A poesia serve para quê?

Talvez não sirva para nada. Mas, e porque me seria impossível formulá-lo melhor, recorro a uma citação do meu último livro: "A utilidade fundamental da poesia consiste, para mim, na sua vocação de aproximar pessoas e de diluir falsas fronteiras".

Deve saber vários versos de cor. Qual o primeiro que lhe vem à cabeça?

Sei poucos versos de cor. O primeiro que me ocorre é também um poema inteiro: "País de restos de palavras." (João Miguel Fernandes Jorge).

Se não fosse poeta português (ou de outro país) seria de que nacionalidade?

Escrevo em português porque nasci e cresci em Portugal. A poesia é, nisso, um pouco paradoxal: embora refém, quase sempre, de um único idioma, é tendencialmente apátrida.

Um bom poema é...

Um bom poema é, antes de mais, aquele que não peca por excesso ou defeito de palavras (é o seu lado musical, digamos). É-o, ainda, se for capaz de alterar ou suspender a nossa perceção do mundo. Não confundir com "poema bonito".

O que o comove?

A música, sobretudo. Mas também os gatos, certas pessoas, alguns mortos – e toda a arte que não seja mera oficina e traga consigo uma frágil e intensa verdade.

Que poema enviaria ao primeiro-ministro português?

Nenhum, obviamente.

Por sua vontade, o que ficaria escrito no seu epitáfio?

1972-20??

"Talvez tudo fosse diferente/ se o mundo tivesse começado tão bem/como as variações Goldberg"

Manuel de Freitas nasceu em 1972, no Vale de Santarém. Foi lá que viveu até à adolescência, altura em que se mudou para Lisboa. Há quem fale dele como o "poeta das tabernas" sem saber, talvez, que essa postura de observador dos outros e de ouvinte de desabafos trazidos pelo álcool, começou ainda na vila de origem (à qual prefere chamar aldeia), quando saía da escola para se sentar sozinho a beber sumos cor-de-laranja no meio dos adultos que bebiam vinho cor-de-vinho. Não procurava as tabernas para conviver mas para escutar. Já nessa altura gostava de ver cair máscaras, e da ousadia de tratar qualquer assunto sem pudor, "a morte, por exemplo". As tabernas, diz, são mais poéticas do que muitos poemas publicados. E contribuem para essa poética, sublinha, as madeiras antigas e o mármore branco das mesas.

O contacto com a poesia fez-se primeiro na escola, através dos programas de português, mas foi solitária a descoberta de alguns nomes que viria a considerar essenciais.

Um dia descobriu na biblioteca do liceu um livro de um poeta que falava de poetas que não vinham nos programas do Ministério da Educação. Foi por aí que entrou.

Estudou filosofia e literatura e passou muitas das horas dos períodos letivos a ler poemas nos cafés e tabernas perto da faculdade.

No início da idade adulta já escrevia muita poesia.

Por oposição à pressa de publicar (esperou vários anos pela edição do primeiro livro), sentia a mesma urgência de escrever que continua a existir hoje.

Diz que o poema só faz sentido se resultar de uma pulsão, e ainda se lembra da primeira vez que esbarrou nesta ideia no livro Cartas a um Jovem Poeta, de Rainer Maria Rilke.

Enquanto poeta tem cerca de quatro dezenas de títulos publicados, de extensão variada, e está traduzido em espanhol, sueco e inglês.

É preciso lê-lo para compreender algumas das respostas que dá a este questionário, e a escolha dos dois poemas ditos, um dele e outro de um poeta morto.

Na sua poesia encontramos a música de Bach - nem sempre de forma expressa como no verso supra-citado, mas também a cidade de Lisboa ou os primeiros lugares do poeta ainda antes de o ser, e as primeiras pessoas, como a mãe e o pai, os amigos, ou as pessoas que continua a ouvir com atenção nas tabernas, nos cafés e nos bares.

Encontramos, inevitavelmente, despudor. E amor.

Atualmente Vive e trabalha em Lisboa.

Com Inês Dias, criou, em 2002, a editora Averno, sobretudo dedicada à poesia. Escreve regularmente, desde 2000, recensões literárias no semanário Expresso. Organizou várias antologias poéticas e é co-director, com Inês Dias, de revistas como Telhados de Vidro ou Cão Celeste.É também co-fundador da livraria Paralelo W, uma casa de amigos de poemas no primeiro andar esquerdo de uma rua da baixa de Lisboa, onde estão reunidos títulos de diversas editoras.

Gosta de gatos e da poesia que não resulta de um trabalho meramente oficinal.Gosta muito do livro "Clepsidra", de Camilo Pessanha, e do livro "Os Irmãos Karamazov", de Fiódor Dostoiévski. Acaba de publicar um livro dedicado à mãe chamado "Ubi Sunt".

O poema que Manuel de Freitas leu para o Expresso e o que escolheu para ser lido por Raquel Marinho