"É preciso reinventar o início"
Miguel Cardoso (n. 1976) escreve sobre o real e o quotidiano. Tem uma poesia intertextual e há quem diga que torrencial mas o poeta, que não gosta do título de poeta, recusa a ideia de torrente. Diz antes que está "sempre a recomeçar" e que gosta de olhar para os poemas, muitos deles poemas longos, como "muros que são simultaneamente montes de pedras", e explica: "qualquer verso, como qualquer bocado da realidade, pode ser arrancado e levado para outro lado. Eu consigo fazer ligações, colocar ganchos, transportar e mudar e levar para outro sítio". Cita Eugénio de Andrade para explicar que recomeça porque não tem outro ofício e diz que o pára/arranca da sua poesia está inevitavelmente ligado ao quotidiano sobre o qual escreve porque "cada bocado da realidade pode ser arrancado e levado para outro lado", assim como os versos que funcionam como "linhas de desmontagem".
Tem quatro livros de poesia publicados e a crítica já falou dele como um poeta "pós herbertiano coloquial e politizado". Um elogio, de certeza recebido com agrado, uma vez que Herberto Helder fez parte da sua iniciação à poesia fora do âmbito escolar quando, no 12º ano, passou longas horas na biblioteca de Oeiras a ler Herberto Helder e Arthur Rimbaud: "Li o Herberto todo mas na altura achava que, a escrever, queria escrever como o Rimbaud". Imaginava-se mais como prosador porque, apesar de ter tido algum contacto com a poesia, não pensava em verso como hoje acontece: "a minha respiração tem o ritmo de um verso. Aliás, quando estou a ler prosa estou muitas vezes a fazer as cesuras". Na sua poesia, explica, os versos e as estrofes estão "cosidos de uma maneira em que as costuras estão à vista".
Fobia à papelada
Estudou Línguas e Literaturas Modernas da Variante de Português e Inglês e terminou a licenciatura com média de 17 valores, mas antes deste curso experimentou Direito. Fez um semestre e desistiu "por causa da fobia à papelada", ao lado burocrático do curso. Gostava do lado argumentativo, mas só desse. Conta que esta resistência à papelada ainda se aplica hoje.
"Estou muito tempo sem ir ao correio e quando vou meto as cartas numa gaveta". Por causa disso, por vezes, falha prazos: "eu acho que na minha vida nunca entreguei o IRS a tempo". E nas gavetas de Miguel Cardoso, além do correio, há também poemas à espera.
Em criança passou muito tempo no sótão de casa dos pais com os amigos e cassetes VHS de filmes de terror e de comédia. No início da idade adulta, faltava às aulas da faculdade para ver "três filmes por dia" na Cinemateca. Depois do mestrado dedicou-se ao doutoramento, que ainda continua, às aulas que dá na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova, e ao filho de 4 anos, a quem diz na hora de dormir que "as leis da física não se aplicam durante o sono e que, portanto, tudo pode acontecer", como com os poemas ou o quotidiano.
Não gosta do título de poeta: "não lido bem com o salto qualitativo da pessoa a partir do momento em que é chamado de poeta". Diz que não vive "na poesia" mas que a visita de vez em quando. Essas visitas fazem-se à poesia contemporânea mas também, muitas vezes, a Herberto Helder, Fernando Assis Pacheco, Daniel Faria ou Sophia de Mellho Breyner Andresen. É um diálogo com Sophia um dos próximos livros que vai publicar para o ano. Ainda este ano, há-de publicar um livro chamado "À barbárie seguem-se os estendais" porque, como explica, "vai olhando por cima dos estendais, para lá da poesia, para espreitar a barbárie".
A poesia serve para quê?
Numa passagem com que luto corpo a corpo muitas vezes, a Sophia escreve "O meu reino é meu como um vestido que me serve." Este reino não me serve, não serve, e a poesia será uma forma de experimentar e partilhar este desajuste. Não querendo um reino, nem por isso aceito o exílio. A poesia vai aproveitando trapos velhos, fazendo remendos ao novo, cosendo pedaços imperfeitos a pedaços imperfeitos, e imaginando vestes inverosímeis. A poesia não serve, mas não servir é a maneira que temos de esperar servir para outra coisa.
Deve saber vários versos de cor. Qual o primeiro que lhe vem à cabeça?
"Tudo isso / está longe da canção que era preciso escrever" (verso e meio, na verdade, do "Prefácio" de A Colher na Boca, de Herberto Helder). Serve de refrão tanto ao que escrevo como ao que vivo.
Se não fosse poeta português (ou de outro país) seria de que nacionalidade?
Não sei se seria poeta. Talvez encontrasse outras formas igualmente frágeis de sabotagem.
Um bom poema é...
Talvez uma aproximação ao urbanismo communard: na sua cidade, que é a língua, fura e derruba paredes, cria novas passagens e corredores, facilita deslocações clandestinas. Mas também constrói barricadas: torna certas passagens, mesmo entre palavras vizinhas, intransitáveis. Obriga-nos a cortar a respiração, prolonga o intervalo a negro que separa os fotogramas da língua.
O que o comove?
Sermos tantos, inúmeros. E, no meio dos muitos, os que passam despercebidos. Recentemente comovi-me com o relato de um encontro da Associação de Radioamadores da Vila de Moscavide, onde participara uma pessoa que me era próxima, e que morrera há pouco tempo. Comoveu-me não só pela ligação pessoal, mas porque esse encontro no Jardim de Moscavide era descrito como uma "epopeia" (assim, com aspas). Comove-me a sucessão impiedosa dos dias, mas também este impulso de lhes dar peso, forma e substância, de resistir à indiferente passagem do tempo.
Que poema enviaria ao primeiro-ministro português?
Nenhum. Envio poemas a amigos. Ou publico-os, e aí não lhes traço o destino, não quero escolher os seus destinatários.
Por sua vontade, o que ficaria escrito no seu epitáfio?
Era uma vez.
Miguel Cardoso lê o poema "Lá (em alemão, Erlebnis)", da sua autoria, e sugere a Raquel Marinho a leitura de "O poeta no supermercado", de Fernando Assis Pacheco