Ardeu, renasceu e “é uma bomba, pior do que em 2017”

Cinco anos depois do trágico incêndio de 2017, a desordem florestal em Pedrógão agravou-se. Há mais cuidado, mas menos meios – e, em ano de seca severa, pode estar-se “perante uma bomba prestes a explodir”. Entre quem lá vive ou lá tem de ir – como Dinis, de 12 anos - há quem finja estar feliz para tentar ultrapassar o trauma. Porque, cinco anos depois, o incêndio ainda “está dentro das pessoas”

image

Um barril de pólvora que “está à vista”

Com exceção de um poste de média tensão descarnado e abandonado que ali permanece, ninguém diria que foi num vale verdejante percorrido por um ribeiro, em Escalos Fundeiros, que tudo começou. “É o sítio mais improvável para começar um incêndio”, atesta Joaquim Sande Silva, olhando em volta. Este especialista em ecologia do fogo – que integrou a Comissão Técnica Independente (CTI) que analisou os trágicos incêndios de 17 de junho de 2017 – recorda que foi neste local que um raio caiu sobre uma linha de média tensão, provocando uma descarga elétrica sobre um carvalho próximo.

Eram 14h30 de um sábado quente e seco, precisamente há cinco anos. “Durante algum tempo o ribeiro impediu a progressão do fogo”, conta Sande Silva. Pouco depois, a sobrecarga na rede elétrica fez eclodir novo incêndio a poucos quilómetros dali, em Regadas, e passados nove minutos surge o de Góis. Três horas depois o incêndio era considerado “incontrolável, independentemente dos meios disponíveis”, garante a CTI.

“Isto é uma bomba”

A secura de combustíveis no solo, aliada a um baixo nível de humidade do ar, a ventos muito fortes e a grande instabilidade atmosférica “tornaram este incêndio extraordinário”, frisa o especialista. Sete dias de chamas, às quais se juntaram as de Góis e de outros focos, percorreram 47 mil hectares e fizeram do incêndio de Pedrógão Grande o maior e mais trágico de que há memória em Portugal (ver caixa).

“Este é um ano de seca. Se houver um incêndio com as condições do de 2017, e não for atacado imediatamente, não sei o que acontecerá”, confessa o Presidente da Câmara de Pedrógão, António Lopes. “A barragem do Cabril está a menos de 40% do seu volume”, o que pode criar constrangimentos no abastecimento de água dos meios aéreos.

Os postes de média tensão que atravessam o troço onde tudo começou estão agora afastados das árvores ao longo do que a vista alcança. E as bermas da estrada 236-1 – a chamada estrada da morte, onde 47 pessoas morreram, 30 das quais em menos de 10 minutos num troço de 400 metros – estão limpas. O que ali aconteceu pelas oito da noite “foi um fenómeno raro e extremo”, relata Sande Silva.

A limpeza das bermas podia não ter evitado a tragédia, mas passou a ser uma obrigatoriedade tácita, independentemente da existência de planos municipais de defesa da floresta contra incêndios. Num concelho onde 81,4% do território é ocupado por floresta, esta mantém-se maioritariamente desordenada e sem qualquer gestão. “Isto é uma bomba, pior do que em 2017”, assevera um bombeiro, que prefere não ser identificado. “Basta olhar e ver”, é o que se ouve de quem ali vive.

“A paisagem está mais combustível hoje do que estava antes”, confirma o especialista Joaquim Sande Silva. A recuperação das áreas ardidas não aconteceu e os eucaliptos reproduziram-se desordenadamente, contribuindo para o barril de pólvora.

“É assim em Pedrógão e em todos os concelhos em redor”, reconhece o Presidente da Câmara. Mas garante que “há trabalho a ser desenvolvido“ e vão “executar mais área de faixas de combustível do que as previstas no plano e chegar a 156 hectares”, num concelho com quase 13 mil hectares de floresta.

Entre 2012 e 2017, apenas 19% dos perto de 32 mil hectares previstos nos Planos Municipais de Defesa da Floresta Contra Incêndios foram limpos nos 11 municípios afetados pelos incêndios de Pedrogão Grande e Góis. 

“A estrutura fundiária portuguesa é um caos, mantêm-se as heranças indivisas e nada acontece", aponta Sande Silva. Com 98% da propriedade em Portugal a ser privada e sem se saber a quem pertence metade dela, pelos atrasos no cadastro, este caos é pasto para chamas. E não há meio de o Parlamento legislar sobre prazos para acabar com as heranças indivisas, que se eternizam. O espelho disto, ilustra Sande Silva, é ver que “‘João’ cuida do seu hectare, mas o vizinho António herdou um hectare com mais quatro irmãos e nem sabe bem onde. E não gerem, nem deixam gerir, porque a propriedade é sagrada.”

“Está à vista”, lamenta Acácio Nunes. Herdeiro de um pequeno terreno com sobreiros e eucaliptos, gastou “uns 200 euros a mandar limpá-lo”. “Se fosse maior limpavam-me era a carteira”, diz este septuagenário. “Quando era jovem havia por aqui mais gente, com uma enxada na mão, e matava-se logo o fogo”, lamenta.

Além destes territórios terem cada vez menos gente, impera um sentimento: “para quê cuidar se arde antes de se poder cortar para vender”?, pergunta Sande Silva. A floresta fica assim “entregue aos caprichos da natureza”. Para inverter isto, defende, “é preciso criar economias de escala para pôr os proprietários a fazer o que não conseguem fazer sozinhos, e isso só é possível se a sociedade se movimentar nesse sentido”.

Contudo, não faltam resistências difíceis de ultrapassar. “A política florestal tem de estar focada no proprietário, criando incentivos fiscais que contribuam também para que as zonas de intervenção florestal (ZIF) ou os condomínios de terras funcionem”, argumenta o presidente da Agência para a Gestão Integrada dos Fogos Rurais (AGIF), Tiago Oliveira. Este especialista reconhece que “nada mudou em Pedrógão e não se aproveitou a oportunidade de intervir na área ardida”. E defende que “o mercado tem de deixar de pensar apenas no alto valor do negócio a baixo custo, e fazer parte da solução”.

No café de Vila Facaia, o dentista Nuno admite que “o que as pessoas querem é rentabilidade, e se o que dá é plantar eucaliptos, é o que as pessoas plantam”. Ao lado, um amigo que trabalha numa empresa de celulose confirma que, ao terceiro corte, o eucalipto deixa de dar rentabilidade e o terreno fica ao abandono. “Quem tem de apoiar outro tipo de plantações é o Estado”, diz. Já quanto às empresas de celulose, “fazem o preço que querem e o proprietário aluga, para não ter o trabalho de lavrar”.

Quanto é pago por aluguer e por tonelada de madeira é coisa que a Associação da Indústria Papeleira (Celpa) não diz ao Expresso. Limita-se a afirmar ser “promotora de um projeto que está a intervir em escala para criar uma floresta estruturada com gestão sustentável, mobilizando proprietários e repondo a fauna e a flora de Pedrogão Grande” e envia um vídeo promocional, sem concretizar o que foi feito no terreno.

O presidente da Câmara indica que estão “a contratualizar com vários proprietários” a gestão de um total de 1900 hectares, mas os trabalhos só arrancam em setembro”. E as candidaturas a três “Condomínios de Aldeia”, para criar áreas agrícolas em redor das povoações como barreira ao fogo, aguardam resposta.

28

ou, mais exatamente, 28.913 hectares arderam no concelho de Pedrógão entre 17 e 24 de junho de 2017. Ou seja, mais do que a área ardida em Portugal no ano passado (28.415 hectares). A área consumida pelo fogo nesses sete dias em 11 concelhos foi de 47.053 hectares. No final desse ano, o país somava mais de 500 mil hectares ardidos.

66

foi o número de mortos do incêndio de Pedrógão, mas o Ministério Público só reconhece ter havido 63

159

aglomerados do distrito de Leiria aderiram ao projeto Aldeia Segura, Pessoas Seguras. 157 deles têm abrigos e 35 têm planos de evacuação. Em 2017 eram zero

2233

é o número de aglomerados que aderiram ao programa a nível nacional, entre cerca de 10 mil aldeias identificadas como prioritárias

1

equipa de intervenção permanente, com 56 bombeiros, existe em Pedrógão. Há mais sete nos concelhos vizinhos de Alvaiázere, Ansião, Castanheira de Pera e Figueiró dos Vinhos

558

operacionais e 133 veículos integram o dispositivo atual no distrito de Leiria. Eram 338 operacionais e 88 veículos em 2017. No total do país, o dispositivo de prevenção e combate conta com 10 653 operacionais, 2 427 veículos e 60 meios aéreos. Em 2017 tinha pouco mais de metade destes meios

11

pessoas salvaram-se em Nodeirinho, refugiando-se num tanque de 12 m2. O tanque ainda lá está

Sensibilização para o risco

A maior consciência do risco do uso do fogo é uma das lições aprendidas nestes cinco anos em Pedrógão e pelo país fora. Para tal contribuiu uma maior sensibilização das pessoas para o uso do fogo em queimas e queimadas, com campanhas e ações da GNR no terreno, assim como mais cuidado na gestão da vegetação em redor das casas, indicam os especialistas.

Segundo o relatório da AGIF recentemente divulgado, também há mais apoio científico à decisão, na tentativa de mobilizar meios, havendo alertas meteorológicos, e mais profissionalização e melhor articulação entre as forças do dispositivo no terreno. Contudo, Joaquim Sande Silva tem “dúvidas de que as forças no terreno estejam preparadas para algo como o que aconteceu em 2017”. Já que, explica, “o dispositivo de combate não mudou quantitativamente, nem qualitativamente desde 2017”. Admite que há mais vigilância, “mas o paradigma, defendido pela CTI, de profissionalização dos agentes do dispositivo e de nomeação das pessoas em função da competência, não aconteceu”.

Nenhum dos fogos de junho de 2017 sucumbiu ao ataque inicial e o sistema de gestão de incêndios então montado tardou a acordar para o que tinha pela frente, apesar dos alertas de perigosidade de risco de incêndio emitido na véspera. Hoje o Sistema Integrado de Gestão de Incêndios Rurais parece estar mais musculado (ver caixa).

Porém, em Pedrógão há menos bombeiros voluntários que em 2017 e menos um carro de combate. “O aumento do dispositivo anunciado em Lisboa não é para o distrito de Leiria, muito menos para Pedrógão”, ironiza um dos bombeiros. A corporação conta com 56 homens e mulheres, menos 10 que em 2017, e um carro para intervenção rápida. “Tentamos apoiar os bombeiros dentro das nossas possibilidades”, afiança o Presidente da Câmara, chutando responsabilidades para o Estado que, diz, “não aumenta o custo do km desde 2011”.

Perante a constatação de que tudo pode voltar a repetir-se, reza-se a São Pedro para não pregar partidas, numa altura em que 97% do país se encontra em seca severa e a floresta parece uma caixa de fósforos.

Dinis, o menino que inventou a própria felicidade

“Dinis, como foram os teus últimos cinco anos?” A pergunta parece simples, quase inocente, só que não. Dinis Costa tem 12 anos, vive em Coimbra com os tios Ana e Luís e em 2017 nos incêndios de Pedrógão Grande perdeu a mãe, Sara, que morreu em Nodeirinho, a fugir do fogo. O rapaz, de caracóis cerrados e óculos com aros azuis, respondeu por escrito para explicar aos leitores do Expresso como tem vivido desde que ficou órfão.

“No primeiro ano, sentia-me mal sempre que via uma pessoa a sorrir. A minha vida destroçada e toda a gente feliz. Pensava (e penso) que é uma injustiça. À medida que o tempo foi passando, comecei a pensar ‘Porque é que eu não finjo que estou feliz? Talvez isso me ajude a recuperar.’ Decidi então fazer exatamente isso: fingir que era a pessoa mais feliz do mundo. Nas primeiras semanas foi muito difícil: sorrir quando não me apetecia, fazer piadas por razão nenhuma e jogar às escondidas como nada se tivesse passado não é para qualquer um. À medida que o tempo foi passando, essa ‘personalidade divertida’ possuiu-me e esse sou eu agora. Isto ajudou-me muito a sair do meu canto, a melhorar o meu humor e a ganhar mais amigos. Agora, sou uma das pessoas mais engraçadas da minha turma, toda a gente gosta de ser meu amigo e quase nunca estou triste. Mas claro que não é tudo um mar de rosas. Há dias que essa pessoa divertida não acorda. Há dias que estou triste e sinto muito a falta da minha mãe. Mas é a vida, e tenho que aguentar e que saber que no dia seguinte, não vou estar assim, provavelmente.”

Dinis não estava em Nodeirinho quando o fogo começou. Demorou mesmo alguns dias até perceber o que tinha acontecido, como conta, de forma pausada, numa conversa com o Expresso na sede da Associação das Vítimas do Incêndio de Pedrógão Grande (AVIPG). Quando finalmente compreendeu que a mãe tinha morrido, foi para o quarto sozinho e, no regresso, chorou com os tios. Recomeçou então a viver uma nova realidade, uma realidade que continua a ser construída diariamente.

Em 2017 morreram nove crianças, entre as 66 vítimas fatais dos incêndios que atingiram os concelhos de Pedrógão Grande, Figueiró dos Vinhos e Castanheira de Pera. Algumas viviam na região, outras estavam de passagem. Se para uma comunidade lidar com mortes em situação de catástrofe é difícil, torna-se ainda mais duro quando as vidas perdidas são de crianças. A experiência de Dinis é um exemplo de como os mais novos lidaram com o incêndio. Os caminhos são muitos, da opção pela felicidade, à negação e a tentativa de esquecimento, todos procuram uma saída para um fim de primavera que nunca terminou.

A primeira vez que o Expresso encontrou Dinis foi 2018. Na altura, a estratégia da criança foi a de criar uma “máquina do tempo” que lhe permitisse voltar àquele dia e salvar a mãe. Um capacete branco de obras, com dois fios pendurados, um protótipo mágico, mas falível. Passados cinco anos, Dinis tenta outro caminho: “Primeiro, é preciso pensar o que uma pessoa quer para a sua vida e como eu queria conviver mais, pensei que tinha de parecer mais feliz para que as pessoas quisessem conversar comigo. Tentei e consegui.” Mas assume que não é bem assim e que quando numa festa de anos vê velas a arder, o medo do fogo volta.

Um medo que também regressa sempre que a família vai à região, onde mantém uma casa. “Sinto que o incêndio ainda está por aqui e pode matar mais pessoas. Nada desaparece, mas fica arrumado num canto, porque este é um assunto de que prefiro não falar”, acede Dinis. O futuro? “Principalmente acho que não se devia falar tanto sobre o assunto.” E aproveita a oportunidade para deixar mais um pedido – “reflorestar as áreas ardidas para que não se perceba que ali houve um incêndio”. Diz que há que seguir em frente, decidir avançar e trabalhar neste sentido, sem grandes pressões. “Para dizer a verdade, não tenho muitos planos. Foco-me mais em pensar no presente do que no passado e no futuro.”

Esquecer para não lembrar

Gabriel tinha três anos em 2017 e não se lembra de nada. Mário tinha seis e devia de se recordar, mas diz que não. Os rapazes Bernardino andavam na escola de Pedrógão Grande, participaram na festa de fim de ano na sexta-feira que antecedeu os incêndios. Demoraram uma semana para regressar às atividades de tempos livres. Não perderam familiares nem bens, estiveram sempre com os pais, uma tia e o namorado, o avô paterno e uma bisavó materna. Todos se salvaram.

Mário estava da turma de Bianca, a menina de quatro anos que vivia em Nodeirinho e morreu a fugir com a mãe, o irmão e a avó. ”Eu tinha uma amiga chamada Bianca? Não me recordo”, diz. Primeiro garante que não se lembra de nada daqueles dias, mas com o avançar da conversa, recorda-se que “a parede do vizinho parecia lava”, que “ficaram sempre com uma toalha molhada à frente da boca” e, sobretudo “do avô com a mangueira”.

A diretora da escola de Pedrógão, Natércia Rodrigues, sublinha que a orientação pedagógica foi de se explicar às crianças, mesmo as mais pequenas, o que tinha acontecido e que naqueles dias “a escola funcionou como um porto de abrigo”. Amália Ribeiro, educadora, era a responsável pela turma onde estavam Bianca e Mário, e coube-lhe dar a notícia da morte da menina aos colegas: “Ela já não está entre nós e não vai voltar.” Meia década depois, ainda está na escola, ainda se emociona, e, vendo como todo decorreu, está certa de que “falar a verdade ajudou”. “As crianças reagem de forma distinta dos adultos. Para os mais velhos foi pior”, acredita.

Psiquiatra alerta que “o incêndio está dentro das pessoas”

“O trauma é mesmo assim e o que vemos é o transtorno de stress pós-traumático puro e duro. Naquela altura, as pessoas estavam muito empenhadas em ajudar, só mais tarde as emoções surgiram.” A voz de Ana Araújo é suave, mas há na atitude da psiquiatra um fatalismo resultante de quem há mais de dez anos acompanha as comunidades que em 2017 foram confrontadas com os incêndios de Pedrógão Grande.

Ela e a sua equipa já lá estavam quando tudo aconteceu, viram muito perto as consequências emocionais das mortes de 66 pessoas. Os médicos e enfermeiros especializados em saúde mental não ficaram imunes ao sofrimento – “estamos mais resilientes, valorizamos o essencial, mas somos feitos da mesma massa.” Não se esqueceram da imagem de tudo o que conheciam verde ter ficado “preto e a fumegar”, com um cheiro que ainda os acompanha. Aprenderam que “a dor tem caminhos individuais” e que “há diferentes tempos de luto”, como o do casal que regressou recentemente à consulta, passados cinco anos de ausência, sentindo-se em 2022 como se tudo tivesse ocorrido ontem. “Acontece porque as pessoas fizeram evitaram as situações”, afirma José Manuel Macacheiro, enfermeiro da equipa coordenada por Ana Araújo. Talvez por isso na região ainda haja muitas pessoas medicadas, porque, diz, “quem perde dois filhos não tem medicamento que cure.”

A brasa que ainda arde

A psiquiatra recorda-se bem que ao lado de centro de saúde foi montado um hospital de campanha, que o trabalho da equipa de saúde mental foi articulado com o INEM, os Médicos do Mundo, a Cruz Vermelha e com os fuzileiros, liderados pelo almirante Gouveia e Mello. Que, quando foram para o terreno fazer o levantamento das necessidades, decidiram que era preciso ficar de porta aberta para quem aparecesse sem marcação. E os pedidos de ajuda cresceram de forma exponencial: “Com um ficheiro estabilizado à volta de 1200 pessoas, em seis meses, chegámos às 1600.” A maioria com mais de 50 anos.

A estrutura de apoio para a saúde mental em Pedrógão, Figueiró dos Vinhos e Castanheira de Pera já existia antes de 2017, tendo o acompanhamento começado em 2011 com um projeto inovador para doentes graves. No início, os profissionais iam ao território apenas um dia por semana, mas as solicitações aumentaram, obrigando a cada vez mais deslocações. Assim, quando vieram os incêndios e as mortes, a equipa já conhecia tudo e todos. “O incêndio deflagrou num sábado e na segunda-feira, embora não fosse dia de atendimento, viemos e encontrámos uma necessidade urgente de apoio, com muitas pessoas emocionalmente instáveis”, recorda Ana Araújo.

As principais queixas eram de insónia, crises de ansiedade, recusa total em ver as notícias, até em cozinhar. “As pessoas estavam em choque, tinham tudo apagado”, conta José Manuel Macacheiro. “O impacto foi muito grande, perderam-se muitos entes queridos, vizinhos, familiares, bens”, explica Ana Araújo. Um dos maiores golpes na comunidade foi a perda de Bianca, a menina de cinco anos que vivia em Nodeirinho (ver texto nesta página). “Nos apercebemos das angústias parentais e o trabalho de apoio psicológico nas escolas teve de ser reforçado”, completa a psiquiatra.

A recuperação viria, contudo, a enfrentar obstáculos imprevistos. “A seguir aos incêndios, quando estavam a melhorar, e veio a pandemia, que trouxe mortes de idosos e dificuldades económicas. Houve quem integrasse as situações, mas outras pessoas estão em sofrimento. Ainda há casos graves. Houve quem perdesse toda uma vida e há memórias que se cruzam, embora exista desejo de recomeçar”, conta a psiquiatra.

Cinco anos após os incêndios continua a haver necessidade de “consultas de crise” de saúde mental na região. Refeita a paisagem, emocionalmente há muito por resolver. “O incêndio está dentro das pessoas e só com o tempo vão aprender a lidar [com o que aconteceu]”, garante a psiquiatra. E de tal forma o trauma foi profundo que contraria a doutrina. Ana Araújo explica que os livros indicam cinco anos como um prazo razoável para que a recuperação da saúde mental da comunidade se faça, mas não ali, onde “há sempre uma brasa que renasce quando se sopra. E se acontecer outra vez? “Vai ser complexo. Embora as pessoas tenham ganho capacidade de organização, se houver mais mortes, volta tudo atrás e teremos uma catástrofe em cima de outra.”

Créditos

Textos Carla Tomás e Christiana Martins
Fotografia Ana Baião
Vídeo José Cedovim Pinto
Webdesign Tiago Pereira Santos
Apoio web Maria Romero
Coordenação Joana Beleza
Direção João Vieira Pereira

Expresso 2022