"Os poemas apanham-se
como doenças
mas curam
assim que chegam à base
da existência"

Traz no pulso uma pulseira prateada onde está gravado o verso de Álvaro de Campos "come chocolates pequena" a lembrar-lhe diariamente o avô, figura fundamental da sua vida, a primeira pessoa a ler-lhe poesia numa casa em Santo António dos Cavaleiros "que tinha muitos livros e recebia a visita de muitas crianças amigas." Aos 9 anos, o avô de Inês Fonseca Santos lia-lhe Miguel Torga mas ainda antes citava o heterónimo de Fernando Pessoa de cada vez que lhe dava um chocolate, e dava muitas vezes "mesmo quando não era suposto como antes do almoço."

Ambos professores primários, os avós de Inês Fonseca Santos marcaram em momentos e com argumentos diferentes o seu gosto pelas letras e as histórias. Com ele, aprendeu a escutar poemas retirados da "grande coleção de poesia que havia na estante", com ela tomou contacto com as matérias da primária ainda antes de ter idade para entrar na escola: "Eu tinha para aí três anos quando a minha avó começou a levar-me com ela. Ficava sentada entre as alunas a desenhar, e ia ouvindo a matéria."

Aprendeu a ler e a escrever antes dos 6 anos, e entrou por isso na antiga primeira classe mais cedo do que era suposto. Fez toda a escolaridade obrigatória e também a faculdade sendo a mais nova da turma. Boa aluna, lembra-se de abrir os manuais assim que os recebia em casa "e de ler todos os textos dos livros de português ainda antes de começar as aulas." Já nessa altura se percebia que seguiria letras porque os manuais de matemática ficavam por ir conhecendo ao longo do ano letivo. Queria estudar direito como o pai, e foi esse o curso que concluiu mas logo no primeiro ano da faculdade percebeu o equívoco: "sempre quis ser advogada, vê lá tu. Errei completamente."

Durante os 5 anos do curso sonhava atravessar a alameda da universidade em Lisboa para estudar na faculdade em frente, a de Letras. Acabou por conseguir fazê-lo depois de terminar a licenciatura quando pôs de lado a ideia de ser advogada e se inscreveu no mestrado de Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea. Fez uma tese sobre Manuel António Pina e o "encontro do escritor com o seu silêncio". Ficou amiga do poeta do Porto "de certa forma parecido com o meu avô porque sabia muito de livros e contava muitas histórias."

O primeiro livro de poesia "As Coisas" é publicado numa altura em que ainda trabalhava como jornalista do programa Câmara Clara da RTP2. O segundo, A Habitação de Jonas, já saiu depois de perder esse trabalho regular e de ser mãe do Manuel.

É sobre criações para a infância e também sobre o filho o blogue que mantém atualmente chamado PIM porque "hoje em dia está tudo tão mal que ter um filho é uma espécie de manifesto." Encontra facilmente inspiração para o manter uma vez que, como explica, "as crianças têm uma relação de espanto com o mundo que é uma coisa muito ligada à poesia"

Vai publicar ainda este mês um livro infantil chamado A Palavra Perdida sobre "a história do Manuel que perdeu uma palavra e que anda a tentar perceber qual" porque, no fundo, "nunca conquistamos totalmente a palavra." É dedicado a duas pessoas: "o meu Manuel e o Pina."

Vai também publicar em breve um livro dedicado ao avô, desaparecido quando Inês tinha 12 anos, chamado Torre P, 6ºB, a morada da casa dos avós onde passou a maior parte dos anos da infância.

Está a preparar um livro novo de poemas que já tem nome "Suite Sem Vista" mas que ainda não está escrito. "Eu gosto mais de escrever do que de ler mas leio mais do que escrevo."

A poesia serve para quê?

Sempre que me fazem esta pergunta, lembro-me da história de Narciso na versão de Bachelard. Conta ele que, quando Narciso vê a sua imagem reflectida na água, não se contempla apenas a si mesmo, mas a todo o mundo que o rodeia: ele está no centro do mundo, sim, mas com ele e por causa dele é toda a floresta que se vê, todo o céu que se reflecte. Se a poesia tem alguma utilidade, é essa: a de nos posicionar no mundo, ao contemplarmos o nosso próprio rosto numa superfície em movimento.

Deve saber vários versos de cor. Qual o primeiro que lhe vem à cabeça?

Versos do meu Avô, nunca publicados: "Minha terra grande, terra da Distância,/ Onde os meus caminhos nunca têm fim./ Terra, quem me dera converter a ânsia/ que dominou em sonhos toda a minha infância/ num poema belo escrito só por mim."; "Eu sou um prisioneiro, um pobre louco,/ Sombra que morre pouco a pouco..."

Se não fosse poeta português (ou de outro país) seria de que nacionalidade?

O que (me) importa é o tempo. Os meus contemporâneos são os que ocupam "o lugar imóvel do poema".

Um bom poema é...

É uma armadilha. Em tempos, afirmei que é uma armadilha que nos acorrenta o coração, que nos surpreende quando, julgando o mundo adormecido, crescem, diante dos nossos olhos de leitores, palavras de múltiplas cabeças. Que nos prendem — a elas, palavras; e, com elas, ao outro. Quer a poesia - e o poema - por força tornar habitáveis os nossos corações de leitores - e mais: quer habitá-los. Mesmo que para isso seja necessário trespassá-los com palavras, fazê-los sangrar. Convoca, também por esse motivo, e para esta luta de se impor de cor, de coração, os monstros que vivem instalados nesse largo espectro que vai do amor à morte. Recordo Derrida, num texto brilhante, Che cos'é la poesia?: "(...) desperta em ti o sonho de aprender de cor. De deixares que o coração te seja atravessado pelo ditado. (...) isso é a experiência poemática. Não conhecias ainda o coração, assim o aprendes.".

O que o comove?

Esse "sonho de aprender de cor" - palavras e gestos. E a possibilidade de não esquecer, a tentativa de alcançar as palavras e os gestos dos meus: dos que já partiram, os meus avós, por exemplo, e dos que estão ainda a conquistá-los, como os meus sobrinhos e o meu filho.

Que poema enviaria ao primeiro-ministro português?

"A poesia vai", do Manuel António Pina: "A poesia vai acabar, os poetas/ vão ser colocados em lugares mais úteis.". E continua. Mas o senhor primeiro-ministro que descubra o resto. Também podia ser este outro do Pina, para refrescar a memória do senhor primeiro-ministro:

A DÉCIMA OITAVA INFÂNCIA

1. A Casa
Tenho dezoito amigos. Um doente, outro não.
Dezoito casas, uma verde: gozos
não se discutem, como dizia a avó
do Alexandre, que era escritora.
Tenho pois dezoito amigos, um amigo
verde. Onde a noite principia vejo-os.
São três. Um verde. Um morto
com uma bala na cabeça. São os meus
amigos. Faço as pazes com eles.

2. A Guerra
Os meus amigos vão para a guerra. Dão
e levam devagar, asseguro-vos. São novos, morrem.
Em dezoito guerras perdi
dezoito amigos, um doente outro não.
Odeio a guerra devagar,
tenho tempo. Os meus amigos
atravessam ruas, adoecem.
Escrevem oitocentas cartas por minuto,
nove em cada dez perdem-se para sempre.
A verdade é que isto não vai com poemas,
como dizia o outro.

3. Um Amigo
Entrevisto vagarosamente um amigo.
As suas declarações são sensacionais.

Por sua vontade, o que ficaria escrito no seu epitáfio?

"quem anda de cabeça para baixo tem o céu por abismo debaixo de si"

O poema que Inês Fonseca leu para o Expresso e o que escolheu para ser lido por Raquel Marinho