A medalha que começou num caderno

Por dentro do mundo de Patrícia Sampaio, bronze em Paris 2024

A medalha que começou num caderno

Por dentro do mundo de Patrícia Sampaio, bronze em Paris 2024

Patrícia Sampaio era uma má gestora de emoções. Enquanto treinava para os Jogos Olímpicos chegava até a ficar maldisposta. Chorava e sentia-se muito cansada. Ela própria, que é uma devoradora de documentários, admite que se alguém a estivesse a filmar, para fazer uma compilação de momentos do processo, essa pessoa iria recolher material “interessante”, mas “um bocado dramático”

A especialista em bulhas de roupão encontrou formas de lidar com a ansiedade e em Paris já era capaz de tomar conta dela. Além de um livro, acompanha-a para as competições um caderno. As folhas pinta-as com o que está a sentir e o stress segue o caminho da extinta brancura das páginas

ESTE É O CADERNO DE PATRÍCIA SAMPAIO

ESTE É O CADERNO DE PATRÍCIA SAMPAIO

novembro 2024

Entrando no edifício da Sociedade Filarmónica Gualdim Pais, em Tomar, é possível escolher dois caminhos. Virando à direita e subindo, encontra-se o palco que serve a banda da casa e que, diante de si, tem um piano de castigo virado para a parede. Inclinando a rota para esquerda e descendo, está o tatami. São mundos opostos abrigados pela generosidade do mesmo teto.

No dia de inauguração do mês de agosto, a Sociedade Filarmónica Gualdim Pais foi o ponto de encontro de muitas pessoas que, servidas por uma televisão grande, acumulavam olhares na mesma direção. A atenção almejava Patrícia Sampaio, judoca moldada naquela casa desde os nove anos e que fora emprestada aos Jogos Olímpicos de Paris para de lá trazer uma medalha de bronze nos -78kg.                                                                           

“Agora, as coisas estão um bocadinho mais tranquilas. As primeiras semanas foram complicadas.” Patrícia Sampaio ainda não teve “muito tempo para pensar e fazer uma retrospetiva” sobre o que alcançou na capital francesa. “Muita coisa me tem atropelado”, diz.

Até ao pódio nos Jogos Olímpicos, a esfera de reconhecimento da atleta de 25 anos estava circunscrita a Tomar. Algumas pessoas sabiam da sua existência pelo que já antes tinha conseguido na formação (sagrou-se duas vezes campeã da Europa em juniores e uma vez em sub-23) e a nível sénior (ficou em terceiro no Europeu, em 2023), mas nada comparável ao efeito provocado pelo resultado mais vistoso da carreira até ao momento.

Quando regressou a Portugal, andava com a medalha para todo o lado. Tinha sempre um naco de bronze à espera no carro para o caso de alguém pedir para o ver. Entretanto, optou por deixar o comprovativo passado pela glória mais tempo em casa. Por andar de mão em mão, o desgaste já se ia apoderando dele.  

“As pessoas sorriem para mim. Sabem quem eu sou, mas eu não sei quem elas são. É como se todos nos conhecêssemos.” Até ao dia em que se é assaltado por tal sensação, ninguém sabe ao que é que equivale o aparato de ganhar uma medalha olímpica. “Isto é uma escala completamente diferente de tudo o que já tinha vivido na minha vida. Na cidade, no país, a nível internacional, isto é um reconhecimento completamente diferente.”

Patrícia é filha de Tomar, não se sente em casa em mais lado nenhum. É um meio pequeno comparado com as metrópoles onde estão os clubes que dominam o desporto nacional, mas recusa-se a permitir que representar a Sociedade Filarmónica Gualdim Pais lhe algeme a ambição.

Se não há, inventa-se

Visitar o ninho do sucesso de Patrícia Sampaio implica ser-se recebido por um zumbido de crianças entusiasmadas com o esgotar do dia e o aproximar da hora de ir para casa. A Sociedade Filarmónica Gualdim Pais não é um mero clube de judo. Associada à coletividade está uma creche, um jardim de infância e espaços destinados a atividades extracurriculares pelos quais vamos passando ao entrarmos pelas instalações. No trânsito dos corredores cruzamo-nos com um pequeno conjunto de raparigas equipadas para uma aula de dança. Como não podia deixar de ser, há uma banda. As outras modalidades desportivas são os trampolins e a natação.

O cardápio pode ser vasto, as condições para uma atleta de alta competição nem tanto. Patrícia Sampaio teve “que aprender a ser mais independente e a adaptar” os métodos de trabalho. “Quando é necessário, passo mais tempo em Lisboa com condições que o clube não me consegue oferecer. Vou tentando contornar dessa forma.”, descreve. “Coisas como fisioterapia e banhos de gelo, quando estou em Lisboa, faço no Centro de Alto Rendimento do Jamor. Quando estou aqui, faço todos os dias banho de contraste no chuveirinho do balneário. Crioterapia faço em casa. Em termos de fisioterapia, consegui uma parceria com um fisioterapeuta em Tomar, não é do clube.” 

O maior benefício de atletas que representam emblemas badalados é terem, num único sítio, todos os departamentos que lhes preservam as habilidades. Mesmo que a Sociedade Filarmónica Gualdim Pais não ofereça tal estrutura, todos os anos Patrícia mostra que isso “não é um limite” que impossibilite “trabalhar o suficiente para estar neste nível” e obter “resultados de relevo”.

A judoca também beneficia de uma parceria com um ginásio local que lhe permite realizar trabalho físico fora das instalações do clube. “Estamos constantemente a trabalhar para melhorarmos as condições, não só para mim, mas para os outros atletas que estão aqui a crescer”, refere. É por isso que junto de uma das arestas do tatami estão algumas máquinas disponibilizadas com toda a boa-vontade, mas insuficientes para, por si só, esculpirem o corpo de uma atleta olímpica.

Tudo para calar o pai e o irmão

Algumas dores nas pernas acorrentam o andar de Patrícia, culpa do primeiro treino do dia. Depois dos Jogos Olímpicos, tirou férias e está a voltar ao ritmo de olhos postos no campeonato nacional, no final de novembro, e, caso se sinta em boa forma, competir no Grand Slam de Tóquio, no início de dezembro. O chinelar é interrompido por acenos e abraços de pessoas conhecidas. Dá claramente a ideia que a nuvem de simpatia foi fundada antes de Paris 2024 até porque, no Carnaval, já havia quem se mascarasse de Patrícia Sampaio.

É segunda-feira e há uma voz que diz: “É o primeiro treino da semana e não podemos deixar a semana mal vista”. Igor Sampaio é treinador, irmão de Patrícia e responsável pela secção de judo da Sociedade Filarmónica Gualdim Pais. De bigode farfalhudo e barba densa, está a dar uma aula a atletas mais novos. “Isto parece uma luta de galos”. O reparo é lançado a dois rapazes que se engalfinham para se tentarem projetar um ao outro e, face ao bloqueio de forças, acabam por descurar a técnica que Igor lhes está a tentar ensinar. Dos mais velhos aos mais novos, a Sociedade Filarmónica Gualdim Pais tem 92 judocas federados. Contando com as crianças que, em parceria com escolas locais, o clube orienta em contexto de Atividades de Enriquecimento Curricular, o número ronda os 300.

Igor Sampaio é uma das grandes razões para Patrícia Sampaio nunca ter deixado a Sociedade Filarmónica Gualdim Pais para representar qualquer outro clube de renome. Quando ainda era menor, chegou-lhe uma chamada de um grande de Lisboa. “Ligaram-me e eu disse para falarem com o meu irmão, o meu treinador. Disse que, à partida, sabia qual ia ser a resposta.” Conclusão, o telefone de Igor nunca chegou a tocar. “As pessoas respeitam muito sermos irmão/irmã, treinador/atleta e sabem a ligação que tenho com ele e com a cidade.” Além disso, “no judo, não há muito essa coisa dos clubes irem buscar alguém” a outro lado, pois a iniciativa parte de quem se quer mudar.

Reforçada a lealdade à Sociedade Filarmónica Gualdim Pais, nunca mais surgiu nenhuma proposta para sair. Foi aquele o sítio que a acolheu aos sete anos. Nessa circunstância, desistiu da modalidade, mas regressou, mais tarde e em definitivo, aos nove anos. “Não consegui fugir ao judo por causa do meu irmão e do meu pai. Sempre insistiram muito comigo. Eu não achava piada. Era um bocadinho para os calar. Acabei por gostar e ficar. A partir daí, foi muito natural. Simplesmente continuei e tornou-se a minha rotina”, relembra. “Foi aqui que cresci, foi aqui que fomos crescendo e que nos fomos adaptando às dificuldades que fomos tendo ao longo do tempo.”

Agradar às expectativas familiares fez com que, até certo ponto, vivesse os sonhos do pai e do irmão. Igor Sampaio, antes de ser treinador, também foi atleta. Devido à doença crónica que lhe limita as articulações, teve que procurar uma alternativa para se manter no judo. Desta forma, não é preciso ir muito longe para encontrar a grande referência de Patrícia.

O modo besta

São 20h. Em muitas casas, é altura de iniciar o último repasto do dia. Na Sociedade Filarmónica Gualdim Pais, é altura de Patrícia voltar à carga. Terminado o treino dos mais jovens, entram em cena os mais graúdos. A figura de proa da sessão veste o quimono azul que lhe disfarça a largura dos ombros e coloca nos dedos anéis de ligaduras. O seu principal parceiro é o rapaz mais entroncado entre os presentes. Em geral, em todo o país é difícil encontrar mulheres que compitam nos -78kg, então imaginemos em Tomar. É uma situação que Patrícia compensa com estágios internacionais.

Nas escadas que desembocam no tatami vigiado por um painel com o sereno olhar de Jigoro Kano, nipónico fundador do judo, todos são obrigados a passar pelo emoldurado dorsal que Patrícia Sampaio utilizou na estreia em Jogos Olímpicos, em Tóquio. Sobra espaço para acrescentar o de Paris ao lado de outros registos fotográficos de atletas da Sociedade Filarmónica Gualdim Pais a participarem em competições internacionais.

A sessão inicia-se com uma saudação. É Patrícia que, ajoelhada, a conduz. Não tarda está a agarrar o parceiro pelas golas e mangas, realizando repetições explosivas da mesma técnica. Na fase de aquecimento, os sete atletas poupam-se às projeções. Limitam-se a simular o movimento que levaria a ela. Mais tarde, evoluem para exercícios que não poupam as costas a quedas chapadas no solo. O pavimento é ligeiramente amolecido, nada que reverta a sentença de um corpo condenado a ficar dorido com tantos impactos.

Patrícia Sampaio, mais do que em casa, está no seu mundo. Traduz para linguagem gestual o conceito de concentração: olhar penetrado, agarrões intencionais, movimentos pensados. O esforço é ritmado com expirações audíveis. Estamos perante o modo besta da judoca que, momento antes, quando a entrevistámos, verbalizou a dúvida sobre se o tom de voz que estava a usar era ou não demasiado baixo.

No dia em que conquistou a medalha nos Jogos Olímpicos – juntando-se a Nuno Delgado (2000), Telma Monteiro (2016) e Jorge Fonseca (2020) no grupo de portugueses a alcançarem o bronze na competição –, o interruptor que ativa esta versão de Patrícia estava ligado. Foi assim que, em Paris, derrotou a queniana Zeddy Cherotich, em 20 segundos, a francesa Madeleine Malonga, em 40, e a chinesa Ma Zhenzhao, em 49. Alice Bellandi foi o grande entrave para sonhar com o ouro. Na meia-final, a portuguesa foi derrota pela transalpina, desfecho que não a impossibilitou de subir ao pódio ao triunfar sobre Rika Takayama.

Não sei se é muito romântico dizer isto, mas nasci para a parte da competição. É onde me sinto melhor e onde consigo esquecer o mundo e só existe aquilo. No dia a dia sou muito mais sensível, chorona e teimosa”, confessa.

Em alguns aspetos, a vida transformou-se. Noutros, continuou manifestamente igual. Nem a medalha conseguiu, para já, trazer até Patrícia um grande apoio financeiro. “Aquilo que aumentou foi a bolsa do Comité Olímpico. Agora, estou num nível especial que criaram para medalhados”, refere. No entanto, mantém a “esperança de que apareçam alguns patrocínios”.

Mesmo à entrada das instalações da Sociedade Filarmónica Gualdim Pais, há um quadro de cortiça. O cabeçalho vermelho diz “Informações Diversas” para logo o material afixado contradizer a legenda. Os pioneses seguram, só e apenas, páginas de jornais desportivos com notícias e entrevistas de Patrícia Sampaio, a protagonista principal. “Espero ainda ir muito mais longe. Ainda há muito por onde crescer. Se assim não fosse, tinha chegado agora a casa e terminado a carreira.” Espera-se que outras parangonas ali se juntem para anunciarem novas conquistas.