Os meus pais disseram que me queriam matarSina
Imaginem as pessoas na água a afogarem-se: quem vais escolher salvar primeiro?Salam
Fomos perseguidos por estarmos juntosSohrab e Fatemeh

O lugar onde nem eu nem tu queremos viver

Porquê? Não há casas, saneamento, frigoríficos, segurança, escolas, aquecimento, cuidados básicos de saúde. E há o quê? Histórias de violações, homofobia, violência, conflito, medo. É assim tudo tão horrível? Não, mas de certa maneira é. Moria, o maior campo de refugiados da Europa

Reportagem Marta Gonçalves Enviada a Lesbos (Grécia)

I.Escolher a vida ou a morte

“Nenhuma criança pode viver aqui.”

Estamos em Moria, junto ao portão ferrugento fechado que noutros tempos serviu de entrada à base militar que hoje é o maior campo de refugiados na Europa. Há uma pequena porta mesmo ao lado — com segurança a guardá-la. Está calor e dezenas de olhos observam-nos. Somos estranhos aqui.

Um homem que parece mais velho do que é toca-nos no braço para chamar a atenção. Olha-nos e diz algo numa língua que não compreendemos. Insiste. Quer falar. “Está a pedir para contar a história dele”, traduzem. Chama-se Sohrab e continua sempre a agarrar-nos o braço, sem força. “Vou buscar a minha mulher, Fatemah, e falamos. Por favor.”

Sohrab quer sair de Moria.

Enquanto se afasta vai espreitando para trás, para ter a certeza de que não nos perde de vista. Ele tem 25 anos, Fatemah 20.

Já sentados numa das esplanadas que há meses foi montada junto ao campo, vemos Sohrab calar-se de cada vez que a mulher fala. Estão os dois de mãos dadas. Ela é daquelas pessoas que sorri com os olhos, ele dos que quase nunca levanta o olhar do chão. Com a mão que tem livre, Fatemah agarra junto ao corpo uma pasta azul translúcida. Olhamos. Há duas ecografias. Nem precisamos de fazer a pergunta.

“Baby, baby, our baby”, diz-nos Fatemah. Sohrab sorri. É o primeiro filho.

“E se o vosso filho nascer aqui?”, perguntamos. Ainda não acabaram de lhes traduzir e já em uníssono respondem um prolongado “noooooo”. Ele leva as mãos à cabeça e suspira, ela leva-as ao rosto enquanto acena negativamente. Esta era afinal a razão por que Sohrab tanto nos queria falar: “Dou-vos a minha voz, confio-vos a minha história. Preciso que se saiba, preciso que me ajudem. Nenhuma criança pode viver aqui”.

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Na pasta com os documentos há uma data riscada. A entrevista para iniciar o processo de asilo de Sohrab e Fatemah foi adiada

Sohrab e Fatemah tentaram passar da Turquia para a Grécia dez vezes. O barco foi ao fundo, voltaram à Turquia. Tentaram outra vez, foram enganados por traficantes e regressaram a território turco. Pagaram uma vez mais e mais uma vez não conseguiram chegar a Lesbos. “O dinheiro gastou-se todo nas viagens.” Por dez vezes entraram num barco de borracha quase tão fina como papel e vestiram coletes que nunca foram salva-vidas — nem salva-vidas alguma vez poderiam ser, pois são apenas pedaços de tecido fluorescentes como uma qualquer t-shirt.

Tinham chegado a Lesbos há menos de duas semanas.

Pelo norte da ilha, onde a Turquia e a Grécia quase se tocam separadas só por seis quilómetros e meio, está uma da travessias mais usadas. Pela noite, quem faz a patrulha dessas águas do lado europeu é a polícia marítima portuguesa, pelo dia a croata.

Parados no meio do Egeu, a bordo de uma embarcação vezes sem conta mais segura que um bote de borracha, sentimos a ondulação do mar que hoje “até está calmo”. Juntos à fronteira, exatamente a meio da travessia, olhamos para a esquerda, a Turquia, com as suas sombras das colinas e as luzes das povoações, e olhamos para a direita, a Grécia, com o castelo da aldeia de Mólivos iluminado lá no alto de uma colina, quase como um farol.

Não parece assim tão longe. Porque quem sai da Turquia vê já ali à frente a Grécia.

“Tínhamos demasiados problemas lá.” Lá é o Irão, onde Sohrab e Fatemah nasceram e de onde os dois fugiram faz meses, e é também o Afeganistão, onde viveram quando ele era futebolista de uma das mais importantes equipas da primeira liga. “O problema maior sou eu e a minha mulher - ela xiita e eu sunita. São religiões diferentes e as nossas famílias não queriam que estivéssemos juntos. Disseram-nos que tínhamos de nos separar. A família dela até mudou de casa, mas eu segui-os e encontrei-a.” Apesar de ambas muçulmanas, são doutrinas bem diferentes e motivo de vários e intensos conflitos no mundo árabe.

Hoje, ele continua sunita e ela xiita.

— Quando tomei a decisão de vir, os primos dela tentaram atacá-la com uma faca. Pus o braço à frente e acertaram-me.

Sohrab tem o antebraço rasgado de uma ponta à outra. Estica-o para nos mostrar.

— E depois, o que aconteceu?
— Disseram-nos que nunca poderíamos ter um filho juntos, mas agora temos. Casámos e desde então temos andado sempre a mudar de lugar porque temos medo das nossas famílias.
— Alguém sabe onde estão agora?
— No outro dia recebemos uma mensagem dos primos dela: “há muitos afegãos em Moria, é fácil encontrar-vos”.

A Lesbos não há outra forma de chegar: apenas por mar. Há três anos mais de um milhão de pessoas entraram na Europa, sobretudo pela Grécia e por Itália. Milhares morreram no Mediterrâneo quando tentaram atravessar. O campo de Moria tornou-se um hotspot da União Europeia para controlar e regular as chegadas à ilha. Todos os dias chegavam embarcações à costa.

Hoje já não é assim. Vão chegando. O último bote desembarcou no sábado. Vinham cento e poucas pessoas. Já é segunda-feira e ainda não apareceu mais nenhum.

Quem chega a Lesbos partiu sempre da Turquia. Escolhem habitualmente o norte da ilha, onde o ponto mais próximo entre os dois territórios fica a pouco mais de seis quilómetros de distância. Seja ainda no mar ou já em terra, as pessoas são recolhidas pelas autoridades e levadas para Moria

Queremos-te morto

6 de de janeiro: dia em que Jesus Cristo nasceu, diz a tradição ortodoxa, que é seguida quase pela totalidade dos gregos. 6 de de janeiro de 2018: dia em que Sina chegou a Lesbos, tem 25 anos, é afegão, está sozinho.

Veste-se todo de negro, encontramo-nos por acaso e tem-nos ajudado com algumas traduções. “Também posso contar a minha história. Mas não aqui, não hoje. Não quero ofender ninguém.” Acabou de nos traduzir uma entrevista com uma mulher iraquiana, que continua junto a nós. Há também gente do campo em nosso redor e ele diz-nos baixinho que tem dois “problemas”: “a minha religião e a homossexualidade”.

Nasceu em Wardack, nos arredores de Cabul, capital de um país ainda conservador e em que a pena de morte é castigo para o atrevimento de amar alguém do mesmo sexo. “Há demasiados grupos terroristas como a al-Qaeda e o Daesh. As pessoas da jihad têm a mentalidade de que um muçulmano deve rezar cinco vezes ao dia e, se não o fizer, tem de ser morto”, conta-nos um dia depois de nos termos conhecido.

— Já tentaram matar-te?
— Claro.

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A Sina tempo não falta. Muitas vezes vai até ao campo de Moria para ajudar quem chega a traduzir toda a informação

Vivia com os pais, terminou os estudos básicos mas não pode seguir para a faculdade porque era demasiado perigoso fazê-lo. Queria - quer - ser artista. “Pintor. Gosto de desenhar retratos.” Sina pega no telemóvel e mostra-nos mais: “Adoro maquilhagem, costumava fazer em mim e depois publicava no Facebook.”

— A minha família sabe o que eu sou. Disseram-me: 'Queremos-te morto'.
— A tua família?
— Sim. O meu pai e a minha mãe são muçulmanos. Queriam matar-me. Não me aceitam. Disseram-me: 'Possivelmente, se mudares, se fores um bom homem islâmico, aceito-te como meu filho. Se quiseres ser isso, não. És nojento, louco'.

No Afeganistão conseguiu um visto para o Irão. Entrou ilegalmente na Turquia e foi para Istambul. Fez contactos e procurou quem o ajudasse a comprar viagem para a Europa. Pagou quase 600 euros para que lhe arranjassem lugar num barco com mais 20 pessoas a navegar por duas horas até à costa da ilha grega.

O barco era velho, o motor deu problemas.

— Tiveste medo?
— Sim.
— Sabias que podias morrer?
— Sim, sabia. Muita gente avisou-me do perigo, aconselharam-me a fazer a viagem partindo de outro lugar, mas era muito mais caro e eu não tinha dinheiro. Foi um risco que aceitei porque não podia pagar nada mais. Quando me lembro do que aconteceu, acho tudo normal porque acabou.

Fecharam a Europa na madrugada de 20 de março de 2016, quando entrou em vigor o acordo entre a União Europeia e a Turquia. Desde então, quem chega não pode sair. Desde então, todos eles têm um papel com um carimbo vermelho que os proíbe de deixar Lesbos.

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O carimbo vermelho nos documentos de quem chega à ilha é o travão que os impede de seguir o caminho que planearam. “Limita-se a circulação dentro de Lesbos”, pode traduzir-se

Hoje bem menos gente entra na ilha, que se transformou numa barreira e onde milhares de pessoas se acumulam no mesmo lugar. Moria foi pensada como uma solução temporária, para alguns dias ou semanas. Há quem esteja lá há anos.

Enquanto caminhamos entre tendas e ruas de lama num acampamento que foi levantado ao lado da antiga base militar, procuramos alguém que fale inglês. Não é fácil, são sobretudo os mais novos que sabem. “O meu filho sabe”, responde-nos uma mulher de hijab negro e cabelos brancos. Vai levar-nos até ao filho. “Ali está ele. Abolfazl, vem cá.” É o mais novo da família Mirzaie, tem 10 anos, fala como adulto e veio do Afeganistão com o pai, a mãe e as quatro irmãs.

2123 pessoas morreram no Mediterrâneo a tentar chegar à Europa em 2018

Abolfazl tem de levantar a cabeça bem para cima até nos encontrar os olhos. Assim que nos apresentamos e dizemos de onde vimos, quase sem hesitar, guia-nos até à tenda.

Deixamos os sapatos à entrada, passamos para lá do pano azulão que faz de porta. O chão são paletes forradas com cobertores, o interior é escuro, ao fundo está o que parece ser uma cama mas na verdade é apenas um lençol estendido com duas almofadas e logo ao lado há garrafas de água, papel higiénico. A comida está guardada num saco pendurado no teto.

“Cuidado, não batam com a cabeça”, alerta-nos o pai Rasoul, de 45 anos. O aviso é tardio e vamos contra um saco meio transparente que tem fatias de pão guardadas. “Temos de o deixar aí porque se ficar no chão os ratos comem.” Afastamo-nos. A comida há de continuar a balançar por mais uns segundos, só vai parar quando todos estivermos sentados naquele espaço que não é maior do que uma despensa.

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A família conseguiu fugir toda (da esquerda para a direita): Rasoul (o pai), Mohamady, Parisa, Shafiqa (a mãe), Marai, Abdolfazl e Fariba

Fugiram a pé e depois a cavalo. Saíram de barco da Turquia rumo a Lesbos. Duas das filhas estão doentes: uma tem problemas cardíacos, outra nas costas. A mãe, Shafiqa, 39 anos, está a recuperar de um cancro.

“No Afeganistão eu queria aprender bem inglês para escolher um bom emprego no futuro. Uma das minhas irmãs queria ser médica e a outra polícia. Adorávamos as aulas mas não podíamos ir. Era perigoso. Viemos procurar uma boa vida, sem saber se chegaríamos vivos ou mortos.”

Abolfazl tem 10 anos mas já sabe o que é usar palavras dos crescidos para explicar os acontecimentos inexplicáveis: “É uma escolha entre a vida e a morte. Não há mais nenhuma opção”.

É de manhã. Estamos agora outra vez junto ao portão enferrujado, à entrada para Moria, o maior campo de refugiados da Europa. Umas quantas pessoas caminham para o lado de fora do portão, sobem a rua para apanhar o autocarro, querem ir até à cidade. Uns não ficam na paragem e continuam o caminho que o autocarro vai fazer dentro de minutos, seguem a pé pela estrada e ainda é bem mais de uma hora a caminhar.

Eles saem. Nós vamos entrar.

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II.“És nojento, louco”

— Qual é a tua religião?
— Não tenho.
— Então tens de morrer porque não és muçulmano.
— Mas porquê, se eu sou humano?
— Não, não, não. Não és humano.
— Qual é o problema?
— Tu és o problema e deves morrer.

Sina acabara de chegar a Moria. Deu o nome, a idade, a nacionalidade, explicou os motivos por que veio para a Grécia. Foi examinado, visto numa consulta rápida por um médico. Foi-lhe atribuída uma tenda onde dormiu com mais dez pessoas. Voltaram a chamar-lhe os mesmos nomes que no Afeganistão: “És nojento, louco”.

Numa dessas noites, sete pessoas “com a mente de um grupo terrorista” espancaram-no. Usaram paus, pedras, caixas, tudo o que tinham à mão.

“És nojento, louco.”

Outra vez.

“És nojento, louco.”

Sina teve de ser retirado de Moria. Era demasiado perigoso. Depois da noite em que o espancaram, o corpo ficou-lhe marcado. Apresentou queixa à polícia, mas nada foi feito. Conta-nos a sua história junto ao porto de Mitilene, a principal cidade de Lesbos. Apesar do calor, continua a vestir-se todo de preto, tapado, com mangas compridas e jeans, na cabeça um boné. É aqui que vive depois de as Nações Unidas conseguirem um lugar num apartamento partilhado com mais sete pessoas com “o mesmo problema”.

“Quando penso nisso...” Pára, olha para o lado. Pensa. Parece tentar articular uma resposta pouco violenta, sem ofender ninguém. “Sim... há pessoas loucas em Moria. Disseram-me que deveria morrer porque não era muçulmano e porque era homossexual.”

São 10h dentro de Moria. A esta hora não há filas na jaula - os corredores engaiolados onde centenas de pessoas se alinham todos os dias durante horas à espera do pequeno-almoço ou almoço ou jantar.

— Volta daqui a meia hora.
— Porquê?
— Agora não está aqui ninguém. Mas daqui a pouco vai estar. Vem, por favor.

O rapaz que nos fala tem 11 anos. É afegão, como a quase maioria das pessoas em Moria. Está com um amigo e aproximam-se quando veem a câmara de filmar ligada. Querem saber de onde somos e porque estamos ali.

— Podemos regressar daqui a pouco? - pedimos ao guia que nos acompanha.
— Creio que não - fica uns segundos em silêncio. - Não temos tempo.

Mas na verdade temos. Ao Expresso são permitidos 45 minutos dentro de Moria, sempre acompanhados de um membro da administração que não nos deixa ver dormitórios ou contentores. Nem casas de banho ou duches. É a primeira vez que um órgão de comunicação social português entra no campo - e são poucos os internacionais que o conseguiram.

População no campo de Moria

Por nacionalidades

O barulho do chão de gravilha pisada é ruído de fundo. Misturam-se as vozes, umas mais altas e outras mais sussurradas. Uma gargalhada de vez em quando, também alguns suspiros, um ou outro grito. O som de Moria é tudo isto junto e não tem nome certo.

De alguma forma tudo ali recorda os mercados de domingo: as cores bege e sujas das lonas, a organização desorganizada, o improviso de tudo o que está construído à pressa. Ao final do dia o mercado é levantado e desaparece. Moria não.

Na rua principal do campo - a única por onde nos deixam andar - dezenas de pessoas sobem e descem, vão para as tendas ou em direção ao portão enferrujado. Algumas parecem apenas caminhar por caminhar. Sobem e, quando chegam ao cimo, descem. No final viram-se e voltam a subir. Há uma certa familiaridade entre as pessoas. Mesmo quem não se conhece já não se estranha: ou porque estão ali há já muito tempo ou porque fugiram dos mesmos sítios e agora reencontram-se todos os dias.

Uma mulher de hijab cinza escuro aproxima-se.

— Vem comigo.

Quer levar-nos a uma das casas de banho. Quer mostrar-nos a Moria que nãos nos querem deixar ver.

— Podemos ir?
— Não - de imediato o guia encaminha-nos para o corredor principal da ex-base militar.

E a mulher insiste.

— Vem, vem, vem comigo.

Vamos.

Que me batam, que me façam mal… que me façam essas coisas

Os conflitos em Moria acontecem quase todos os dias. Refugiados, voluntários, organizações não governamentais, gregos e todos com quem falamos apontam-nos o mesmo: os problemas dentro da base militar. Os conflitos, as filas para tudo, o assédio e os rumores sobre violações. Até novembro de 2018, os Médicos Sem Fronteiras tiveram conhecimento de 24 situações de violência sexual, a administração do Centro de Receção e Identificação de Moria garante que só há um caso confirmado.

— À noite, não podia ir à casa de banho sozinha. Nunca sabíamos o que poderia acontecer.
— Há várias histórias sobre…
— Violações? Sim, lá dentro há muito disso. Mesmo que fosse eu a ir fazer chichi, a minha tia e a minha sobrinha também entravam para o mesmo cubículo para não ficarem sozinhas do lado de fora. Por exemplo, várias vezes um homem seguia-nos.

Em Moria vivem 879 famílias, 167 mulheres sozinhas e 2612 homens solteiros

Cheryl Nyakonda já não está em Moria. Foi por ter chegado com as tias e os sobrinhos menores de idade que conseguiu um lugar em Kara Tepe, um outro campo em Lesbos que apenas recebe pessoas consideradas vulneráveis. Tinha 17 anos. Desde então esteve presa - já lá vamos a essa história -, mudou de campo, precisou de apoio legal e foi adotada por uma família grega. Fugiu do Zimbabué por uma das tias ser ativista contra o regime de Robert Mugabe. Toda a família era perseguida e ameaçada.

“Quando atravessei o Mediterrâneo pensei que teria uma vida diferente, que ia voltar a viver numa casa normal, com pessoas normais. Nunca achei que ficava num campo, nunca achei que fosse tão mau como Moria.” Na primeira noite, Cheryl, as tias e os três sobrinhos dormiram sem nada que os protegesse. No dia seguinte deram-lhes uma tenda junto às casas de banho, por baixo de cabos elétricos. Era dezembro e chovia todo o dia.

“As pessoas não têm nada para fazer, vão ao lado de fora do campo e bebem. Quando regressam fazem uma barulheira. À noite era impossível dormir. Tínhamos de dormir de manhã e depois acordar.” Os confrontos são sobretudo entre pessoas de diferentes nacionalidades. “As coisas por que lutam são pequenas: talvez porque alguém tirou e usou o balde de alguém ou porque mexeram no cabo da eletricidade de alguém. Toda a gente está stressada, tem os seus problemas e precisa de descarregar. Há tantos conflitos. É o caos.”

À segunda-feira comiam arroz, à terça era dia de feijão. Só à quarta havia frango; ao domingo, vaca. “Nos dias em que serviam carne havia sempre confusão e pessoas detidas. Sempre.” Agora, conta-nos Shakila, já só há a quarta-feira do frango. “Só temos carne uma vez por semana.”

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Quando conhecemos Shakila, em novembro, ela estava grávida de dois meses. Está tudo bem com o bebé

Shakila está a meio da gravidez. Quando atravessou até à Grécia não sabia que estava à espera de bebé. Veio com o marido, a sogra e a cunhada. Fugiram do Afeganistão.

— Sentes-te segura?
— Oh, não! Nem pensar… Tenho medo.
— De quê?
— Que me batam, que me façam mal… que me façam essas coisas.

Hoje, segundo as contas da administração, há uma casa de banho para cada 30 pessoas. “Mesmo numa tenda ou num contentor, toda a gente aqui está abrigada, tem comida três vezes por dia. Claro que não é isto que sonhámos oferecer, é o que nos é permitido.” Giannis Balpakakis é o diretor do Centro de Registo e Identificação de Moria, cuja responsabilidade é do Governo grego e que é financiado também por fundos europeus.

A “prisão”

— Podes tirar uma selfie comigo? É para mostrar que fui entrevistado e que vou aparecer no jornal.

Aceitamos a fotografia. Telemóvel na vertical e fotografa.

— Não queres casar?

Ficamos sem resposta.

— Ou conheces alguém que seja da Europa e queira casar?

Continuamos sem saber o que dizer.

— Preciso de ajuda.

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Abdullah, à direita, passa o dia com os dois amigos nos cafés junto a Moria. Foram eles que o ajudaram a chegar à Grécia

Abdullah Saidi tem 25 anos. Está numa das esplanadas improvisadas junto à entrada do campo com dois amigos, os mesmos que o ajudaram a ter dinheiro para chegar à Europa. É paquistanês e numa primeira conversa percebemos que veio mais pela possibilidade de ter emprego do que para fugir de algo ou alguém.

Passa boa parte dos seus dias sentado com os amigos. Nunca pensou que chegar ali seria ficar à espera sem poder deixar a ilha. Quer continuar a viagem que planeou quando deixou o Paquistão. E se para chegar à Europa que idealizou for preciso casar-se, Abdullah casa-se.

“Welcome to the prison”, lê-se num dos muros exteriores da antiga base militar. A mensagem já mal se percebe, está quase apagada. Mas todos sabem que a prisão é o campo.

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A administração do campo apaga todas as mensagens políticas que são escritas dentro da ex-base militar. No lado de fora, pouco pode fazer

“Se não gostam, podem ir embora. Moria não é uma prisão, vêm para aqui mas podem viver fora do campo, só não é possível sair da ilha. Moria é uma prisão metaforicamente porque não podem continuar o caminho”, diz Giannis Balpakakis. “Não somos nós que os mantemos à força em Moria. É a legislação do acordo entre a União Europeia e a Turquia que os mantém aqui.”

O acordo entre a UE e a Turquia em 10 pontos

1.Todos os migrantes irregulares que chegam à Grécia são devolvidos à Turquia. Uma “medida temporária e extraordinária”;

2.Todos os migrantes que chegarem à Grécia que não peçam asilo ou que o seu pedido seja dado como infundado ou inadmissível são devolvidos à Turquia (exceção para pessoas consideradas vulneráveis;

3.Por cada sírio que entrou irregularmente na Grécia que seja devolvido, um sírio dos campos turcos será recebido de forma legal na União Europa (prioridade aos que nunca tentaram entrar ilegalmente na UE);

4.Os custos dos retornos à Turquia são suportados pela União Europeia;

5.Para agilizar o processo, funcionários do governo grego foram enviados para a Turquia e vice-versa;

6.A Turquia tem de tomar medidas e assegurar que novas rotas migratórias - marítimas ou terrestres - não sejam criadas;

7.Quando deixarem de existir travessias irregulares, é aberto um programa voluntário de admissão para os Estados-membros

8.A União Europeia compromete-se a simplificar o regime de vistos para os cidadãos turcos;

9.A União Europeia avança com três mil milhões de euros para a Turquia no âmbito do mecanismo em favor dos refugiados e de alguns projetos relacionados com a causa. Quando se esgotar, e se tudo for cumprido, até a final de 2018 a União Europeia financia com mais três mil milhões;

10.A UE e Turquia comprometem-se a melhorar as condições humanitárias na Síria, sobretudo junto à fronteira turca.

Em novembro estavam registadas 7463 pessoas em Moria, no final do verão chegaram a estar mais de dez mil - a capacidade máxima é de 3100. Agora chegam menos à ilha mas também são menos os que saem dela. Moria é uma rolha que tapa a Europa, que impede que passem pessoas não autorizadas. Assim que são registados no campo, os seus documentos são carimbados a vermelho com a restrição geográfica.

Moria já não é mais um local de passagem. As pessoas ficam. Não podem sair. E, se um dia saírem, têm de esperar meses ou anos.

“Welcome to the prison.”

O trabalho do meu pai é estar nas filas

— How are you, miss?
— Fine. And you?

Não tem mais de três ou quatro anos. Cabelos aloirados e olhos claros. Aproxima-se receoso. Quase todos os miúdos falam inglês. Ele, que veste uma camisola verde alface já demasiado usada, olha em volta. Faz uma pausa. Encolhe os ombros e responde:

— Hum...

Corre, vai brincar. Ficamos a pensar no que a resposta significa. Mas não por muito tempo, porque rapidamente outros braços pequeninos nos puxam para lhes darmos atenção. Fazem uma fila de espera para serem notados. Uns querem colo, outros querem jogar. Sem falar, ensinamo-los a jogar à sardinha.

O menino de t-shirt verde e olhos claros corre uma vez mais para nós. Desta vez não fala, não pede nada. A altura dele não vai além da nossa cintura. Quando se aproxima agarra-nos pelo bolso das calças de ganga, põe a mão e deixa lá algo. Afasta-se. Levamos a nossa mão ao bolso e temos agora uma folha de papel meio amachucada, com um desenho a carvão.

— You - aponta ele.

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Este é o desenho que nos deixaram no bolso: a folha está rasgada e velha. Notam-se as linhas que antes foram desenhadas e apagadas

Depois corre. Volta ao jogo que um voluntário norte-americano começou. E, no meio da confusão, já não voltamos mais a ver o menino de t-shirt verde e olhos claros.

Olive Grove fez-se quando dentro de Moria o espaço deixou de existir. Num largo campo de oliveiras amarraram-se cordas aos troncos e levantaram-se mais de mil tendas. “Muitas pessoas escolhem vir cá para fora porque se sentem mais seguras”, justificam-nos vezes sem conta diferentes voluntários que encontramos. “Não conseguimos montar uma tenda, não dá para todos, ficamos muito apertados”, diz-nos quem decide sair. Olive Grove é conhecido como o campo não oficial da zona.

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O campo de Moria começou por ser apenas o interior da antiga base militar, hoje já se estende para lá dos muros e ocupa o terreno de oliveiras (linha a tracejado)

Os mais novos correm e andam por todo o lado. Brincam com o que encontram. Vestem o que alguém lhes deu. Calçam, quando estão calçados, sapatos demasiado grandes para os seus pequenos pés.

Duas irmãs de cabelos longos e braços magros andam atrás de nós. Tocam-nos nos fios de cabelo, nas roupas que vestimos. Querem sentir o toque de tudo o que trazemos. Uma delas, a que parece mais velha, agarra-nos pela mão. Tira um marcador verde do bolso. “Não olhes”, diz-nos. E de cada vez que quebramos a promessa, tapa o que está a desenhar para que no final haja uma surpresa.

A tinta falha. Com o bafo da respiração, sopra. A tinta volta a sair a custo. O marcador verde teima em falhar; pega num vermelho. Arregaça-nos a manga da camisola e já perdemos o controlo, os nossos braços são agora a tela daquela menina. Quando termina, passa com a mão pelos traços que acabou de fazer. “Já podes olhar.”

Desenhou-nos um coração no anelar. Depois, no indicador, uma flor.

A nossa tenda está cheia de ratos. Temos de pendurar a comida num saco no teto
Abolfazl10 anos

Não tarda as crianças começam a correr para casa. Anoitece. Numas ruas abaixo, os Mirzaie já preparam a refeição e convidam-nos para jantar - tinham-nos contado a sua história, agora iam mostrar-nos a sua comida. Demoramos quase cinco minutos para nos conseguirmos sentar todos na minúscula tenda onde estamos nove - os sete Mirzaie e nós, jornalista e tradutor. É ali que toda a família dorme e o Abolfazl, o mais novo, tenta explicar-nos como fazem todas as noites: “Eu fico aqui, a minha irmã ali, os meus pais por ali”

O pai, Rasoul, quer aprender inglês e encontrar um emprego. Não pode. Passa o dia nas filas. Às 04h sai para a do pequeno-almoço, pelas 11h vai aguardar pelo almoço, não muito pouco depois das 17h apressa-se para ir buscar o jantar. “Na verdade, o trabalho do meu pai é estar nas filas.”

Sem quererem mandar-nos embora, percebemos que estão a ficar inquietos. Precisam de acabar a conversa. “Não podemos demorar porque precisamos de ir para a fila do jantar.” Saímos com eles da tenda, calçamos os sapatos e despedimo-nos. Nós continuamos a caminhar por Olive Grove, os Mirzaie seguem para dentro da antiga base militar para ir buscar comida.

Já não há sol nem ninguém pelas ruas esburacadas e lamacentas. O cair da noite trouxe o frio e a humidade, as pessoas esconderam-se dentro das tendas para se protegerem ou já foram - tal como os Mirzaie - para a fila. Agora reparamos melhor que cada um destes lugares para viver tem um número que o identifica. Como se fosse o número da porta de uma casa.

— Fala inglês?

É o único que encontramos. Está a entrar para a tenda quando o interpelamos. Tem pela mão um menino pequenino igual a si.

— Falo.
— Podemos falar consigo? Gostávamos de ouvir a sua história.

Ashiqullah olha em volta, fala agora mais baixo.

— Não sei… Quer dizer, posso fazê-lo mas não sei.
— Há algum problema?
— Na última vez em que falei com jornalistas vieram buscar-me e levaram-me para o centro de detenção dentro de Moria. Não quero que aconteça outra vez.
— Não lhe podemos prometer que isso não volta a acontecer...

Volta a olhar. Faz-nos sinal com a mão como quem nos chama.

— Venham, entrem. Falamos aqui dentro.

Ao passarmos o cobertor que faz de porta, encontramos uma pequena tenda verde - daquelas que se atiram ao ar e se erguem em dois segundos - encostada a um canto. “Foi o que nos deram para os quatro.” Os quatro são ele, Ashiqullah, 32 anos; o pequeno que traz pela mão, que se chama Ataga e tem quatro; a mulher, Noorie, de 22; a filha, Nargis, de cinco. “Tudo o resto que aqui está, os panos, as cobertas, as paletes, comprei. Gastámos tudo nisto.”

Ashiqullah é ator, fazia filmes de ação no Afeganistão. Foi a mulher que lhe pediu para fugirem para a Europa: ser ator lá era perigoso, por cá ele ainda não percebeu se é bom ou mau. “Supostamente, aqui a vida era boa. Mas não há boa vida: não há água, não há comida, não há escolas para as crianças. Tudo é um problema.”

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Mais de mil tendas foram erguidas desordenadamente em Olive Grove. No entanto, cada uma delas tem um número que a identifica, como se fosse a porta de casa

Moria fica no meio de um enorme campo de oliveiras. Antes não existia nada em volta, mas isso era antes: no lugar do nada agora há rulotes que estacionaram ali e que servem todos os dias, têm lonas e plásticos grossos amarrados às árvores e são como um café ou uma cantina onde tudo se vende. “Já venho para aqui desde 2015, desde o começo de tudo”, diz um dos gregos que diariamente trazem a carrinha de caixa aberta carregada de frutas e legumes para quem ainda tenha algum dinheiro para os comprar.

Ao fundo da rua está a clínica dos Médicos Sem Fronteiras, o único sítio onde as crianças conseguem ter acesso a cuidados médicos. De lá sai uma mulher com um véu azul acinzentado e óculos escuros. Há sete anos o Governo iraniano matou-lhe o filho mais velho, de 15. O rapaz namorava a filha de um militar, que ao descobrir a relação denunciou-o às autoridades. “Tenho uma história muito difícil.” E o mesmo continuará a dizer-nos por toda a conversa.

Devido ao stress e aos níveis de pressão a que esteve sujeita, a mulher, que prefere nunca dizer o nome com receio de ser reconhecida, desenvolveu um problema na visão e não pode estar ao sol sem óculos escuros. Está em Moria “talvez há 16 dias”. Chegou com o marido e os outros filhos (um rapaz de 13 anos e duas raparigas de dez e seis). Saíram do Irão, continuaram para a Turquia e depois chegaram Lesbos pelo mar.

“Até posso morrer aqui mas nunca regressarei ao Irão.” Está a viver num contentor dentro da base militar. “O nosso sítio não é ótimo, mas é bom. Pelo menos é seguro, pelo menos aqui é um pouco melhor. Só quero um lugar seguro. E liberdade.”

Enquanto conversamos, a filha mais nova brinca em nosso redor. Foi por causa dela que foi à procura de um médico. A menina está doente, tem um tumor a crescer-lhe no pé. As doenças e infeções de pele são dos problemas mais comuns no campo.

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Correu atrás de nós para falar da sua “história complicada”. Não quis dizer o nome, só quis lembrar o filho que lhe mataram

“Não há banhos, não há limpeza, é normal que isto aconteça. Muitos pais perguntam-nos como é suposto manter o filho limpo porque não têm acesso adequado a água. São tarefas muito básicas para cuidar dos filhos que se tornam muito complicadas neste ambiente. O impacto de coisas normais é muito maior vivendo nestas circunstâncias.” É Caroline Willeman, coordenadora das operações dos Médicos Sem Fronteiras em Lesbos, que nos explica como tudo funciona. Fala-nos da má nutrição e da quantidade de doenças que encontra. Das infeções de pele e respiratórias, das diarreias, das otites, bronquiolites e gastroenterites.

E depois há os problemas que não se veem. “Nos últimos meses recebemos casos muito, muito graves de doenças psicológicas devido aos traumas, grande parte dos nossos pacientes é vítima de tortura ou de violência sexual. Nos miúdos também encontramos manifestações de problemas mentais: desde voltarem a fazer chichi na cama, mudez seletiva, zangas e ataques de fúria, automutilações e tentativas de suicídio.”

Começamos a conversar com Caroline e durante a hora em que estamos com ela pelo menos quatro crianças são atendidas pelo médico. Ao colo da mãe, uma delas vai buscar medicamentos à farmácia enquanto um pai e um filho, que veste a t-shirt do super-homem, esperam.

— Como descreve Moria numa frase? - perguntamos a Caroline.
— Um lugar onde nem eu nem tu queremos viver.

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III.Ainda bem que há quem não quer saber

Alan Kurdi.
Três anos.
Sírio.
Filho de refugiados.
A foto dele numa praia, morto.
2015.

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O corpo morto de Alan Kurdi na praia, em 2015, tornou-se um símbolo da crise de refugiados

Salam Aldeen viu a imagem, leu a história. A mãe dele é moldava e o pai iraquiano, vivia na Dinamarca no dia em que aquela foto se tornou simbólica para refugiados e não refugiados e quis procurar formas de ajudar logo nesse dia. Disseram-lhe que não havia nada a fazer na Grécia, em Lesbos, que se quisesse contribuir deveria ir para Lampedusa, no sul de Itália.

Salam não quis saber, comprou a viagem para Lesbos e embarcou a 5 de setembro, dia do seu aniversário. Ele que até então nada sabia sobre a crise de refugiados.

— Muita gente viu essa imagem e não fez nada...
— Talvez tenha sido o meu chamamento.
— Chamamento?
— Somos humanos, somos diferentes. Algumas pessoas gostam de sal, outras não. Algumas pessoas gostam de água, outras de coca-cola. Algumas pessoas têm o chamamento, outras não. Eu também não o tinha, mas aquela fotografia mudou-me.

A pouco mais de 200 metros de Moria há um armazém de paredes claras, limitado por um gradeamento alto. No pátio, umas pérgulas fazem sombras. Há paletes pintadas a azul e a vermelho a servir de bancos, num canto dois trampolins de pernas para o ar. É aí que procuramos Salam.

Quando nos aproximamos para espreitar ainda não são 16h. Mas hão de ser. E hão também de entrar ali centenas de miúdos. Vão gritar, saltar, correr, dançar, pintar, cantar e ouvir. Vão também abraçar. E por fim hão de ir embora, no dia seguinte hão de voltar.

Mais de três anos passaram desde que Salam esteve pela primeira vez na ilha. Hoje é o responsável pela Team Humanity, uma organização humanitária não governamental e sem fins lucrativos. Sobrevivem de doações. Todas as tardes abrem os portões para que 800 ou 900 crianças dos campos brinquem. “Quando vêm para aqui sentem-se crianças outra vez. No campo não têm nada para fazer, estão só sentadas nas tendas. Algumas famílias não as deixam sair porque é perigoso, as que saem brincam com terra, fazem coisas tolas”, conta-nos Salam enquanto controla de longe a sessão de cinema que acabou de começar dentro do armazém. Estão a ver "Dia de Surf", ligou um projetor ao computador e as imagens dançam na parede ao fundo. Os miúdos sentam-se de pernas cruzadas no chão, as mães alinham-se nos bancos corridos feitos de paletes e esperam, algumas com bebés ao colo.

Salam trabalhava numa empresa de construção civil dinamarquesa, tinha amigos diferentes dos que tem agora. Também as preocupações e as prioridades mudaram: nas primeiras vezes que esteve em Lesbos, a Team Humanity ajudava no resgate nas praias, em 2015 e 2016 desembarcaram dezenas de pessoas na ilha- fosse em barcos ou a nado.

— Como é um resgate?
— Imaginem um barco no mar. Mas em vez de estarem sentadas, as pessoas estão na água, a afogarem-se. O mais difícil é escolher quem vais salvar primeiro: este miúdo ou aquele? Esta mulher ou aquela?
— Como se decide?
— Vendo quem se está a afogar primeiro.

As ondas tendem a estar contra quem resgata. A noite também. Tal como a escuridão. “Não há dinheiro que possa dar um sentimento igual ao de salvares uma criança ou qualquer pessoa da morte. Nem consigo explicar, mas foi...” Não sabe bem o que foi. “Tive humanos mortos nos braços. Enterrei miúdos com as minhas mãos, cavei sepulturas, escolhi o sítio para enterrar a criança, a mãe e o pai.”

Quando salvas uma criança da morte nenhum dinheiro do mundo pode pagar esse sentimento
Salam Aldeen

Os casacos vermelhos distinguem os voluntários da Team Humanity. Junto ao bebedouro de água está uma rapariga com 16 ou 17 anos. Olha para tudo, está sentada com as costas curvadas e de cada vez que uma das crianças se aproxima endireita-se como se se estivesse a apresentar ao serviço, carrega no botão do bebedouro e pega os mais novos ao colo para os ajudar a beber água. Aquele é o posto dela por hoje.

— Hello.
— Hello.

Com a mão fechada e o polegar levantado pergunta-nos como estamos.

— Bem. De onde és?
— Iémen.
— Portugal.

Não sabe onde é. Com o telemóvel mostramos-lhe no mapa.

— Muito longe - diz-nos ela.
— Vives em Moria?
— Sim. Moria no good for life.

Com mais ou menos erros é o que todos aprendem a dizer logo nos primeiros dias em Lesbos: “Moria no good for life”. Aprendem a dizê-lo e vivem-no.

Se ouves as pessoas a pedirem ajuda, então ajuda. É tão simples

No centro de Mitilene está tudo pronto: bandeiras da Grécia hasteadas em cada um dos candeeiros nas principais ruas da cidade, o trânsito suprimido, polícia por todo o lado, militares fardados, fita separadora vermelha e branca para demarcar o percurso da parada. Junto à paragem de autocarro os miúdos das escolas ensaiam a coreografia. Há música. Ao final da manhã vai passar a parada.

“Até vem cá o nosso Presidente”, dizem quando questionamos o aparato. E avisam-nos: “Olhe que não vai conseguir fazer nada hoje. Pára tudo aqui na ilha”. É 8 de novembro, aniversário da libertação de Lesbos: há 106 anos, durante a primeira Guerra dos Balcãs, os gregos conquistaram a ilha ao Império Otomano.

Conseguimos fugir a pé à confusão do centro da cidade, cruzámo-nos pelas ruelas estreitas com algumas dezenas de pessoas que vão em direção à parada. Afastamo-nos cada vez mais e cada vez menos encontramos gente. Já longe da confusão, sentamo-nos num banco de madeira: atrás, o mar; à frente, uma estátua de uma mulher que traz ao colo um bebé e, agarradas às suas pernas, duas crianças. É a representação das Mães da Ásia Menor, uma homenagem aos milhares de mulheres e crianças gregos expulsos do território que hoje é a Turquia, obrigados a regressarem às ilhas como refugiados e com quase nada. Poucos homens voltaram, morreram ou fizeram-nos prisioneiros.

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A estátua foi erguida junto ao mar, à frente de Epano Skala, o bairro onde se alojaram os refugiados gregos da época

Estávamos em 1923, Lesbos tinha sido libertada há poucos anos quando o Império desapareceu, os turcos guerrilharam pela independência e nasceu a República da Turquia. É esta a história que o dono do hotel onde dormimos nos recorda quando perguntamos como é a relação entre os gregos e os refugiados que hoje estão na ilha. “Sabe, todos aqui são filhos ou netos ou bisnetos de refugiados. Não há alguém que não tenha uma história de refugiados na família.” Ouviríamos esta mesma história mais umas quantas vezes.

“Toda a história mostra que os gregos foram refugiados.” Nikos Koveou é grego e usou exatamente a mesma explicação para nos ajudar a compreender estas pessoas. “Sabemos o que significa ser refugiado. Toda a gente ajudou quando a crise começou.” Nikos e Katerina, a sua mulher, ajudaram mais.

É noite, está frio. A humidade que começa a cair quando o sol se põe contrasta com o dia quente - demasiado quente. Ao longo do dia foi verão, aquela noite pode ser dos primeiros dias de inverno. Ainda não é muito tarde, mas Niko já serviu dezenas de refeições no seu não-restaurante “Home For a Day”.

Em tempos recebia no mesmo espaço os clientes habituais que pagavam o almoço e o jantar e algumas famílias de refugiados que lá iam comer gratuitamente. “Depois surgiram os problemas.” As pessoas estavam cansadas, fartas de receber tanta gente diferente e sem perspetiva de qualquer solução. Veio a polícia, passaram-lhes multas “sem qualquer motivo”, “muitas delas para nos impedirem de fazer o que fazíamos - foram 34 mil ou 35 mil euros em multas.” Disseram-lhes que tinham de escolher: ou era um negócio de restauração ou uma organização sem fins lucrativos. “Foi muito fácil e abdicámos do restaurante e dos clientes.”

Ao almoço e ao jantar o processo é o mesmo: na carrinha branca vão buscar uma dezena de pessoas, levam-nas até ao “Home for a Day” e servem-lhes uma refeição quente. Massas, saladas, frango, pão. “Gostam de tudo. Preferem a carne porque é o que não comem há mais tempo, embora quando provam o peixe passam a gostar mais. Muitos nunca comeram peixe na vida.”

Para Nikos, arranjar o pescado é mais fácil e barato. Ele é pescador e tem uma peixaria, o negócio que lhe valeu quando foi obrigado a fechar o restaurante para poder alimentar as pessoas de Moria. Nos primeiros tempos da crise, ele e a mulher levavam a comida até aos refugiados em caixas de alumínio. Primeiro a 50, depois a 100. Passou a 200 e a 300. Após a assinatura do acordo da União Europeia com a Turquia, Nikos questionou-se: nada estava a mudar, ao fim de dois anos as pessoas continuavam a chegar e a viver naquelas condições.

A “Home for All” é uma das dezenas de organizações não governamentais e sem fins lucrativos fixadas em Lesbos. A “Home for a Day” é o nome do restaurante - e até tem a pontuação máxima na plataforma do Tripadvisor. No centro de Mitilene, Nikos e Katerina têm ainda mais um café gerido por refugiados, com computadores e acesso gratuito à internet, café e chá. Dentro de dias abrem mais um café.

Depois do almoço ou do jantar, conversam um pouco. Os mais novos jogam. Por fim, Nikos ou um dos voluntários leva os refugiados de volta a Moria, mas antes, a cada um deles, é-lhes oferecida uma saca com roupa, calçado e alguns produtos de higiene.

Enquanto falamos com Nikos, ele anda de um lado para o outro a organizar o jantar para os voluntários. Ao final do dia de trabalho juntam-se todos na mesa de madeira comprida. Hoje comem sardinhas, massa, salada de alface e pimentos. Muitos destes que estão sentados à mesa vieram de outros países europeus para ajudar durante uma temporada.

— Os gregos já não se voluntariam para ajudar?
— Ajudaram muito, mas estão cansados. Há alguma propaganda contra, mas as pessoas ajudam. Se lhes pedirem, ajudam.
— O que mudou?
— Os gregos tentaram muito fazer um bom trabalho, mas na verdade não têm poder ou dinheiro para o fazer. Têm os seu próprios problemas. A Europa deixou os gregos sozinhos a fazerem tudo.

A população das ilhas gregas foi em grandes grupos para a costa nos primeiros meses. Ajudaram no resgate, deram roupas e alimentos. Alguns deram casa. O que fizeram chegou a estar nomeado para o Nobel da Paz em 2016 - que acabou por ser entregue ao então presidente colombiano, Juan Manuel Santos.

Pelas ruas de Mitilene, os refugiados misturam-se facilmente com os locais. Ninguém se choca, ninguém olha uma e outra vez para ver. Habituaram-se uns aos outros. Há quem fale no tímido crescimento de movimentos de extrema direita na ilha. “Boicotaram a peixaria do Nikos por ele ajudar refugiados”, conta-nos uma das voluntárias a meio do jantar. “Pessoas que deixaram de lá ir comprar o peixe.”

— E o Nikos não está cansado?
— Se ouves as pessoas a pedirem ajuda, então ajuda. É tão simples

Fala português? Eu também

É a quarta manhã que vamos até Moria. Ainda estamos a alguns metros da entrada e reparamos que há muito mais pessoas que o habitual. Mais homens estão sentados no muro, mais mulheres sobem a rua, mais miúdos correm. É sexta-feira, talvez seja por isso. “Não, não é por isso. É que a One Happy Family está fechada”, explica-nos primeiro um residente de Moria e, pouco depois, um voluntário. Por motivos de manutenção, tiveram de cortar a água.

O One Happy Family é um centro comunitário a cerca de cinco quilómetros da ex-base militar. A pé faz-se numa hora e pouco. Nunca fecha. No dia anterior estava aberto, no anterior ao anterior também. E nos dias todos antes também.

— Podem filmar o que quiserem menos a minha cara.

A costureira na casinha do alfaiate é da República Democrática do Congo. Está bem disposta mas tem medo de dar entrevistas, dizer o nome, ser fotografada ou filmada. Não quer que se saiba que está ali. Vai sorrindo enquanto lhe filmamos as mãos na máquina de costura. Conversa com o marido e os dois filhos em francês. Deixamos cair o tripé da câmara e instintivamente falamos em português.

— Fala português? - pergunta-nos o marido da costureira, surpreendido.
— Sim.
— Nós também.

Esquecemos o francês e daí para a frente só falamos português. O casal aprendeu a língua quando ainda eram meninos de escola. Os filhos deles também. Estão em Moria faz uns meses, não sabem o que lhes vai acontecer. Vão todos os dias ao One Happy Family, até porque ela tem de costurar. Orgulhosa, mostra-nos o que tem feito.

À despedida, diz ele: “Deixa-os filmarem-te, mulher. Tu que és tão bonita. E eles que até falam português”. Mas ela envergonha-se e não quer.

No One Happy Family há tudo aquilo que é normal encontrar num bairro: café, ginásio, cabeleireiro e barbeiro, alfaiate, cinema, jardins e parques infantis. E depois há ainda mais do que isso: a rádio, o clube multimédia, as aulas de dança, yoga e artes marciais, há um campo multidesportivo e até um lounge de shisha.

O ginásio está cheio de homens. Carregam os pesos e entre eles parece-nos haver competição para ver quem é o mais forte. “Esta é uma das atividades mais procuradas.” Julia Bürge só tem 23 anos, veio da Suíça como voluntária e é uma das sete responsáveis pela coordenação do centro comunitário. “Mas o que está sempre mas sempre cheio é o café, onde além do café servimos chá, cappuccino, chocolate quente, expresso...”

Dentro de momentos vai começar uma aula de dança no pátio. A música enche o espaço que fica no topo de uma das colinas da ilha. Ao fundo há mar, ali música - e, timidamente, a pista enche-se. Na cozinha acabaram de lavar os tachos do almoço quando entramos. “São cerca de mil refeições diárias.” Quando há frango, é quando mais gente aparece.

Dana, 27 anos, está em Lesbos desde 2 de março de 2017. O futuro que esperava ter tem sido adiado pela demora na conclusão dos procedimentos para o pedido de asilo. Encontramo-lo na biblioteca. Da carrinha pão de forma desapareceram os bancos de pele e surgiram placas de madeira clara a forrar o interior. As estantes enchem-se de livros de várias línguas.

— Estou a ler um. É aquele ali de capa amarela. Chama-se 'George e Martha: As histórias completas de dois melhores amigos' - explica ele
— Já sei, conheço. Mas é um livro…
— Para crianças? Sim, é. Os livros para os mais novos são os melhores para aprender inglês. Vou a meio, na página 120, e vou continuar até ao fim.

O bibliotecário, que o é depois de ter tido uma problema nos ossos que não o deixa fazer desporto, começou por ser professor de taekwondo e defesa pessoal. Quando o corpo lhe falhou, escolheu a biblioteca. Chama-se Dana.

“É tão agradável… Quando as pessoas aqui vêm esquecem tudo, esquecem os conflitos, a fome, a vida. Moria é como um inferno. Moria é o inferno.”

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Dana conto-nos tudo sobre os problemas que teve no Irão. No final, pediu-nos para não escrevermos alguns detalhes: “eles podem magoar a minha família”

Dana é do Irão. Perdão, do Curdistão Iraniano - viria a contestar a meio da nossa conversa.

— Desculpem, o meu país não é o Irão. Eu sou Curdo. Eu sou Dana do Curdistão Iraniano.

Está na Europa porque quer trabalhar. Vivia num país muçulmano e foi apanhado a vender álcool. Prenderam-no e quando regressou à liberdade ninguém lhe deu trabalho. “Tinha de viver.”

E mais não nos conta, não se sente confortável em fazê-lo. Tem medo. Por ele e pela família que ficou toda lá. “Às vezes conseguimos falar por pouco tempo.”

Oito mil pessoas e um jogo político

Se tivéssemos visitado Moria no começo da crise de refugiados encontraríamos a clínica dos Médicos Sem Fronteiras dentro do espaço oficial do Centro de Recepção e Identificação. Embora hoje não estejam muito longe, estão para lá dos muros. A organização não governamental distanciou-se das autoridades europeias: não concorda com o que está definido no acordo assinado entre Bruxelas e a Turquia.

“Desde então, as pessoas estão presas nesta ilha. Temos de ter em mente que são pessoas que estão a exercer o direito internacional de procurar asilo. Têm o direito de o fazer num país seguro. Mesmo assim, e por alguma razão, não somos capazes de dar a estas pessoas serviços muito básicos.”

Caroline Willeman coordena as operações dos Médicos Sem Fronteiras em Lesbos. “Como cidadã europeia sinto-me envergonhada por ser esta a forma como requerentes de asilo são recebidos - na verdade, recebidos é uma palavra demasiado grande - pela União Europeia. Não há desculpa. Só posso crer que há vontade política em deixar as pessoas em más circunstâncias.”

Hoje a clínica está ao fundo da rua para marcar uma posição. São poucas as vezes que os médicos da ONG conseguem entrar no campo. Têm de ser as pessoas a procurá-los. O posto junto ao campo é especializado em saúde infantil e materna, incluindo obstetrícia. Em Mitilene têm outro preparado para dar assistência em saúde mental e cuidados a vítimas de tortura e violência sexual.

Foi no meio das oliveiras que os médicos levantaram tendas, estacionaram carrinhas e uma ambulância. Com os meios que têm e as condições do lugar organizam-se como um pequeno hospital. As pessoas chegam e é-lhes atribuído um número, depois esperam pela sua vez numa sala de paredes de lona. São chamadas para a triagem, onde são vistas pelos enfermeiros: seguem posteriormente para a enfermagem, a farmácia ou a consulta com um médico.

— Queremos ir para Portugal.

Beheshta está encostada ao contentor que é um consultório. Espera pela sua vez. É a sua serenidade que nos desperta a atenção, os olhos rasgados, o cabelo liso mal apanhado que lhe escorrega para o rosto. Não fala, nem uma única palavra nos dirá. Também está adoentada. A mãe, Fewzia, está com ela e conta-nos como fugiram do Afeganistão: mais uma história muito semelhante à que tantos já nos contaram, onde há perigo, medo e grupos armados, a seguir ilusão na chegada à Europa e no final a mesma desilusão - esperar em tendas.

— Queremos ir para Portugal.

A frase sai sem esperarmos, é uma das primeiras pessoas que encontramos que sabe que Portugal existe.

— Porquê?
— É lá a maior comunidade do príncipe Aga Khan.
— Mas é só por isso?
— Sim.

Precipita-se para tirar o telemóvel da bolsa e mostra-nos as fotografias que guarda do líder máximo dos ismaelitas (um ramo dos xiismo). Fewzia aproveita para fazer perguntas sobre Portugal mas não há tempo para muitas respostas, chamam-na e às filhas para serem atendidas. Antes de partir pede-nos para a procurarmos em Olive Grove, para a encontrarmos na tenda que divide com o marido e as duas filhas. Não conseguimos procurá-la e dar-lhe as respostas.

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Fereshta, à esquerda, está bem. Veio acompanhar a irmã, Beheshta, e a mãe, Fewzia, numa consulta

Uma porta abre-se. É Alice, uma voluntária portuguesa, interna de medicina e natural do Porto que chegou há umas semanas. Soube o que se passava pelas notícias e quis ir. Vir.

O sofrimento impressionou-a. A resistência de quem ali está marcou-a. “Boa parte trata-se de pessoas que nos países de origem tinham um poder económico e social superior à média, até porque quem não o tinha ficou lá. Quem vem tem consciência do mundo, de si próprio e dos seus direitos. Trazem exames complementares de diagnóstico, opiniões de médicos especialistas em várias áreas e esperam que aqui os consigamos encaminhar. E muitas vezes não temos condições para o fazer.”

A conversa não dura muito porque há gente para auscultar. Voltamos ao chão de gravilha e ao calor estranho do final de outono. “Temos tido sorte com o tempo”, aponta-nos Caroline enquanto nos mostra o espaço da clínica. Um qualquer fenómeno meteorológico tem adiado a chegada do frio, da chuva, do vento. “Já nos devíamos estar a preparar para o inverno mas ainda continuamos a ver muitas pessoas em abrigos pouco adequados.” Há muita gente só com uma tenda de verão.

“São oito mil pessoas a pagarem o preço por um jogo político. E continuamos a não perceber como não se encontram soluções… Se comprimirmos oito mil pessoas num sítio só com espaço para três mil, são condições muito complicadas para pessoas com problemas mentais fazerem uma vida normal. Não tem como correr bem”, defende a coordenadora de operações.

— Há quem diga que algumas pessoas fingem ou fazem cortes de propósito para ser consideradas vulneráveis…
— Do ponto de vista médico só posso dizer que encontramos pessoas que se mutilam, que tentam o suicídio. Se o fazem com segunda intenção, não me cabe a mim dizer.

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IV.O futuro deles não é aqui

— Venho do Paquistão e sou perseguido por ser cristão.
— Pode descrever-me uma igreja?

Este é o tipo de perguntas que são feitas pelas autoridades para avaliar as razões e a verdade das histórias que são contadas nas entrevistas para o processo de asilo. Entre os paquistaneses, que vêm de um país maioritariamente muçulmano, é comum dizerem que são cristãos e que são discriminados. Provavelmente conseguem fazer o retrato de uma igreja porque já viram muitas. Mas há mais questões.

— O que se celebra a 25 de dezembro?

Silêncio. Não sabem a resposta.

Emmanuel Chatzihalkias é advogado. Sentado no seu escritório, conta-nos como são recorrentes as histórias falsas, as invenções. “A maioria das pessoas cria uma história nas suas cabeças para conseguir asilo. Provavelmente ouviram uma história de alguém do mesmo país e contam algo semelhante.”

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Foi quando alugou uma casa a um grupo de voluntários que Emmanuel Chatzihalkias começou a envolver-se nos processos de pedido de asilo

Quem vem do Afeganistão fala na falta de estabilidade e na insegurança, da perseguição por parte dos grupos terroristas. Os naturais dos Camarões quase sempre contam que são da minoria anglófona, enquanto os congoleses garantem ter participado nas manifestações de 2017 contra o presidente do país.

“Há muita gente que tem histórias verdadeiras e que precisa mesmo de ajuda. Mas grande parte fantasia um passado para conseguir proteção. Claro que não vêm para cá para passar férias, até porque todos os países de onde vêm têm problemas graves”, esclarece Chatzihalkias. “No entanto, nem todos os casos são motivo de asilo ou para estatuto de refugiado.”

Pedidos de asilo na Grécia

Pedidos de asilo aceites na União Europeia

Pedidos aceites na Grécia por nacionalidades

No ano da assinatura do acordo UE-Turquia (2016)dispararam os pedidos de asilo na Grécia. Em 2017, aumentam também os requerimentos aceites, os sírios são quase todos acolhidos

Todos os que não são sírios lamentam-nos o mesmo: que o Governo os discrimina, que só quem vem da Síria é bem tratado, que vai para a Europa. “Dizer que são de lá é frequente.” Desde que o acordo entre a Turquia e a União Europeia entrou em vigor, Chatzihalkias recebe pedidos de apoio legal nos processos de requerimento de asilo. “Antes não acontecia porque ninguém queria ficar na Grécia. Agora têm de o fazer aqui para evitar serem imediatamente deportados.”

Pelo acordo, apenas os casos vulneráveis não podem, em circunstância alguma, ser enviados de volta à Turquia. Isso inclui grávidas, idosos, famílias, doentes, menores desacompanhados ou vítimas de comportamentos de discriminação de género. E é neste detalhe que a administração do campo se socorre para explicar o que designa “o El-Dourado da vulnerabilidade”.

“Após a primeira entrevista de asilo, 90% são considerados vulneráveis. E para o conseguirem tentam até o suicídio - por exemplo, cortar a mão ou trepar postes elétricos apenas para provarem que são mentalmente instáveis. Se tiverem vulnerabilidade, podem ficar na Europa sem problemas”, refere o diretor do Centro de Identificação e Receção de Moria, Giannis Balpakakis

"Era difícil dormir sabendo que estava no mesmo espaço que alguém que matou"

— Quais os casos que mais o marcaram? - perguntamos a Chatzihalkias.
— A reunificação de uma família na Bélgica e uma jovem da Costa do Marfim que estava cá sozinha e que acolhi.
— Porquê?
— De alguma forma apeguei-me e sentia-me parte da família. Mas há outra história, outra pessoa que talvez possam conhecer.

Dias depois encontramo-nos com Cheryl Nyokonda no escritório do advogado. Ela que já viveu em Moria e também no campo de Kara Tepe está agora com Chatzihalkias e a família dele na cidade: “Ficava sozinha no campo e, ao final do dia, vinha ao centro para as aulas grego e era muito difícil. Agora faz parte da nossa família”.

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Cheryl está a aprender grego. Ao final do dia, tem aulas e está a terminar o secundário

“Olá, desculpem o atraso.” Cheryl chega atrapalhada. “Vamos para cima, para a sala. Estamos mais sossegados.” Conheceu Chatzihalkias quando estava presa. Por quase três meses ficou numa cela de dois metros por dois metros, numa esquadra da polícia em Mitilene. O seu pedido de asilo foi recusado, acusaram-na de estar a mentir. Recorreu da decisão e o pedido foi outra vez negado. Nesse momento ficou totalmente desprotegida. “A pessoa pode ser detida a qualquer instante.”

O processo de requerimento de asilo é longo e demorado. Por vezes passam-se meses entre a entrevista de admissibilidade e a de elegibilidade. “Há quem esteja cá à espera por mais de um ano, na verdade há quem já esteja há dois”, diz-nos o advogado. O seu papel começa habitualmente após a primeira recusa do pedido de asilo. “Precisam de estar bem preparados para as perguntas.” Cheryl não estava.

Como funciona um processo de pedido de asilo, passo a passo

1º Nível

Pedido

1.1Assim que chegam à ilha são detidos e levados para Moria, onde a Frontex (Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira) faz o primeiro registo e exames de rotina;

1.2Ficam em Moria e preenchem o pedido formal de asilo à Grécia (impede deportação);

1.3são chamados pela EASO (European Asylum Support Office) para o registo oficial no serviço de asilo grego: recebem cartão de candidato a proteção internacional, o carimbo vermelho e a data para uma primeira entrevista;

1.4Entrevista de Admissibilidade: são apuradas as nacionalidades e questionado os motivos porque vieram da Turquia e porque não se candidataram lá;

1.5Se passarem, seguem para a principal entrevista de elegibilidade: são explorados os motivos para fugirem do país de origem e a razão do têm medo em regressar. A decisão pode demorar de um mês a um ano.

2º Nível

Recurso

2.1Se passarem na entrevista de elegibilidade são acolhidos;

2.2Se o pedido for negado podem recorrer da decisão (têm um prazo de 30 dias para recorrer por escrito para um Comité de Apelo sediado em Atenas, que toma a decisão apenas em documentos e o candidato a asilo não é ouvido presencialmente;

2.3Se o recurso for aceite são acolhidos.

3º Nível

Segundo recurso

3.1Se o primeiro recurso for rejeitado, podem ainda voltar a recorrer. Neste momento podem ser detidos e deportados para a Turquia a quaçquer momento;

3.2São ouvidos em tribunal (e única vez que estão cara a cara com o Comité de Apelo em Atenas);

3.3Se o recurso for aceite são acolhidos. Se for negado, são deportados de volta para a Turquia, sem hipótese de mais recursos.

Como o centro de detenção em Moria é apenas para homens, Cheryl ficou na esquadra de Mitilene, que partilhou com mais duas marroquinas. Depois, veio uma mulher do Congo. “Havia muita gente a chegar e a sair. Traziam pessoas de Atenas condenadas por crimes como tráfico de drogas ou homicídio. Era difícil dormir sabendo que estava no mesmo espaço que alguém que matou.”

Estava sempre dentro da cela. Pedia permissão para tomar duche, para ir à casa de banho. Não tinha nada para fazer, apenas comia ou dormia. Um dia apareceu Chatzihalkias, que levou o caso a tribunal e conseguiu a sua libertação. Desde aí, Cheryl visitava todos os dias o escritório para saber os desenvolvimentos do seu processo. Entretanto, começou a ir à escola e a conviver com a família do advogado. Quando estes foram de férias, perguntaram-lhe se gostaria de ficar em casa deles.

“Nunca cuidei de animais de estimação e fiquei um bocadinho assustada por ter a meu cargo um cão e um gato. Como vou fazer isto?” Quando as férias acabaram, a família vinha com uma decisão tomada: acolher Cheryl. “Agora vivo com a família. E tudo é diferente: vou à escola, tenho amigos, posso sair... Antes nem tinha dinheiro para beber um café. Na verdade, nem amigos tinha.”

Em maio, Cheryl e Chatzihalkias vão apresentar-se para a última instância. Depois logo se saberá a decisão.

2224 pessoas foram devolvidas a território turco desde março de 2016 ao abrigo do acordo UE-Turquia

Mahamadou, o refugiado que nasceu em Espanha e não pode voltar à Europa

Dezenas de pessoas estão agarradas à vedação, têm nas mãos pastas ou papéis, há um enorme burburinho de fundo: trata-se de um dos lugares mais movimentados de Moria. Alguns dos que ali estão parecem esperar há bastante tempo, mães com filhos ao colo, homens que suspiram enquanto levam as mãos à cabeça.

“É a fila de espera para entrar na EASO”, explica o guia que nos acompanha em todo o percurso dentro da base militar. Versão oficialmente correta: são os escritórios do Gabinete Europeu de Apoio em matéria de Asilo, onde todos os meses os milhares de pessoas que ali vivem se apresentam para renovar o seu cartão de requerente de asilo internacional (com o carimbo vermelho que os proíbe de sair de Lesbos) e para garantirem o subsídio de 80 ou 90 euros.

Não é aqui que encontramos Mahamadou, que só terá de ir renovar o cartão dentro de alguns dias. É já do lado de fora, em Olive Grove - porque não aguentou mais de um mês dentro da base militar -, que o vemos a andar de um lado para o outro e a usar o tempo de espera para ser voluntário na “Movement on the Ground”, mais uma organização não governamental que trabalha em Moria. “Desde pequeno que sou bom para as pessoas porque sei o que é ser maltratado, por isso quando vejo pessoas em necessidade ajudo.” Ajuda na limpeza, na pintura dos contentores do lixo, organiza torneios de futebol.

maquete original
Mahamadou não quer mostrar mostrar o rosto, tem medo. No campo, muitos falam das suas histórias, poucos se deixam fotografar

Fugiu da Gâmbia para o Senegal, depois para a Turquia. Chegou à Grécia. Está sozinho.

— E onde está a tua família?
— Em Espanha.
— Conseguiram que o pedido de asilo fosse aceite?
— Não… É uma longa história.
— Podes contar?
— Na verdade eu nasci em Espanha, perto de Barcelona, em maio de 1995.

A certidão de nascimento prova o local onde nasceu. A lei da nacionalidade espanhola não o deixa ser espanhol, pois os pais são africanos e viveu poucos meses em Espanha, a família voltou para África quando Mahamadou ainda era muito pequeno.

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A certidão de nascimento de Mahmadou, pedida recentemente para entregar e tentar acelerar o processo de pedido de asilo

Já procurou um comprovativo de vulnerabilidade porque também sabe que isso lhe dá o direito de ficar. Não conseguiu. Está sempre com medo que o mandem embora. Não quer mostrar a cara e é a primeira vez que dá o seu testemunho. Na Gâmbia, para onde regressou só com o irmão mais velho, não tem onde morar. “Sou sem-abrigo.” Um tio ficou-lhes com a casa de família e ameaçou-os. O irmão atirou-se ao Mediterrâneo no norte de África em direção a Itália, Mahamadou viajou por terra. Chegou no início do verão.

Já estamos no aeroporto para regressar a Portugal quando recebemos um email de Mahamadou:

“Olá
Como estão? É o Mahamadou de Moria.
Preciso de saber se conseguem fazer algo com o meu caso.
As coisas estão a mudar aqui e algumas delas não vão ser nada fáceis para nós.”

— Qual é o teu sonho, Mahamadou?
— Já não tenho.
— Mas não pensas no futuro?
— Não… Ainda nem sei se vou sobreviver a este lugar.

maquete original
ReportagemMarta Gonçalves Edição Vídeo e SonorizaçãoJoão Santos Duarte IlustraçãoJoão Carlos Santos InfografiaJaime Figueiredo Web DesignTiago Pereira Santos Web DeveloperMaria Romero Coordenação editorialJoana Beleza, Germano Oliveira DireçãoPedro Santos Guerreiro
ⓒ Expresso - Impresa Publishing S.A. 2019
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