“Os desenhos da minha filha eram sempre duas bonecas, uma pequena e outra grande.
E a psicóloga perguntava:
- Esta és tu?
- Não, esta é a minha mãe.”
“Os desenhos da minha filha eram sempre duas bonecas, uma pequena e outra grande.
E a psicóloga perguntava:
- Esta és tu?
- Não, esta é a minha mãe.”
“Mãe, eu vou crescer?”
Laurinda viu os primos crescerem e ela não. Estranhava que estivessem cada vez mais altos e ela não. Tem 57 anos e mede um metro e doze centímetros. Tem a doença mais comum entre as pessoas com nanismo: acondroplasia. Esta é a história dela, mas também de David, Sandra, Micaela e Milena. Há mais de 700 displasias ósseas catalogadas e a maioria resulta de um defeito genético logo à nascença
NOVEMBRO DE 2025
Grávida da única filha aos 29 anos, Laurinda Mota teve, pela primeira vez, o nome associado ao seu um metro e 12 centímetros de altura. Entre a infância isolada, a estranheza do próprio corpo e a incapacidade de alcançar todos os degraus, chegou o diagnóstico: uma displasia óssea chamada acondroplasia, a doença do desenvolvimento do esqueleto mais frequente entre pessoas com nanismo.
“Os meus pais não estavam preparados para me explicar o porquê de não ter crescido, claro que eu achava estranho os meus primos estarem a ficar mais altos do que eu”, conta ao relembrar quando, por volta dos sete anos, deixou de se sentir como as outras crianças.
A única de sete irmãos a viver com esta condição, Laurinda desviou-se de um caminho que a mantinha protegida. Deixou Peroselo, uma aldeia em Penafiel, para ir para o Porto, aos 14 anos, quando decidiu “aprender as necessidades e comportamentos sozinha”, entre as paredes de oração da sua nova morada. Foi num colégio católico que a vida ganhou outro significado e disciplina. Laurinda tinha de ser a filha que seguia os estudos, a que teria “um futuro melhor” para que os olhares hostis e as marcas que a distinguiam desaparecessem.
Catorze anos passaram e o caminho traçou-se desta vez em direção a Lisboa, ainda que sem trabalho ou plano definido. Hoje, aos 57 anos, o percurso de Laurinda é transversal ao de todos os que, como ela, vivem com esta condição: “Quando queria chegar a um balcão, ninguém me via, quando queria tocar numa campainha, não chegava. Tinha um pavor de entrar num sítio em que não conseguisse chegar”.
A vida seguiu sempre agarrada aos bancos que a deixam alcançar os lugares que a sua altura não permite. A viver nos Olivais há mais de 20 anos, com o marido e a filha de 27 anos (e também ela anã), a casa revela-se um campo de obstáculos, entre armários altos e uma banheira cada vez menos acessível. “Gostava de ter tido uma casa adaptada”, diz Laurinda.
O pedido foi feito há doze anos à Câmara Municipal de Lisboa (CML), para cumprir o “sonho” de ter uma cozinha ajustada. Quatro anos depois, representantes da CML chegaram a visitar a casa de Laurinda e prometeram soluções que se perderam no silêncio e nada pode ser feito sem o aval da Câmara Municipal. O Expresso tentou contactar a autarquia, mas não teve qualquer resposta até à publicação desta reportagem.
Com carta de condução desde 1996, “a maior adaptação foi no carro”, recorda. A compra do primeiro veículo adaptado, com uma peça a ligar os pedais ao volante. “Foi a melhor coisa” que fez para se deslocar, numa cidade que não parava para reparar em Laurinda. Nos autocarros, com uma filha nos braços, “tinha de apoiar as mãos atrás da cabeça dela para não bater nos ferros”, quando ninguém lhe cedia o lugar.
Encontrar respostas
A filha de Laurinda, Sandra Mota, que também nasceu com acondroplasia, prepara-se para comprar o primeiro carro. Está previsto um apoio da Segurança Social para financiar as adaptações necessárias no veículo. No entanto, é preciso apresentar três pedidos de orçamento e a dificuldade em encontrar diferentes locais que fizessem as adaptações deitou por terra a oportunidade de recorrerem, pela primeira vez, a este benefício.
Por estar “habituada a fazer as coisas sem perguntar”, Laurinda reconhece que acaba muitas vezes por não saber da existência deste género de apoios. Porém, tem encontrado respostas e soluções junto da Associação Nacional de Displasias Ósseas (ANDO). “Qualquer dúvida que tenha, pergunto-lhes sempre, foram eles que me mandaram uma folha com aquilo em que o Estado nos podia apoiar.”
A ANDO Portugal surgiu de um protesto de inconformismo. Inês Alves, fundadora, é mãe de uma criança com acondroplasia, “uma das displasias mais estudadas”, mas com pouca informação disponível em português, e, na sua maioria, divulgada numa linguagem técnica e pouco acessível. “Isso levantou-me muitas questões em relação a como é que as outras famílias enfrentavam estes desafios”, recorda.
Com a colaboração de um médico geneticista dedicado à área das displasias ósseas, a associação foi criada em maio de 2015, com a missão de desmistificar e otimizar a informação, partilhando “informação atual, que esteja validada e permita que as pessoas intervenham nos processos de decisão”, de modo a confrontar um diagnóstico raro, como é o das displasias ósseas, conhecido popularmente pelo termo “nanismo”.
“A pessoa que está ali à frente [médico] percebe pouco ou muito menos do que nós. Isso é um choque para quem está à espera de encontrar respostas.” Tal como aconteceu com Laurinda, Inês percebe que as pessoas se aproximam da associação principalmente quando existe uma necessidade de auxílio e de mais informações, ainda que receosas com o que podem ganhar com esse apoio. Além disso, é comum recorrerem à ANDO em situações de maior dependência clínica ou de diagnóstico pré-natal, cada vez mais frequente.
Entre mais de 700 displasias ósseas catalogadas, número avançado por André Travessa, médico geneticista e coordenador da equipa de Displasias Ósseas do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, a maioria resulta de um defeito genético à nascença. O diagnóstico não tem data certa para surgir, nem existe cura associada: apenas um acompanhamento multidisciplinar ao longo da vida para evitar possíveis alterações cardíacas e problemas nas articulações, assim como adaptações do quotidiano que respondam às necessidades do corpo.
Hoje a ANDO já tem mais de 250 associados.
“Nunca é para elas”
A acompanhar estas pessoas desde 2015, Inês Alves considera a acessibilidade uma das adversidades mais críticas nas suas lutas diárias. “Pensadas para as cadeiras de rodas”, as casas de banho catalogadas como acessíveis são inacessíveis para quem sofre de displasia óssea. “É tudo alto e muito desproporcional.”
Raul Tomé, autor do livro “Deficiência, Nanismo e Mercado de Trabalho: Dinâmicas de Inclusão e Exclusão”, editado em 2019, sublinha o sentimento de desamparo que encontrou nas pessoas que acompanhou em 2014, à época do estudo. Raul consolidou a certeza de que a vida destas pessoas é, desde sempre, feita à margem, com esforço redobrado e respostas encontradas por iniciativa própria.
"No caso das pessoas com nanismo, relatavam muitas vezes que, quando existia alguma alteração na lei, como baixar a altura das caixas multibanco, elas sabem que não foi feito para elas. Sabem que foi feito para uma pessoa que está numa cadeira de rodas", diz Raul Tomé. E continua: "Acabam sempre por beneficiar, se é que se pode usar este termo, de forma colateral de algo que é feito para os outros e nunca para elas".
Na tentativa de que as limitações não imponham limites à qualidade de vida, todos procuram contornar cada adversidade, quer seja um degrau mais alto, um balcão, uma mesa de um restaurante ou uma loja de roupa sem tamanhos pensados para adultos de baixa estatura.
Para Inês Alves, estas pessoas precisam de desenvolver uma autodefesa e resiliência muito acima do normal. Necessitam de uma aceitação interior que lhes permita enfrentar o mundo lá fora, conscientes de que, ao saírem à rua, inevitavelmente vão ouvir comentários ou ver dedos apontados na direção dos seus corpos. Criadora da única associação dedicada a displasias ósseas, sabe, através das partilhas que recebe, os desafios para os quais a própria filha deve estar preparada.
Currículo negado
Micaela Cardoso, de 39 anos, sofre, tal como a filha, de uma mutação do gene ACAN (fundamental para a estrutura da cartilagem, ajudando a criar a sua força e a resistência). Vive na ilha açoriana do Pico, a mais de 1600 quilómetros de distância do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, onde é acompanhada nas consultas de André Travessa. Foi o médico que a encaminhou até à ANDO.
Micaela Cardoso não tem o sonho de se casar. Não por descrença no amor, mas porque se reconhece fora das expectativas dos outros. Com humor e lucidez, recusa a imagem construída em torno do vestido branco e da entrada da noiva. “Iria parecer que estava na primeira comunhão.” Se há quem rejeite o sonho do altar, outros carregam desde cedo a certeza de que não são suficientemente válidos para sonhar construir uma família. A falta de valorização pessoal, muitas vezes enraizada na infância, “inibe-as de se apresentarem ou de se verem como alguém de valor” e leva-as a permanecer na casa dos pais por mais tempo, explica Inês Alves.
O acesso ao trabalho é uma das barreiras a serem ultrapassadas. Laurinda Mota, por exemplo, nunca mencionava a sua condição antes de uma entrevista de emprego. Contudo, depressa se apercebeu que, quando a viam entrar e constatavam que media pouco mais de um metro de altura, diziam que a vaga já estava ocupada. Apesar da existência de legislação que prevê incentivos à contratação de pessoas com deficiência – Lei n.º 4/2019, de 10 de janeiro – o cumprimento dessas normas é negligenciado pelo próprio Estado, aponta Raul Tomé no livro que estuda as dinâmicas de inclusão no mercado de trabalho, deixando as pessoas entregues à sua sorte e sem oportunidades.
A complexidade da lei é mais um obstáculo invisível à inclusão. Cláudia Torres, advogada especializada em casos de deficiência, reforça que a legislação é dispersa e de difícil interpretação, tanto para empregadores como para os próprios profissionais. Sem apoio jurídico, e perante diplomas demasiado genéricos, torna-se difícil saber o que pode ser reivindicado. O que poderia ser um direito transforma-se, nestes casos, numa oportunidade perdida, que nem o próprio Estado faz cumprir.
“Tens de ir para o circo”, ouvem demasiadas vezes, empurrados para “o riso fácil do público”, explica Raul. O mercado de trabalho, tal como os balcões, os multibancos ou os degraus, continua fora do alcance de quem só precisa de um apoio. Seja esse apoio um banco, uma cadeira adaptada, ou apenas um olhar diferente.
Como os outros
“Eu queria ser ator, mas tinha um grande respeito pela profissão, sempre fui ao teatro. Mas achava que era demasiado para mim.” David Almeida nunca viu a sua condição como um entrave a uma carreira de ator. Não achou tratar-se de um sonho que a sua estatura pudesse atrapalhar, mas vivia com a sensação de que talvez ele próprio fosse insuficiente para a grandeza que o teatro demanda. Apenas tão pequeno quanto qualquer ser humano se deveria sentir por respeito à arte.
“Não chegas, vais buscar um banco. Ela [mãe de David] fez isto para me preparar para a vida. Em casa dizia-me: ‘Tu és anão, mas és como as outras pessoas’”
David Almeida
David Almeida tem 55 anos e nasceu com acondroplasia. Apercebeu-se de que o melhor trunfo em contexto social era o sarcasmo: fazer piadas consigo antes que fossem os outros a fazer. “A minha mãe estava grávida e era ótimo porque não se notava. E quando perguntavam se era menina ou menino ela dizia hipótese C”, diz David.
Defende que o preconceito está na cabeça das pessoas. “Se tu fores preconceituoso, ignoro-te e não vou discutir.” Mas nem sempre foi assim. David frequentou o colégio dos Salesianos, onde não esquece um episódio marcante: “O professor de eletrotecnia era muito estúpido. Uma vez disse-me ‘vá ali buscar a caixa de ferramentas. Ah, não podes porque és anão, não chegas lá’. Eu peguei no martelo... e o martelo não acertou por acaso”. Assim como três colegas que o defenderam, alegando que o professor também lhe tinha faltado ao respeito, David foi expulso do colégio.
Descreve uma infância marcada pelos desafios da acondroplasia, mas também por um sentido de pertença. Foi um processo de “crescimento lento”, ironiza. A evolução deve-a em boa parte às pessoas que o rodearam. Cresceu entre amigos que o incluíam nos jogos de futebol e fez parte do grupo de ginástica. A elasticidade natural do corpo permitia-lhe acompanhar os colegas sem que a diferença física fosse um obstáculo. “Nós [acondroplásicos] temos uma grande elasticidade. Fazia cambalhotas e mortais.”
O contexto escolar dos anos 80 encontrava-se longe de estar preparado para lidar com as necessidades específicas de alunos com nanismo, tal como muitas escolas continuam a falhar, ainda hoje, na garantia de condições de equidade. Com cadeiras desproporcionais, desenhadas para corpos de estatura média, o constrangimento de não chegar com os pés ao chão propiciou que o ator desenvolvesse a condição com que lida hoje. “Como havia uma grande pressão sobre a lombar, começou a aumentar a compressão. Fez com que eu começasse a ter compressões medulares que afetaram especialmente a perna direita.”
Quando algo comprime a medula espinhal e interrompe o fluxo de mensagens nervosas na coluna, o funcionamento normal dos órgãos e membros fica comprometido. David faz fisioterapia regularmente e enquanto a perna esquerda responde normalmente ao esforço, a direita, afetada pela compressão medular, tem dificuldade em assimilar os estímulos. Esta limitação faz com que o progresso obtido se perca rapidamente, exigindo uma dedicação contínua. Uma interrupção de poucos dias, como uma semana de descanso, resulta em retrocesso, tornando o esforço anterior praticamente inútil.
Com 80% de incapacidade, vive sozinho em Lisboa. Apesar dos desafios diários que a condição impõe, mantém uma gestão autónoma da sua rotina e conta pontualmente com o auxílio de uma empregada doméstica. Reconhece a necessidade constante de apoio, dado o conjunto de problemas de saúde que enfrenta, assim como as despesas associadas ao tratamento, nomeadamente na compra de medicamentos e as frequentes consultas médicas. Muitas vezes, a demora nos serviços públicos obriga-o a recorrer ao setor privado.
Consciente das limitações que o futuro reserva, recusa-se a abdicar do máximo grau de autonomia possível, lutando para preservar a dignidade e o controlo sobre a própria vida durante o maior período de tempo possível. Para pequenas deslocações, apoia-se num andarilho e para distâncias maiores, recorre à cadeira de rodas.
Contudo, a mobilidade é dificultada por infraestruturas inadequadas. Muitas das rampas existentes apresentam inclinações tão acentuadas que exigem uma força física desmesurada para serem ultrapassadas, ou, no sentido contrário, tornam-se numa "pista de skateboard”. “Já levas com a deficiência, mas quando levas com esses obstáculos, isso é que te faz sentir deficiente. Queres ser autónomo e não consegues. Depender de outros é horrível”, diz David.
“Os anões estão em vias de extinção”, antevê David. Os avanços da medicina pré-natal tornaram possível detetar a acondroplasia ainda durante o desenvolvimento embrionário, o que coloca nas mãos das famílias a decisão de prosseguir ou não com a gravidez. Esta possibilidade pode conduzir a um futuro onde as pessoas com nanismo sejam cada vez mais raras, ou, no limite, que desapareçam.
Uma pessoa com acondroplasia tem 50% de probabilidade de transmitir o gene alterado a cada filho, independentemente do sexo. No entanto, cerca de 80% dos casos surgem de mutações novas, ou seja, os pais não têm acondroplasia e a mutação ocorreu espontaneamente no óvulo ou no espermatozoide. No caso de David, ambos os progenitores não eram portadores da mutação.
Desde cedo ouviu da mãe uma máxima simples, mas definidora do seu carácter: “Tu és anão, mas és como as outras pessoas. Tens uma cabeça igual, se não chegas, vais buscar um banco.” Herdou da mãe a ideia de que não alcançar um objeto era apenas um convite para improvisar e encontrar soluções.
Quando os médicos previram que David talvez nunca pudesse caminhar, porque as pernas não iriam suportar o peso do tronco e da cabeça, a mãe desafiou o prognóstico. Inventou exercícios, improvisou pequenos aparelhos caseiros e acompanhou cada esforço, até que, aos três anos e meio, David deu os primeiros passos.
A mãe de David morreu há cerca de um ano.
18 operações em 18 anos
Sandra Mota partilha o comprimento do passo com a mãe. Filha de Laurinda, herdou a mesma condição. Aos sete anos, começava já uma longa caminhada de procedimentos de alongamento de membros para aumento de altura.
Até atingir a maioridade passou por cerca de 18 operações. Hoje tem 27 anos e 1,44 metros de altura. É mais alta do que a mãe, mas mesmo antes das operações já o era. “Na psicóloga, os desenhos dela [Sandra] eram sempre duas bonequinhas, uma pequenina e outra grande. E a psicóloga perguntava:
-Esta és tu?
-Não, esta é a minha mãe. Esta sou eu.”
Laurinda engravidou aos 30 anos, morava ainda no Bairro do Rego, em Lisboa, e trabalhava como ama. Mãe solteira, encontrou ajuda junto da Ajuda de Mãe, uma associação de solidariedade social, que dá apoio em situação de vulnerabilidade.
Aos seis meses de gestação, teve de ser internada. A baixa estatura, que contrastava com a barriga de dilatação avançada, tornava a sua mobilidade praticamente nula. Os médicos concluíram que o parto teria de ser prematuro e iniciaram as sessões diárias de fisioterapia na tentativa de prolongar ao máximo a gravidez. Sandra nasceu pouco mais de dois meses depois do internamento e necessitou de cuidados intensivos em incubadora.
Mais difícil do que enfrentar as adversidades de uma displasia óssea é vivê-las por dois: primeiro no próprio corpo e depois no de uma filha. No primeiro ano de escola primária, Sandra foi vítima de bullying por parte de quem se espera proteção: a professora.
Laurinda só viria a saber dos incidentes perto do final do ano letivo quando, num dos dias em que foi levar a filha à escola, foi recebida ao portão pelos pais dos colegas. A dor daquelas palavras “nunca mais se esquece”.
Sentiu-se obrigada a transferir a filha de escola quando percebeu que nunca haveria consequências para a professora. Quando expôs o caso à diretora percebeu que ela já estava ao corrente da situação. Disse-lhe que não podia despedir a professora que tinha agredido a sua filha.
Para Laurinda, os episódios de agressões explicam algumas atitudes e comportamentos da filha, que “sempre foi muito fechada”.
Sandra cresceu entre dores no corpo, constantes operações, e perguntas sem resposta que a angustiavam. O caminho que escolheu para se tornar independente levou-a a trabalhar com crianças em Atividades de Componente de Apoio à Família (CAF) e às quais quer proporcionar uma experiência oposta à que viveu. "Os pais, os miúdos, toda a gente gosta dela", conta a mãe.
Sem diagnóstico
De Portugal ao Brasil, a distância mede-se em dores, esperanças e noites mal dormidas. Sandra e Milena Magryd nunca se cruzaram, mas partilham a experiência de terem nascido com uma forma rara de nanismo e de serem filhas de mulheres que fizeram da maternidade uma forma de resistência.
Em 2019, Renata e Milena deixaram o Brasil e vieram para Lisboa em busca de novas oportunidades. Milena tem displasia geleofísica, uma condição genética rara que se manifesta em baixa estatura, deformações nas mãos e nos pés, e contraturas nos músculos das pernas, o que a obriga a caminhar apenas com a parte da frente dos pés, sem apoiar os calcanhares no chão. Este tipo de nanismo, com menos de 30 casos conhecidos até hoje, afeta também o coração e os pulmões, devido ao espessamento das válvulas cardíacas, podendo levar à insuficiência respiratória e, em muitos casos, à morte precoce.
Milena é um desses cerca de 30 casos identificados em todo o mundo. Durante grande parte da sua vida, o diagnóstico permaneceu desconhecido para ela, para a mãe e para os próprios médicos. No Brasil, Renata, a mãe de Milena, percorreu uma longa lista de especialistas, sem nunca obter respostas conclusivas. Os exames apontavam apenas “um problema nos ossos, que não se desenvolvem”.
A expetativa era conseguir o diagnóstico antes de Milena Magryd completar 12 anos para tentar recorrer ao Vozogo, também conhecido como vosoritide, um tratamento que passa por uma injeção diária, administrada para aumentar a velocidade de crescimento em crianças com acondroplasia, mas que precisa de ser iniciada antes da puberdade. Aos 13 anos, Milena continuava sem uma denominação para a sua doença e, simultaneamente, Renata adiava contar à filha os pressupostos médicos que indicavam a impossibilidade dela crescer.
As respostas chegaram apenas quando atingiu a maioridade, depois de um episódio que foi um ponto de viragem. Em fevereiro de 2023, Milena preparava-se para viajar sozinha pela primeira vez, com destino ao Brasil, a fim de visitar o país natal para celebrar o aniversário do irmão. A viagem, pela companhia aérea TAP, representava um passo importante de emancipação.
Maratona burocrática
Ainda que autónoma, a sua condição impõe-lhe a necessidade de apoio para este tipo de deslocações. O auxílio é essencial para o transporte de bagagem e interações nos tão intimidantes balcões de controlo de fronteira, cujas alturas não estão pensadas para pessoas com baixa estatura. Na semana anterior à partida, foi submetido um pedido de assistência especial e, na véspera do voo, a mãe, Renata, dirigiu-se ao balcão da companhia aérea para confirmar se tudo estava devidamente validado.
Garantida a assistência, com as malas preparadas e um enorme desejo de alcançar uma nova meta, poucas horas depois Milena estava pronta a embarcar. Às seis da manhã do dia do voo, mãe e filha chegaram ao Aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa, para fazer o check-in. Foi então que o funcionário ao balcão anunciou: “Há um problema com a emissão do bilhete”. Renata clarificou que ainda no dia anterior havia confirmado todos os dados. A resposta veio rápida, mas vaga: “A cadeira de rodas está aí disponível para ela, mas ela está com problemas no embarque”.
O que se seguiu foi uma verdadeira maratona burocrática, em que, a cada movimento, a linha de chegada parecia mais distante e os seus contornos cada vez mais indefinidos. Foram redirecionamentos de balcão em balcão, chamadas para o call center, três horas a percorrer o aeroporto sem qualquer resposta concreta. Ninguém sabia dizer qual era exatamente o problema, como resolvê-lo, ou se Milena iria conseguir embarcar. “Eram nove horas, o voo marcado para as nove e meia e eu ainda a tentar ligar para o call center”, relata Renata. “Tenho um pouco de dependência de algumas pessoas e viajar de avião seria justamente uma barreira que eu queria superar. A minha intenção era provar a mim mesma que conseguia fazer certas coisas sozinha e viajar seria uma delas”.
Entraram com um processo contra a companhia aérea, mas a ausência de provas concretas impediu não só a resolução desejada como também o reembolso da viagem. A mãe sentiu-se impotente e desamparada: “Se eles me explicassem qualquer coisa, eu estava aberta a diálogo e entenderia. Queria uma explicação, e naquele momento eles não me deram nada”. Ainda no aeroporto, entre a frustração e a incerteza, Renata decidiu procurar apoio e contactou a ANDO. Do outro lado da linha, Inês Alves, presidente da associação, perguntou pelo médico responsável de Milena para que pudesse emitir um parecer clínico que comprovasse que ela estava apta a viajar. Renata respondeu:
- “Ela não tem médico, nem número de utente.
- “Não tinha, porque a partir de hoje vai ter”.
Foi assim que chegaram até André Travessa, médico geneticista e coordenador da equipa de Displasias Ósseas do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte. Pela primeira vez, Milena teve acesso a um diagnóstico claro e conclusivo e a uma equipa médica que, verdadeiramente, a viu, escutou e acolheu.
A experiência, embora exasperante, teve uma “repercussão positiva”, conta Milena. Sentindo-se injustiçada, a jovem partilhou o caso na rede social Instagram. A publicação teve um grande alcance, especialmente no Brasil, onde até o Instituto Nacional de Nanismo escreveu um artigo sobre o sucedido. Em Portugal, a imprensa não noticiou o caso.
Nos comentários, multiplicaram-se as mensagens de apoio e os relatos de experiências semelhantes. Milena sentiu-se envolvida por uma onda de empatia e aceitação que nunca conheceu, e viu a sua comunidade crescer de forma repentina com milhares de novos seguidores. Durante a infância, Milena desenvolveu ansiedade social e um grande medo em sair à rua sozinha, consequência direta dos preconceitos sofridos. As redes sociais tornaram-se um “espaço seguro e confortável” para se expressar integralmente.
Num mundo onde as pessoas com deficiência continuam a enfrentar fortes entraves à inserção no mercado de trabalho, a vida de influenciadora digital trouxe-lhe, para além de um refúgio, um propósito: “Se eu não tivesse a rede social, acho que eu estaria totalmente perdida”. Atualmente, são mais de 800 mil as pessoas que acompanham o seu dia a dia através do Instagram, onde partilha a realidade de quem vive com uma displasia óssea, com muito humor à mistura.
A jovem brasileira não cruzou a meta e a ambição ficou suspensa à porta de embarque: “Tenho um pouco dessa dependência de algumas pessoas e viajar de avião seria justamente uma barreira que eu queria superar. A minha intenção era provar para mim mesma que eu conseguia fazer certas coisas sozinha e viajar seria uma delas”.
Embarcamos no voo (se permitido) que possibilita observar, com alguma distância, o estigma sobre as pessoas com nanismo. A bordo da língua portuguesa, diferentes sensibilidades se revelam. A sensibilidade linguística é essencial quando falamos de minorias, mais ainda quando se trata de grupos historicamente oprimidos na sua identidade social. Existem ideologias distintas quanto ao modo como as barreiras de linguagem (ou a sua inexistência) atuam no preconceito geral da sociedade.
Inês Alves vive de perto a experiência de várias pessoas com nanismo e propõe uma linguagem mais inclusiva. Almeja que, no futuro, a linguagem seja menos disruptiva para pessoas com displasias ósseas.
Essa preocupação com o impacto do vocabulário também se reflete na visão de Teresa Santos. Teresa ouve em “anão” um termo depreciativo. Admite que compreender a intenção com que a palavra é proferida tem um peso relevante. Contudo, a experiência própria determina que essa é uma barreira da sua sensibilidade pessoal.
Já David entende a linguagem como uma oportunidade. Partilha da consciência de que o vocabulário tem impacto, mas encara a questão de modo distinto. Reflete que é ineficaz explicar a uma criança que, do outro lado da rua, vai uma pessoa com uma displasia óssea. A explicação de que é “um anão, como os da Branca de Neve”, numa iniciativa que retire a carga negativa do vocábulo, tem, na visão de David, maior valor contributivo.
Não se trata apenas de atribuir um papel secundário à linguagem, crendo que o real combate se trava noutros campos. Existem convicções de que a permissão ou, por outro lado, a proibição de determinados termos prejudica o combate ao preconceito.
No centro deste debate paira a questão essencial: a forma como falamos molda o preconceito geral da sociedade? Quem tem o direito de definir quais as palavras a censurar?
CRÉDITOS
Reportagem Beatriz Carvalho, Carolina Pinho, Catarina Moreira, Daniela Felício, Nicole Russo e Vasco Magalhães
Imagem Catarina Moreira e Nicole Russo
Edição de vídeo Catarina Moreira e Daniela Felício
Ilustração Catarina Moreira e Vasco Magalhães
Webdevelopement João Melancia
Webdesign Tiago Pereira Santos
Coordenação Marta Gonçalves e Rita Ferreira
Direção João Vieira Pereira
Expresso 2025
