvo-condutos. Cinco dias depois, o avião levantava voo com 35 toneladas de alimentos, medicamentos e equipamento rumo a Lublin, o aeroporto mais perto da fronteira polaco-ucraniana. Ao mesmo tempo, 267 refugiados atravessavam a Ucrânia para lá chegar.

O voo foi divulgado nas redes sociais, grupos de WhatsApp da Ucrânia e centros de acolhimento sobrelotados e o rol de passageiros rapidamente ganhou tamanho para várias viagens. A lista de embarque saiu fechada de Portugal, com cópia para o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), Alto Comissariado para as Migrações (ACM) e MNE, mas no terreno foi preciso alterá-la. “Alguns já tinham entrado em autocarros e seguido para outros sítios, outras pessoas estavam lá e nem estavam na lista. Liguei para o contacto do MNE às cinco da manhã e foi autorizado o embarque de todos. Houve abertura do Estado”, recorda Roman.

Mas ainda assim foi preciso atrasar o voo. A guerra não ajuda a cumprir horários. As voluntárias da associação mantiveram-se sempre em contacto com quem ainda estava em trânsito. “Não fica ninguém em terra”, assegurou o comandante. “A legislação permite uma prorrogativa de três horas em caso de força maior, e usámo-la neste voo”, recorda. A bordo havia tripulação ucraniana, chupa-chupas, bombons e uma refeição quente. Os muitos cães e gatos, hamsters e até um papagaio viajaram na cabina com os donos. A pouca bagagem nem obrigou à abertura do porão.

Mário Alvim já está habituado a este tipo de missão. Fez os voos de repatriamentos dos portugueses ‘presos’ em Timor pela pandemia, transportou e resgatou tropas e equipas de socorro de todos os cenários de conflito ou desastre natural – Kuwait, Afeganistão, República Centro Africana, Moçambique, Turquia, Chile… -, levou vacinas. Só ele já aterrou em 120 países.

Mas este voo de Lublin-Lisboa foi diferente, tocou-o mais. “O olhar daquelas pessoas mexeu comigo, tanto. Era o olhar de quem está perdido, de quem perdeu tudo, está vivo mas não tem nada. Foi pesado porque eu já conhecia esse olhar. Nasci em Angola e vi sete tios meus a serem retirados para Portugal em 75, lembro-me do avião da TAP com pessoas sentadas no corredor e o drama que foi aquela ponte aérea, tanta gente a partir com uma mão à frente e outra atrás. Marcou-me muito, acordou memórias dolorosas”, conta.

Para desanuviar o ambiente a bordo, o comandante deixou uma criança entrar no cockpit. Era alegria na certa. Mas não foi. “O miúdo devia ter uns 7, 8 anos, mas não mostrou qualquer interesse, estava longe dali, triste. Normalmente fazem imensas perguntas e querem mexer nos botões todos, mas aquela criança não”.

Quando aterrou em Lisboa, no aeródromo militar de Figo Maduro, Mário Alvim pôs no exterior da aeronave duas bandeiras, uma da Ucrânia outra de Portugal. A imagem tornou-se um ícone da missão, pioneira a nível europeu e mundial. Na pista, à espera, estava Marcelo Rebelo de Sousa,  a ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva, a ministra da Administração Interna, Francisca Van Dunem e a então embaixadora da Ucrânia em Portugal, Inna Ohnivets.

O Presidente subiu a bordo e foi recebido com um “Obrigado Portugal”, assim mesmo em português, entoado em uníssono pelos passageiros. “Este foi um dos momentos em que fazer política vale a pena: eram 267 pessoas a bater palmas, cheias de gratidão”, descreveu Marcelo. “À sua maneira, esta é uma história exemplar: tivemos a sociedade civil a tomar a iniciativa, tivemos o poder político a atuar em conjunto, com relevo naturalmente para o Governo, as câmaras municipais, a embaixada sempre presente, e o voluntariado a permitir esta operação”, acrescentou.

Após o desembarque, os passageiros foram testados à covid-19 e distribuídos por vários centros de acolhimento, de curta e média duração: dois na Azambuja - o pavilhão desportivo de Vale do Paraíso e a Pousada da Juventude -, um hotel em Mafra e o Centro Apostólico na Guarda. Em poucos dias a maioria tinha seguido para casa de familiares e famílias de acolhimento. Para os refugiados em situação mais frágil houve ainda, durante três dias, 80 quartos reservados no Hotel Ramada, em Lisboa.

“Até hoje foram atendidos cerca de 10 mil refugiados. Em carga humanitária enviada foi quase €1 milhão em bens essenciais, que atingiram dois milhões de pessoas”
José Angelo Neto

Até na sede da própria associação, onde hoje se mantém em funcionamento um ATL, nasceu em março de 2022 um hostel improvisado, ocupado pelos ucranianos que chegavam pelos próprios meios a Portugal. “Até hoje foram atendidos cerca de 10 mil refugiados. Em carga humanitária enviada para a Ucrânia foram 40 camiões TIR, nove carruagens de comboio e os seis aviões. São mais de mil toneladas de produtos, quase um milhão de euros em bens essenciais. Segundo a informação que recebemos da Kiev, essas doações, tanto de alimentos como de geradores - o último avião foi só com geradores e roupa térmica -, conseguiram atingir dois milhões de pessoas”, contabiliza José Ângelo Neto.

Um ano depois do início da invasão, a UAPT continua a mandar bens para a Ucrânia apesar das doações terem diminuído 90%. As operações de resgate, porém, já terminaram. “Quem queria sair já saiu”, justifica o fundador. As forças da associação estão agora focadas noutra missão. “Da Ucrânia chegavam-nos muitos pedidos de ajuda médica, devido à destruição das infraestruturas hospitalares. Decidimos, por isso, criar em Portugal um centro de tratamento de feridos de guerra, principalmente militares, com capacidade para 100 utentes, que inclui também residências para familiares. Será em Ourém, numa quinta com quatro hectares, com um edifício enorme, cedida pelos proprietários à Ukranian Refugees por sete anos, mais sete de opção. Queriam que fosse usada por uma boa causa e vai ser”, garante Ângelo. As obras já começaram, assumidas pelo Leroy Merlin, e os primeiro feridos deverão chegar na última semana de abril, em aviões de pequena dimensão, já com o apoio da filial da associação, que deverá abrir em Kiev, no próximo mês.

Os tratamentos vão ser assegurados pela rede privada CUF, que assinou um protocolo diretamente com o governo ucraniano e com a associação. Teresa Leal Coelho, ex-vereadora da câmara de Lisboa e antiga vice-presidente do PSD, assegurou pro bono o apoio jurídico ao acordo. Só agora visível na ação da UAPT, é ela que nos bastidores desfaz nós burocráticos e agiliza contactos institucionais desde março de 2022. Depois de montar um centro de refugiados com a Universidade Lusíada, onde é professora, mandou um SMS ao Presidente da República a disponibilizar-se para apoiar o acolhimento dos que estavam a chegar. A presidência passou-lhe o contacto de Roman e Ângelo. Estão juntos até hoje. Em agradecimento, no dia em que se comemorou um ano da invasão, eles fizeram-na embaixadora da associação.

Quando a guerra terminar, o edifício de Ourém será entregue à comunidade para ali instalar um centro de apoio às vítimas de violência doméstica e crianças em situação de vulnerabilidade. Nessa altura, a ação da associação deverá virar-se diretamente para os regressos a casa dos refugiados e para a recuperação da Ucrânia. Só aqui falha o planeamento milimétrico da UAPT. Não há data para a paz.  

Três, duas, uma

Olha, Nataliia e Kateryna Sherudylo, mãe, filha e neta, foram as últimas a chegar ao aeroporto de Lublin. Foi por elas que o avião da euroAtlantic esticou o slot. Souberam do voo humanitário 20 minutos antes da hora prevista para a partida, no fim de um duro e longo trajeto de fuga que iniciaram em Irpin, nos arredores de Kiev, debaixo de bombardeamentos intensos, até à Polónia.

“Chamámos um táxi mas o taxista não nos encontrava. Então tentámos parar os carros que passavam para nos levarem ao aeroporto. Não podíamos perder aquela oportunidade de ir para um país seguro. Já estávamos atrasadas uma hora e o avião à nossa espera. Quando finalmente chegámos, receberam-nos como se fossemos família. Abraçaram-nos, choraram connosco”, recorda Nataliia.

Não tinham muito para colocar nas bagageiras. Trouxeram quase nada com elas. O peso carregavam-no no peito: 15 dias de guerra que transformaram a sua cidade num monte de escombros e mortos. Ali, o antes e depois era flagrante.

Nataliia Sherudylo , Kateryna e Olha, na casa da família Costa, na Azambuja, poucos dias depois de chegarem a Portugal, vindas de Irpin. Só a primeira continua no país

Avó, mãe e filha aprendem as primeiras palavras e frases em português, em março de 2022. Tinham acabado de chegar ao país

A invasão apanhou Kateryna a dormir. Adormecera em paz, o curso superior de Desporto terminado, os estudos de nutrição de vento em popa, a loja onde seria o seu estúdio de fitness já escolhida. Tudo a correr bem nos seus 24 anos, o mesmo número do dia de fevereiro em que a mãe, Nataliia, a acordou para a guerra. O impensável começara.

No apartamento suburbano, três gerações de mulheres uniram-se no medo. A avó Olha [lê-se Olga], de 67 anos, estava de visita à filha e à neta. Era só para ficar uma semana e voltar a casa, em Konotop, a quatro horas dali, mais perto da fronteira russa. Putin alterou-lhe os planos.

As bombas chegaram pouco depois das primeiras notícias. Irpin, uma cidade de 40 mil habitantes, não tem alvos militares mas fica estrategicamente no caminho para Kiev. Com a ponte Romanovskyi - liga as duas margens do rio que atravessa a localidade - destruída pela forças ucranianas, para travar o inimigo, a ofensiva russa chegou pelo céu, que Volodymyr Zelensky tanto pedia que se fechasse.

“Estivemos dez dias debaixo de terra, num bunker. Estávamos muito assustadas. Os bombardeamentos eram constantes, mísseis voavam por todo o lado, ouvíamos as antiaéreas a trabalhar. Pouco a pouco ficámos sem eletricidade, sem internet”, conta Kateryna. Então, a 3 de março — sabem os dias de cor — juntaram-se as três para “decidir a vida dali para a frente”. Trinta tanques russos tinham entrado na cidade, dizia-se de boca em boca. Sabotadores russos marcavam alvos. Fugiram.

À superfície, só destruição. À volta da sua casa, “tudo rebentado”. Lá dentro, a vida inteira reduzida a duas mudas de roupa numa mochila, um kit de pronto-socorro, os passaportes e pouco mais. Nataliia, 45, ainda se lembrou de trazer o portátil embrulhado num casaco, num momento de esperança de que um dia conseguisse reativar o seu negócio de compra e venda de produtos ecológicos do Vietname. Kateryna pegou em dois ou três livros de anatomia e fisiologia. Fecharam a porta e guardaram a chave sem saber se voltarão a rodá-la na fechadura. O carro ficou junto ao prédio. “Bandidos russos disparavam contra as pessoas no único ponto de saída da cidade. Muitos foram baleados ou desapareceram”, recorda Kateryna. O que viu, viu-se nos olhos que brilharam de tristeza. O comboio era a opção mais segura.

“Naqueles parques onde costumávamos passear há apenas alguns dias, estão agora os cadáveres dos moradores da nossa cidade”
Nataliia

Na estação de caminho de ferro encontraram um mar de gente. Mas não desaguaria em lado nenhum. Os carris tinham sido destruídos, era um beco sem saída. Dirigiram-se então à ponte caída sobre o rio Irpin, onde voluntários ajudavam na evacuação da cidade. As imagens da agência AP mostram um êxodo de proporções bíblicas nesse exato local, no dia de fuga da família. “Tudo chorava, tudo em pânico, tantas crianças”, recordam. “Naqueles parques onde costumávamos passear há apenas alguns dias, estão agora os cadáveres dos moradores da nossa cidade, que foram alvejados ou despedaçados por uma bomba”, acrescenta Nataliia.

Conseguiram chegar a Kiev e cinco horas depois apanharam o comboio para Lviv, junto à fronteira polaca, espremidas dentro de uma carruagem onde não cabia nem mais um alfinete fininho. Já faziam a viagem quando um novo bombardeamento na sua cidade mataria, no mesmo caminho por onde passaram horas antes, uma família inteira em fuga.

Desembarcaram em Lviv para um vazio. Não tinham ali ninguém, nem um destino. Ficaram dois dias e atravessaram para a Polónia. Aí encontraram milhares de vidas como as delas. Não havia ajuda para todos. Tinham de ir para mais longe. Foram para Portugal.

Depois de registados os pedidos de proteção temporária pelo SEF, ainda no aeroporto de Figo Maduro, o trio de Irpin foi transferido para um centro temporário no Pavilhão Desportivo de Vale do Paraíso, uma povoação de pouco mais de 800 habitantes. Lá dentro tudo foi doado e montado em dia e meio de trabalho — camas individuais, zona de brincar, refeitório, roupeiro, posto clínico —, com o apoio da Câmara da Azambuja, Proteção Civil e Cruz Vermelha. Voluntários garantiram acompanhamento dia e noite, o município suportou a alimentação, enquanto a associação UAPT trabalhava non-stop na integração dos refugiados em famílias de acolhimento. E até a sirene dos bombeiros, que ao domingo marca o meio-dia, foi calada para não acordar recordações traumáticas dos alertas dos bombardeamentos. Um friso de desenhos, oferecidos por crianças do concelho, diziam a quem chegava que “tudo vai correr bem”. E correu.

Tão depressa o espaço se encheu como se esvaziou. Kateryna, Nataliia e Olha ficaram pouco mais de um dia no pavilhão. Há muito que Carlos, empresário da construção, e Ana, funcionária dos Correios, tinham a Vivenda Cor de Rosa, na Azambuja, pronta para as receber. Um quarto para a matriarca, outro para a mãe e filha, que mais parecem irmãs.

Foi difícil para a família ucraniana habituar-se à generosidade alheia. As três eram autónomas e a dependência gerava-lhes desconforto. Mas agradecem muito a sorte que então lhes calhou. O primeiro passo para a autonomia foi rápido. Em cerca de três semanas começaram a trabalhar na fábrica Tradifana, em Aveiras de Cima, a embalar bolos e bolachas. Carlos ofereceu-lhes um carro em segunda mão para as deslocações laborais. Às primeiras palavras banais – obrigado, bom dia, boa noite – juntaram rapidamente balança, saco, caixa.

Pela idade, Olha não pôde trabalhar. Chefiou o Departamento de Economia da Câmara Municipal durante anos e agora dedicava-se ao seu jardim, ao gato e à numerologia. Ficou tudo para trás. Carlos ainda lhe fez uma horta no jardim da casa, para matar saudades da sua – “tinha tomates, pepinos, batatas, cebolas, morangos”, recorda -,  mas não conseguiu prendê-la. A matriarca partiu para a Ucrânia no fim de agosto, apoiada também pela associação, que assegura o regresso dos refugiados que trouxe.

Kateryna, personal trainer, conseguiu um visto para os EUA e também abandonou o país. Só ficou Nataliia que desde setembro vive em Alhandra com uma família ucraniana. Está a reativar o negócio que geria, de produtos ecológicos. O seu armazém foi atingido duas vezes e ardeu. “Estou a tentar sobreviver em Portugal”, desabafa.

Separação voluntária

Sobre a mesa da cozinha da vivenda térrea do Bairro da Liberdade, em São João dos Montes (Alhandra) há um bolo enorme de mel, típico da Ucrânia. É para as visitas. Um ano depois da fuga, Irina Mospanenko, 31 anos, começa a recriar na casa de refúgio os hábitos da outra vida, tranquila e feliz, que tinha em Slavuta, uma cidade entre Kiev e Lviv, antes do telefone a ter acordado na madrugada do dia 24 de fevereiro. Do outro lado da linha, a sogra a chorar trouxe-lhe a guerra, bombas, sirenes. E desde então não conseguiu soltar-se desse mundo invertido. Porque Mekola, o marido, ficou lá.

A invasão apanhou-o em Kiev, a trabalhar na construção civil. Demorou dois dias a conseguir voltar para casa, mas só ficou 12 horas. Alistou-se como voluntário para o exército, despediu-se de Artem, o filho de nove anos, e de Darina, a menina de 14 meses, e partiu sem dar tempo a fraquezas. “Queiram ou não, eu vou. Porque é preciso proteger-vos, proteger os pais, a família, proteger o país”. Disse, está dito e feito.

"Dormíamos sempre vestidos. Mal soassem [as sirenes] era só vestir os casacos, calçar as botas, pegar na mochila e correr para a cave”
Irina

As sirenes começaram a soar logo aos primeiros dias. “Íamos todos para a cave, os vizinhos ajudavam com o carrinho de bebé. Ficávamos lá muito tempo, com enlatados e água. Havia luz que tinham puxado. Quando paravam, voltávamos para o apartamento. Dormíamos sempre vestidos, eu e as crianças só tirávamos os sapatos, e tínhamos uma mochila pronta com documentos e os passaportes. Mal soassem outra vez era só vestir os casacos, calçar as botas, pegar na mochila e correr novamente para a cave”, recorda Irina. Foram dez dias nisto, “quatro, seis ou dez vezes por dia”, a fechar a porta sem saber se seria desta a vez que não voltavam.

Na mesma cidade, a dois quilómetros dali, a cunhada Olga Yarmolyuk, farmacêutica de 35 anos, passava exatamente pelo mesmo. O dever patriótico também a deixou sozinha com as duas filhas: Vitória, de dez anos, e Veronika de quatro. Mekola - os maridos têm o mesmo nome - foi para a guerra. Na desgraça, as duas mulheres juntaram-se, até hoje.

Irina Mospanenko com os filhos Artem, de 10 anos, e Darina, de 2, na casa de Alhandra, cedida por um casal português. O marido Mekola está na guerra, em Zaporíjia

Olga Yarmolyuk e as filhas Viktoria, de 10 anos, e Veronika, de 4, vivem com Irina, em Alhandra. São cunhadas, fugiram juntas de Slavuta. O marido está em Donetsk, na frente. Foi ferido mas voltou

Recordam o medo paralisante que as impedia de comer ou dormir. Na espertina punham-se a identificar mentalmente o que poderia, por ali, ser alvo da fúria russa. Havia a central nuclear, em Netishyn, ou os armazéns de munições em Shepetivka, ambos num raio de 20 quilómetros. A 6 de março decidiram partir. Alugaram uma carrinha e conduziram até à Polónia. Pior não seria.

Em Portugal, a tia Zhanna, imigrante há vários anos, preparava-lhes o futuro. Inscreveu-as no primeiro voo humanitário e estava pronta a assegurar-lhes guarida na sua casa, em Alhandra, quando começaram a chover ajudas de portugueses. A Ana e o Álvaro, da escola de condução, cedeu-lhes a casa cor de rosa onde vivem até hoje, sem limite de tempo. O Sr. Tavares, comprou-lhes roupa e um computador. A Dina e o Luís ajudaram com alimentação. O Sr. Mário emprestou-lhes a casa do Baleal para passarem férias.

Irina e Olga trabalham atualmente em limpezas de casas particulares e num restaurante. Alternam horários, para poderem cuidar das crianças mais pequenas. Os mais crescidos andam na escola regular, têm transporte e já falam português com facilidade. As notas são boas, com os 4 a dominar.

“O ano passou muito, muito rápido, foi a voar.  Está a ser difícil, porque continuamos a ler as notícias, a falar com os familiares e é tudo assustador. Eu quero muito ir para casa, quero muito. Sinto a falta do meu marido, mas não posso ir. Há sirenes, e não se consegue dormir ou comer de tanto medo. Não consigo explicar o medo de ouvir uma sirene. Mesmo sem ver as explosões”, desabafa Irina.

Olga concorda. Tenta mas não consegue desligar-se dos noticiários. Sabe pelo que vê que ainda não está na hora de regressar. Em setembro, o seu marido foi ferido. Mekola ficou dois meses internado, com lesões na cabeça e numa perna, uma costela partida e um olho afetado. Quando teve alta deram-lhe dois dias em casa e mandaram-no de volta para a frente, em Donetsk.

O marido de Irina está colocado em Zaporíjia, que ainda esta semana foi alvo de ataques. A central nuclear ficou totalmente sem energia, dependente apenas de geradores, o último nível de segurança antes de um desastre. Como se não bastasse a guerra.  

Sementes da guerra

A horta plantada no jardim do Palácio dos Marqueses, em Mafra, é o escape de Yullia Poperechna, 35 anos. Agora está feia - diz ela -, está despida, só tem rúcula, couve-flor, umas beterrabas em desenvolvimento e pouco mais. Mas são os espaços de terra vagos que lhe prendem a alegria dos dias. É aí que vão germinar as sementes que o marido lhe mandou da Ucrânia, arranjadas numa folga fugaz da linha da frente. O que dali nascer é o mais próximo que terá dele desde há mais de um ano.

Yullia Poperechna na horta que cultiva no Palácio dos Marqueses, em Mafra. É ali que vão germinar as sementes que o marido, militar da força aérea ucraniana, lhe mandou. Ela fugiu com o filho Egor, de 11 anos, que tem uma paralisia parcial

Yullia foi contratada como responsável da cozinha do centro de acolhimento de refugiados que funciona numa pousada de Mafra, cedida à UAPT pelo proprietário

É militar da Força Aérea ucraniana. O nome nunca o diz, por segurança. Viu-o partir de casa ainda de noite, cinco da manhã do dia 24 de fevereiro de 2022, uma chamada do trabalho e ele fardado em segundos a sair do apartamento, em Vinnytsa, no centro do país. “Tenho de ir. Já ligo”. E ligou dali a 30 minutos. “Faz a mala, pega no Egor e fujam. Começou a guerra”. Nesse dia, pela primeira vez desde que casaram, há 13 anos, seguiram por sentidos opostos: ele na direção do inimigo, ela para bem longe da frente de combate. Não o voltou a ver.

Egor é o filho de 11 anos. Tem hemiparesia, uma paralisia do lado esquerdo do corpo provocada por uma cirurgia ao cérebro, aos 3 anos e meio, que correu mal. Yullia pegou nos documentos, na medicação, ajudou-o a descer do 5º andar, sentaram-se um pouco e partiram, já as sirenes soavam na cidade.

Primeiro foi para casa dos sogros, numa cidade próxima, Zhmerynka, a 50 quilómetros. "No caminho vi os mísseis a cair em Vynniska e os aviões a voar muito baixo. Havia uma fila imensa na direção da Moldávia. As estradas estavam cheias mas as pessoas tentavam fugir a altas velocidades, ninguém sabia o que ia acontecer depois", recorda Yullia.

Ficou uns dias mas não era longe o suficiente. Foi para Ivano-Frankivsk, mais 420 quilómetros de viagem, já perto da fronteira com a Eslováquia, Roménia e Polónia. O marido voltou a ligar, ainda não era seguro. Tinha de sair do país.

"Eu não queria, não queria mesmo. Adorava a minha vida, era uma vida linda. Tínhamos tudo para viver em condições, casa, casa de férias, carro, o nosso filho estava a fazer as terapias de reabilitação, eu era diretora de uma rede de supermercados 24h", recorda.

Mas acabou por ceder, conta com os olhos verde-seco molhados. E o destino estava definido. A madrinha em Portugal, uma das fundadoras da UAPT e enfermeira-parteira em Santa Maria, não lhe deu grandes hipóteses de recusa, ia busca-la se fosse preciso.

A viagem até à fronteira demorou uma semana. Foram 700 quilómetros, os últimos 30 parados, sempre os dois, sozinhos. Só eles e o medo. Em Portugal, a incapacidade do filho garantiu-lhe um quarto numa pousada de Mafra, que desde o dia 10 de março de 2022 aloja exclusivamente refugiados ucranianos da associação em situação humanitária mais débil - idosos, doentes, mulheres sozinhas com filhos pequenos -, cedida até dezembro de 2023 pelo proprietário, cônsul honorário da Albânia. Já esteve lotada, agora estão 27 pessoas a ocupar as 60 vagas possíveis.

Yullia estava há quatro meses em Portugal quando o centro de Vynnitsa foi devastado por dezenas de mísseis que mataram 25 pessoas, incluindo duas crianças, uma delas uma menina de quatro anos com síndrome de Down, muito popular no Instagram e que tinha estado com a primeira-dama ucraniana no Natal.

O alvo do ataque era uma reunião da força aérea na Casa dos oficiais, comunicou a Rússia, assegurando que os participantes, que incluíam fornecedores internacionais de armamento, foram eliminados. Mas também destruiu o centro comercial de nove andares e várias casas particulares. O marido de Yullia ficou bem. A casa também.

Um ano depois do voo que os trouxe Portugal, a integração de mãe e filho no país transitório faz-se, mesmo que se mantenha forte a vontade do regresso. Yullia foi contratada como responsável da cozinha da pousada e Egor vai bem na escola. Está no 5º ano com um programa adaptado, tem reforço de português duas vezes por semana e a encarregada de educação recebe um relatório semanal sobre o seu progresso. Tem transporte, fisioterapeuta na escola e numa clínica local e está a ser também acompanhado no Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão.

Mas a mãe vê-o regredir. "Dizem que precisa de um fixador, de umas palmilhas e de uns ténis próprios para ajudar a endireitar a perna esquerda, e que não há em Portugal. E falam-me de operar... é a última coisa que quero", desabafa. Mas parte-se-lhe o coração quando o filho lhe diz que quer treinar futebol na escola.

Quando o marido liga - só ele pode ligar - atualiza-o com o boletim clínico e escolar. Ele não lhe diz onde está, nem o que faz, mas Yullia fala-lhe dos seus dias no exílio. “Conheci pessoas muito boas, amigos mesmo, mas o dia em que a guerra acabar é o dia em que viajo para o meu país”, garante.

O Tejo em Kharkiv

Olga e Oleksandr Ulyanenko, 65 e 67 anos, tinham feito recentemente melhorias no apartamento em que viviam em Kharkiv, um terceiro andar num prédio de cinco pisos. Sobre a cama queriam por uma fotografia grande, 1,40m por 0,70m, de algo que lhes fizesse bem olhar todos os dias. Procuraram nos álbuns das férias e decidiram-se por uma panorâmica de Lisboa, só casario e Tejo, uma recordação dos cinco dias passados em Portugal em 2018. Emolduraram-na numa antiga porta de madeira quadriculada, pregaram-na na parede e assim a deixaram a última vez que fecharam a porta de casa, em março de 2022, rumo a Portugal. “Houve sempre uma grande vontade de voltar cá, ficar mais tempo, porque gostámos muito. Tenho de ter mais cuidado com aquilo que desejo”, brinca Olga.

Olga Ulyanenko e o marido Oleksandr vivem num quarto da pousada de Mafra e trabalham no armazém da UAPT. São de Kharkiv, onde não há dias sem sirenes e mísseis

Kharkiv, a segunda maior cidade ucraniana, estava sobre ataque. Não dava para ficar. “Os aviões voavam muito baixo, a cidade inteira estava vazia, mas quando as sirenes paravam de soar, todos corriam às lojas e farmácias. Havia filas terríveis, as pessoas corriam em pânico, os carros iam todos em direção à saída principal, a estação ferroviária estava lotada. Havia estilhaços por toda a parte, porque tudo estava a ser bombardeado. Nas estradas foram colocados muitos ouriços antitanque, foram escavadas trincheiras. Perto da minha casa, foi destruída uma das melhores escolas da cidade, a escola alemã. O teatro de guerra estava no meio da cidade e nós em bunkers”, recorda.

Começaram a procurar formas de sair, pesquisaram na Internet, em chats e grupos, conversaram com amigos e foi assim que descobriram o voo humanitário. Agora só tinham de conseguir chegar a Lublin, a 1120 quilómetros dali. “Dizer que a invasão foi um choque é dizer nada. Era algo surreal, impossível, não podia estar a acontecer. E depois veio o medo, o horror, a incerteza. Não há palavras para descrever o que senti”, conta.

Saíram de carro com três amigos. Na mala apenas documentos, as roupas essenciais, o mínimo do mínimo. “Foi uma longa viagem. Nessa altura todos fugiam”. O caminho até Poltava que se fazia antes em duas horas, demorou dez. Chegar à fronteira foi dantesco. A mãe de Olga ficou em Kharkiv, recusou-se a sair. O sobrinho militar partiu para a frente de combate e ainda lá anda. Estão bem. O resto da família não teve tanta sorte. As casas foram totalmente destruídas, não sobrou nada, e acabaram por ir para a Polónia e depois para a Alemanha.

Kharkiv, no nordeste da Ucrânia, foi uma das cidades mais fustigadas pelas tropas russas no início da ofensiva. Até à fronteira russa são cerca de 30 quilómetros de aldeias arrasadas. Os campos estão minados. E apesar de já ter sido libertada do domínio russo há mais de seis meses – tanto quanto o tempo de domínio -, a vida continua difícil por ali. Só ficaram praticamente os mais velhos. É difícil sobreviver sem apoio humanitário, em matéria de alimentação, medicamentos e assistência médica. Há filas à porta das ONG locais e internacionais que entregam bens essenciais.

As sirenes ainda tocam. Continuam os bombardeamentos diários, cinco a seis por dia. O último foi esta semana, a 9 de março, com 15 mísseis lançados sobre a cidade que fica a 70 quilómetros de Belgorov, a localidade russa de onde partem muitos dos ataques aéreos. Mais de 1500 civis terão sido ali mortos desde o início da guerra , feridos são 2700.

Em Portugal, o casal de reformados pensava ficar duas ou três semanas. Passaram 52. Vivem no quarto 23 do Palácio dos Marqueses, em Mafra, pousada onde também mora Yullia e o filho Egor. Não foram logo para lá mas o preços das habitações em Lisboa não lhes deu alternativa. Olga quis ser fotografada com um ursinho de peluche. Lembra-lhe o neto que está na Sérvia. A guerra dividiu-os por todo o lado.

Mal chegou, o casal ofereceu-se para trabalhar voluntariamente no armazém da UAPT, nas Olaias, a organizar as doações para a Ucrânia, um mata-tempo que o afasta das notícias. Olga acabou por ser mesmo contratada, tal foi o empenho. Nos tempos livres estuda português numa aplicação online e ao fim de semana passeiam. Já foram à Nazaré, Alcobaça, Sintra, Ericeira. Mas há ainda outra rotina que não dispensa quando acorda, todos os dias, sem falha. Pega no telemóvel e abre o grupo do WhatsApp que tem com os vizinhos do seu prédio em Kharkiv. A maioria partiu para vários países mas há resistentes. Se alguém escreve um ‘Bom dia’ é porque está tudo bem.

Olga conversa em russo, sempre o fez. Mas quer acabar com isso. Sente-se mal por não falar a sua língua. E não é a única refugiada a expressá-lo. A procura é tal que a UAPT vai abrir em breve um curso de ucraniano para ucranianos.

Let's go Ukraine

Maria Budna, 40 anos, foi a que menos penou para apanhar o voo humanitário em Lublin, na Polónia. Vivia quase ali ao lado, em Lviv. Numa hora e meia pôs-se na fronteira, mais outro tanto e estava no aeroporto, pronta a embarcar com a filha Viktoria, de 17 anos, para Portugal. A guerra já tinha começado há duas semanas mas ela ainda estava em negação. Fez a mala com meia dúzia de peças de roupa de meia estação, os documentos e chega. Em menos de um mês estaria de volta, o conflito seria coisa breve. Não podia estar mais enganada.

Maria Budna veio de Lviv para a Guarda com a filha Viktoria, de 17 anos. Um mês depois estava a trabalhar como professora de inglês no Colégio de Línguas e Artes da cidade

Às quartas-feiras, Maria desenvolve o projeto “Aprender inglês à hora do almoço” para os alunos adultos praticarem a oralidade. À sua esquerda, estão Catarina e Ivo, donos do colégio onde trabalha

“Eu sou uma otimista nata. Tinha uma grande vida, um ótimo emprego, o meu apartamento e estava a fazer planos para viajar com a minha filha. Mas não assim, forçada. Havia um pressentimento de que a Rússia podia invadir a Ucrânia mas não achava que fosse mesmo possível, não podia acontecer. Ouvir a primeira sirene foi uma sensação tão estranha, não queria ir para a cave esconder-me mas via toda a gente a fazê-lo e fiz o mesmo. Era inacreditável que na minha cidade pudesse haver um ataque aéreo”, recorda Maria.

Por esses dias recebeu um telefonema de uma prima, que vive em Albufeira com o marido e o filho há cerca de dez anos, a oferecer-lhes refúgio enquanto a guerra durasse. Hesitante, aceitou. Seria rápido, quase uma visita familiar. Errada outra vez. “Foi assim que decidimos ir para Portugal”, conta. Mudou, porém, de destino interno. Em vez do sul, rumaria a norte. “Não queria ser um fardo para a minha prima e quando me falaram na possibilidade de, depois de aterrarmos, seguir com um grupo para a Guarda, aceitei”.

Eram 35 pessoas, 33 adultos e duas crianças, a caminho do Centro Apostólico da cidade, transformado em estrutura de acolhimento temporário para quem, por aqueles dias, fugia do conflito. Para passar o tempo, começou a dar aulas inglês aos refugiados, gratuitamente. Foi durante anos professora universitária de línguas e mais recentemente de adultos, líderes de grandes empresas internacionais – era mais uma experiência. “Até que um dia alguém da câmara municipal me perguntou se queria ir a uma entrevista de trabalho, uma escola da Guarda precisava de uma professora de inglês. Num mês estava a trabalhar, eu que nem pensei em arranjar emprego porque seria uma estadia breve. Ainda me custa acreditar que estou longe de casa há um ano”, desabafa Maria.

No Colégio de Línguas e Artes, de Ivo Gonçalves e Catarina Silva, tem alunos dos três aos 17 anos. Num quadro da sala de aula há desenhos que fizeram para ela, aplicando a língua que lhes ensina: “Let’s go Ukraine”, “Peace is Near”, “We stand with you”.  

Recentemente, Maria desenvolveu também um projeto no restaurante ‘Nobre Vinhos e Tal’, fronteiro à Sé da Guarda – “Aprender inglês à hora do almoço” – para que os alunos mais velhos pratiquem, uma vez por semana, o que lhes é ensinado nas aulas. Enquanto almoçam treinam as competências orais, com ajuda de bom vinho. São distribuídas perguntas que servem de tópico à conversa e só há uma limitação: não se pode falar português.

Mais do que nunca, a professora precisa ocupar a cabeça. A filha voltou para a Ucrânia. Estudante de desenho de animação, conseguiu acompanhar os estudos à distância durante uns meses mas arriscava-se a chumbar se não apresentasse presencialmente os projetos pedidos. Deverá, porém, regressar em breve.

“Mas será por pouco tempo. No máximo no verão voltamos para casa, com ou sem guerra. Estou a doar parte do meu ordenado para ajudar o esforço de guerra, emprestei o meu apartamento para refugiados que chegaram do Este, mas tenho a sensação de que não faço o suficiente, porque estou aqui e não estou na Ucrânia, e esta é uma das razões porque quero partir. Quero voltar a ser parte da minha comunidade, do meu país.”

Créditos

Texto Raquel Moleiro
Fotografias Ana Baião
Vídeo José Cedovim Pinto
Webdesign Tiago Pereira Santos
Grafismo animado Carlos Paes
Apoio web João Melancia
Coordenação Pedro Candeias e Marta Gonçalves
Direção João Vieira Pereira

Expresso 2023