Leituras de Verão

38 sugestões para as suas férias

Romance e Conto

A Humanidade segundo Atwood

Com “MaddAddam”, a escritora canadiana conclui uma trilogia em que ao desencanto existencial se une a compaixão por quem tem de reinventar tudo a partir do zero

Texto José Mário Silva

Embora já fosse considerada uma das mais importantes romancistas da atualidade, Margaret Atwood invadiu o mainstream ficcional em 2017, com a adaptação televisiva de “História de Uma Serva”, um romance distópico de 1985 que imaginava um futuro em que os EUA se transformavam em Gilead, teocracia cristã onde se suspendem radicalmente os direitos humanos, em particular os das mulheres (proibidas de ler, entre outras aberrações machistas).

Nos dois primeiros volumes, “Órix e Crex” e “O Ano do Dilúvio”, assistimos aos efeitos de uma pandemia que praticamente extinguiu a espécie humana, quando um dos ingredientes de um mirífico comprimido — chamado 7º Céu (concede aos consumidores juventude eterna e libido inesgotável) — se revela fatal.

MaddAddam | Margaret Atwood | Bertrand, 2022, 464 págs. | €18,80

MaddAddam | Margaret Atwood | Bertrand, 2022, 464 págs. | €18,80

O que quer dizer ‘o mundo’?

Nestes 18 contos, Ray Bradbury aborda questões cruciais do ser humano

Texto Luciana Leiderfarb

Uma guerra nuclear tem início e, pela estrada, um carro foge. Hernando é o homem da cabana à beira da estrada. O carro pára, precisa de água, o condutor explica-lhe que a guerra começou, o fim do mundo. E Hernando, homem simples, apenas se questiona: “O que querem dizer com ‘o mundo’?”

Este é o final de um dos contos de “O Homem Ilustrado”, a coleção que Ray Bradbury publicou em 1951. E mostra até que ponto um livro catalogável como ficção científica pode indagar sobre as questões humanas mais profundas. O livro é, segundo a breve introdução do autor, uma forma de “escrever para não morrer”.

Talvez por isso exista nele, página a página, algo de final, de definitivo. Como aquele conto em que uma nave espacial terrestre aterra num planeta desconhecido exatamente um dia depois de Deus, Cristo ou o que se queira chamar-lhe ter partido.

Ou aquele outro texto em que a chegada de um homem branco ao planeta onde famílias negras se refugiaram após séculos de escravidão e de segregação gera sentimentos primeiro de ódio cego e depois de compaixão.

Ou aquele em que uma casa altamente informatizada se vira contra os seus donos, atacando-os.

Ou as páginas em que “uma chuva que afogava todas as chuvas” caía incessante em Vénus sobre homens que já eram verdes devido aos fungos e ao musgo a crescer-lhes na pele.

O título desta coleção tem uma razão de ser, que o leitor terá de descobrir. Trata-se do fio condutor que liga os textos e os converte em capítulos de uma única história, na qual existe um narrador que, no epílogo, anteverá o seu próprio fim.

Como sempre acontece nos livros de Ray Bradbury, as imagens são fortes e as metáforas poderosas, e o impulso poético que atravessa as frases está ao serviço de uma narrativa bem construída que sugere mais do que diz. É Bradbury no seu melhor, a mostrar, sem limites, os limites de que somos feitos.

O Homem Ilustrado | Ray Bradbury | Cavalo de Ferro, 2022, 312 págs. | €20,45

O Homem Ilustrado | Ray Bradbury | Cavalo de Ferro, 2022, 312 págs. | €20,45

Contos de Odessa

Mestre russo do conto, Isaac Babel publicou meia dúzia de livros antes de ser fuzilado pelo estalinismo. “Contos de Odessa” (1931) são histórias vívidas sobre gangsters e guetos no ocaso do czarismo. / Pedro Mexia

Contos de Odessa | Isaac Babel | Relógio D’Água, 2022, 96 págs. | €15

Contos de Odessa | Isaac Babel | Relógio D’Água, 2022, 96 págs. | €15

A Outra Veneza

Autor de “Breviário Mediterrânico”, Matvejevitch recorre à mesma erudição para captar Veneza “sob um ângulo diferente”, ao arrepio da “indústria da beleza”. Contenção lapidar. / José Mário Silva

A Outra Veneza | Predrag Matvejevitch | Quetzal, 2022, 152 págs. | €14,40

A Outra Veneza | Predrag Matvejevitch | Quetzal, 2022, 152 págs. | €14,40

Cuidado com o Cão

Recuperando personagens de romances anteriores, Rodrigo Guedes de Carvalho cria mais um mosaico complexo de vidas que ora se tocam ora se afastam, procurando um sentido ou a redenção. / José Mário Silva

Cuidado com o Cão | Rodrigo Guedes de Carvalho | D. Quixote, 2022, 384 págs. | €17,90

Cuidado com o Cão | Rodrigo Guedes de Carvalho | D. Quixote, 2022, 384 págs. | €17,90

Baiôa Sem Data para Morrer

Primeira obra, começa assim: “Aqui se fixam memórias e fantasmas — tantas vezes, se não todas, a mesma coisa.” Ao confronto entre passado e presente junta-se o do mundo urbano e o rural. / Luciana Leiderfarb

Baiôa Sem Data para Morrer | Rui Couceiro | Porto Editora, 2022, 448 págs. | €19,90

Baiôa Sem Data para Morrer | Rui Couceiro | Porto Editora, 2022, 448 págs. | €19,90

Mrs. Dalloway

Muitos terão ouvido a primeira frase: “Mrs. Dalloway disse que iria ela mesma comprar as flores.” Segue-se a descrição de uma festa, cruzada com uma reflexão sobre suicídio e loucura. / Luciana Leiderfarb

Mrs. Dalloway | Virginia Woolf | Cavalo de Ferro, 2021, 205 págs. | €14,95

Mrs. Dalloway | Virginia Woolf | Cavalo de Ferro, 2021, 205 págs. | €14,95

Poesia

A obra é um corpo vivo

Em quase 1400 páginas, reúnem-se os 17 livros de poesia de Ana Luísa Amaral

Texto José Mário Silva

No seu primeiro livro, “Minha Senhora de Quê” (1990), Ana Luísa Amaral (A.L.A.) começa um poema intitulado ‘A Verdade Histórica’ com estes prosaicos versos: “A minha filha partiu uma tigela/ na cozinha.” Embora lhe apetecesse escrever “sobre o evento”, a mãe/sujeito poético logo pôs de lado “inspiração e lápis” para “pegar numa vassoura”. Do acidente banal do quotidiano parte-se para a suspensão lírica, esse intervalo no fluxo do tempo que permite habitar o silêncio, inquirir sobre o mundo ou a lógica das coisas. A poética de A.L.A. sempre funcionou assim. Ainda no mesmo poema, lemos: “A cozinha varrida de tigela/ ficou diferente da cozinha/ de tigela intacta:/ local propício a escavação e estudo,/ curto mapa arqueológico/ num futuro remoto.” Doze anos mais tarde, em “Imagias”, volta a esse momento já distante: “A minha filha já não parte/ tigelas na cozinha. (...) Em lugar de as quebrar,/ a minha filha cola outras tigelas,/ como eu tento colar/ ainda o tema,/ o instante perdido da cozinha.”

Um dos prazeres da leitura de “O Olhar Diagonal das Coisas”, espesso volume que reúne os 17 livros de poesia publicados pela autora, é descobrir a rede de conexões entre poemas: reflexos, continuidades, ecos, inversões. Cada livro tem o seu fio, a sua ordem, o seu cosmos. Mas há um mesmo sopro a percorrê-los, um mesmo ímpeto. A obra toda como um corpus — num sentido literal, orgânico. E a busca maior é sempre a do “excesso mais perfeito”: “Queria um poema de respiração tensa/ e sem pudor. (...) Um poema feito de excessos e dourados,/ e todavia muito belo na sua pujança obscura/ e mística./ Ah, como eu queria um poema diferente/ da pureza do granito, e da pureza do branco,/ e da transparência das coisas transparentes. (...) Nu, de redondas formas, um tal poema queria./ Uma contrarreforma do silêncio.”

O Olhar Diagonal das Coisas | Ana Luísa Amaral | Assírio & Alvim, 2022, 1384 págs. | €44

O Olhar Diagonal das Coisas | Ana Luísa Amaral | Assírio & Alvim, 2022, 1384 págs. | €44

Poemas Envelope

Todos os poemas de Emily Dickinson (1830-1886) parecem cartas dirigidas a alguém, não se sabe a quem, mensagens pessoais e crípticas, mas estes levam isso à letra; escritos em envelopes reutilizados, o suporte precário adensa o enigma da grafia, da gramática, do sentido. / Pedro Mexia

Poemas Envelope | Emily Dickinson | Edições do Saguão, 2021, 108 págs. | €16

Poemas Envelope | Emily Dickinson | Edições do Saguão, 2021, 108 págs. | €16

Sonetos de Shakespeare

Entre as mais canónicas traduções de Vasco Graça Moura conta-se esta integral dos 154 sonetos de Shakespeare, poemas maneiristas, melancólicos, sarcásticos, vitalistas ou desencantados. / Pedro Mexia

Sonetos de Shakespeare | Quetzal, 2016, 344 págs. | €17,70

Sonetos de Shakespeare | Quetzal, 2016, 344 págs. | €17,70

Noite Vertical

Toda a poesia e dois livros inéditos de uma voz que ainda não encontrou o lugar que merece na poesia portuguesa: “A grão, espanto e ouro — arde. E toda a Terra se ilumina e molda pelo seu rosto.” / José Mário Silva

Noite Vertical | Zetho Cunha Gonçalves | Maldoror, 2022, 444 págs. | €18

Noite Vertical | Zetho Cunha Gonçalves | Maldoror, 2022, 444 págs. | €18

Cosmos e Casas

Fortíssimo livro de estreia, virado para os labirintos da memória e para a luta corpo a corpo com a linguagem. “A palavra desenrola/ sua marcha constante/ pedindo presença/ desvelo dança.” / José Mário Silva

Cosmos e Casas | Diana V. Almeida | Urutau, 2021, 108 págs. | €13,50

Cosmos e Casas | Diana V. Almeida | Urutau, 2021, 108 págs. | €13,50

Sétimo Dia

O espólio do poeta continua a revelar tesouros. Como estes poemas, o primeiro dos quais diz: “A minha maneira de curar-me é perdoar as ofensas.” E um dos últimos: “Mãe, sinto o corpo a tremer. E sou um homem clandestino. Uma casa para demolir.” / Luciana Leiderfarb

Sétimo Dia | Daniel Faria | Assírio & Alvim, 2021, 160 págs. | €15,50

Sétimo Dia | Daniel Faria | Assírio & Alvim, 2021, 160 págs. | €15,50

História

Fenómenos urbanos

Dezasseis séculos de história muçulmana evidenciam os contrastes entre passado e presente, num livro que aspira a ser uma viagem

Texto Luís M. Faria

O mundo islâmico tornou-se símbolo de atraso e obscurantismo, mas nem sempre foi assim. Durante séculos, estava muito além do mundo cristão tanto em riqueza e poder como em cultura. “Em meados do século XI, o universo muçulmano não ficava atrás de nenhuma outra fé ou região da terra no que toca à sofisticação da sua civilização”, escreve Justin Marozzi no presente livro. “Se fosse necessário demonstrar, isso está gravado na pedra (ou nos tijolos cozidos ao sol, no caso do Iraque) por todo o Médio Oriente. Por definição, a civilização é um fenómeno urbano, e ninguém construía cidades como os muçulmanos.”

Nascido no deserto árabe no século VII, com o tempo o território islâmico abrangeu o Médio Oriente, África, Europa e Ásia. Hoje, mais de metade dos muçulmanos vive na zona asiática, em países como a Índia e a Indonésia. No entanto, o fascínio do mundo — pelo menos, de boa parte do nosso mundo — continua a focar-se em países como o Egito e o Irão, pela sua importância geopolítica e, bem, porque nos estão mais próximos. Já lugares como o Dubai e Doa, tratados nos capítulos finais deste livro, têm uma atração de outro tipo.

Escrito por um jornalista e historiador popular, “Impérios Islâmicos” cobre os 16 séculos de história muçulmana. A sua abordagem é falar de impérios, um por século a partir de uma cidade. Por razões familiares e não só, Marozzi viajou por países muçulmanos desde a adolescência. Cada capítulo alterna entre o presente de uma cidade e o seu século mais brilhante, com digressões pela história dos impérios em questão e pela arquitetura do lugar.

Em termos gerais, a abordagem de Marozzi consiste em contrastar as glórias do passado com o caos e a decadência do presente. “Os conflitos, o derramamento de sangue, a instabilidade, a pobreza, e até as catástrofes humanitárias, em países como o Iémen, a Síria e o Iraque, tornaram-se assustadoramente prevalentes”, diz ele. “De uma ponta do norte de África e do Médio Oriente a outra, a terrível fitna, praga ancestral da divisão e conflito, grassa mais uma vez.”

De Meca, Damasco e Bagdade ao Cairo, Cabul e Doa, o périplo cobre o período da história muçulmana, mas não é uma amostra totalmente fiável da realidade atual, pois faltam países como a Indonésia — o maior país muçulmano do mundo, seguido pelo Paquistão, a Índia e o Bangladexe. Nenhum desses países têm direito a um capítulo/cidade. Jerusalém e Córdova sim, tal como Samarcanda, no Usbequistão, e, naturalmente, Constantinopla. Marozzi parece seguir os passos das suas próprias viagens, e é um viajante entusiástico. Não será a maneira académica de escrever História, mas há maneiras menos informadas de o fazer. Ou de viajar.

Impérios Islâmicos | Justin Marozzi | Relógio D’Água, 2022, 584 págs. | €26

Impérios Islâmicos | Justin Marozzi | Relógio D’Água, 2022, 584 págs. | €26

Cartas do Pai

O subtítulo diz tudo: são “cartas dos pais reclusos no Gulag aos filhos”, devidamente contextualizadas, em termos biográficos, cronológicos e de localização na ampla rede de campos de detenção estalinistas. A escritora Liudmila Ulítskaia, no prefácio, explica que “até guardar estas cartas paternas era uma proeza”. Ao todo, contam-se 16 exemplos “entre milhões de outros idênticos” que a História apagou, conservados pela Organização Memorial, criada em 1989 para arquivar os vestígios da época da grande repressão. / Luciana Leiderfarb

Cartas do Pai | Relógio D’Água, 2022, 280 págs. | €19

Cartas do Pai | Relógio D’Água, 2022, 280 págs. | €19

Breve História do Afeganistão de A a Z

Poucas vezes se terá aprendido tão pouco e desperdiçado tanto como nestes 20 anos de “ocupação” de um país cuja sociedade tem sido repetidamente proibida de quase tudo pelos seus regimes políticos. Exceto de estar, permanecer e continuar em guerra. “Como recuperar um país cuja despesa pública depende 75% da ajuda internacional?” Como esta há muitas perguntas sem resposta neste livro sobre um país a partir do qual o autor reportou para a RTP em 2001, quando caiu o primeiro governo talibã. / Cristina Peres

Breve História do Afeganistão de A a Z | Ricardo Alexandre | Oficina do Livro, 2022, 352 págs. | €18,90

Breve História do Afeganistão de A a Z | Ricardo Alexandre | Oficina do Livro, 2022, 352 págs. | €18,90

A Máfia dos Bombardeiros

Esta é a história de como a guerra poderia ter evoluído, se é que tal é possível. Gladwell conta como um grupo de pilotos norte-americanos tentaram, com tecnologia incipiente, utilizar miras de precisão para bombardear apenas pontos estratégicos, que enfraquecessem o adversário, poupando vidas civis. Na II Guerra Mundial, o falhanço desta ideia materializou-se na destruição do Japão. Mas o livro deixa em aberto a pergunta sobre a razão por que, hoje, neste mundo de armas altamente tecnológicas e precisas, a guerra continua a ser encarada como o foi há 70 anos. / Luciana Leiderfarb

Biografia

Os mistérios de Pessoa

Richard Zenith investigou a vida (poliédrica) do poeta

Texto José Mário Silva

Chegado a Portugal em 1987, para traduzir os nossos cancioneiros medievais, Richard Zenith embateu de frente com uma obra literária que lhe mudou a vida: “O Livro do Desassossego”, de Bernardo Soares, cuja primeira edição só surgira cinco anos antes. Fascinado, quis logo traduzi-lo para inglês. E foi assim que entrou no labirinto de Fernando Pessoa. Como estabelecer a versão definitiva de um livro cujos limites são elásticos, dependendo dos critérios de cada editor e da discutível inclusão (ou exclusão) de determinados fragmentos?

Para resolver as dúvidas, mergulhou no gigantesco espólio do poeta e nunca mais de lá saiu, tornando-se um dos mais prolíficos investigadores pessoanos. Esse conhecimento profundo da obra foi essencial para o projeto que o ocupou durante mais de uma década: a escrita desta monumental biografia, que surgiu em 2021 nos países anglo-saxónicos, com rasgados elogios da crítica, e já este ano em português, traduzida por Salvato e Vasco Teles de Menezes. Além da reconstituição da existência em Lisboa, sempre bem contextualizada historicamente, tal como os múltiplos empreendimentos pessoais e literários, um dos grandes trunfos do livro é a exaustiva investigação, in loco, sobre os anos da infância e adolescência em Durban. O retrato é poliédrico. A escrita aproxima-nos ao máximo do que o poeta foi. Ou melhor, do seu mistério.

Pessoa: Uma Biografia | Richard Zenith | Quetzal, 2022, 1184 págs. | €29,90

Pessoa: Uma Biografia | Richard Zenith | Quetzal, 2022, 1184 págs. | €29,90

Sontag: Vida e Obra

Este é um retrato único de uma das mais importantes e emblemáticas intelectuais norte-americanas do século XX. O biógrafo, Benjamin Moser, que recebeu o Pulitzer com este livro, teve acesso a arquivos da autora até então desconhecidos e passou anos a investigar a vida de Sontag, os seus interesses artísticos, políticos e feministas, a luta contra o cancro, a relação com a mãe, o marido e o filho, assim como a união com a fotógrafa Annie Leibovitz e todo o seu posicionamento, criticado por demasiado contido, perante a sua homossexualidade. / Luciana Leiderfarb

Sontag: Vida e Obra | Benjamin Moser | Objectiva, 2022, 684 págs. | €28,85

Sontag: Vida e Obra | Benjamin Moser | Objectiva, 2022, 684 págs. | €28,85

Integrado Marginal

Esta biografia de José Cardoso Pires é a aproximação mais exaustiva já feita à vida do escritor português, autor de obras como “O Delfim” ou “De Profundis, Valsa Lenta”. Para a levar a cabo, o autor mergulhou nos arquivos de jornais e no espólio, nos hábitos de escrita, nas relações familiares, assim como na história do Portugal em que ele cresceu e no seu meio literário. “Neste livro, vive um homem cuja personalidade foi formada no antagonismo”, diz o biógrafo, assumindo que nenhuma biografia é definitiva. E que nenhum homem subsiste sem zonas de sombra. / Luciana Leiderfarb

Integrado Marginal | Bruno Vieira Amaral | Contraponto, 2021, 599 págs. | €20,90

Integrado Marginal | Bruno Vieira Amaral | Contraponto, 2021, 599 págs. | €20,90

O Homem Infinito: Vida e Obra de Nadir Afonso

No ano em que esta biografia saiu celebrava-se o centenário do artista e arquiteto nascido em Chaves, em 1920, e falecido em Cascais, em 2013. Trabalhou com Le Corbusier e Niemeyer, recusou a arquitetura como arte e por isso tornou-se pintor abstracionista, integrando as vanguardas europeias. “Nadir, que parece ter vivido inúmeras vidas, poderia ter sido um homem múltiplo, quase possuindo qualidades impossíveis para o ser humano: a eternidade e o desdobramento”, lê-se a dada altura. / Luciana Leiderfarb

O Homem Infinito: Vida e Obra de Nadir Afonso | Guilherme Pires | Influência, 2021, 304 págs. | €18,79

O Homem Infinito: Vida e Obra de Nadir Afonso | Guilherme Pires | Influência, 2021, 304 págs. | €18,79

Política

Putin e a banalidade do terror

No ano da guerra, os livros que nos ajudem a entender o regime de Putin são essenciais

Texto Martim Silva

Vladimir Putin, o antigo espião que governa a Rússia com mão de ferro desde o início do século, criou um regime baseado no terror e no medo. Chegou ao poder com as mãos manchadas de sangue, quando no final de 1999 um conjunto de explosões (nunca bem explicadas e cujo rasto leva ao FSB, herdeiro do KGB) em várias cidades russas fizeram três centenas de mortes civis e criaram o caldo perfeito para justificar a guerra na Chechénia e, com ela, o aumento súbito de popularidade do então primeiro-ministro de Boris Ieltsin, que meses depois passaria rapidamente de Presidente interino a Presidente eleito da Rússia. Com as mãos manchadas de sangue continua Putin em 2022, ao ter iniciado a guerra com a Ucrânia há cinco meses.

Eis a tese central de “Quanto Menos Soubermos, Melhor Dormimos — Do Terror à Ditadura na Rússia sob Ieltsin e Putin”, do historiador e jornalista David Satter, profundo conhecedor da realidade russa, que por lá viveu longos períodos desde 1976, intercalados por expulsões justificadas com as suas investigações e relatos. Este é um dos dois livros sobre a Rússia lançados pela editora recém-criada por Carlos Vaz Marques, jornalista e apresentador na SIC Notícias do “Programa Cujo Nome Estamos Legalmente Impedidos de Dizer”.

Quanto Menos soubermos, melhor dormimos | David Satter | Zigurate, 2022, 208 págs. | €16,90

Quanto Menos soubermos, melhor dormimos | David Satter | Zigurate, 2022, 208 págs. | €16,90

A Arma Perfeita

O autor escreve sobre a guerra cibernética que está a decorrer. Ele é o jornalista do “New York Times” que foi esgrimir com quem na Administração americana estava a tentar saber quanto é que o jornal tinha descoberto sobre as atividades de ciberdefesa e ciberataque do Governo americano contra o Irão, o muito famoso Stuxnet. O secretismo é a lei desta área da segurança que escapa ao debate público e que está no topo da agenda de todos os Estados. Enquanto nova categoria de “armamento”, faz com que todas as ações que lança (como que) legitimem uma resposta equivalente por parte dos alvos. / Cristina Peres

A Arma Perfeita | David E. Sanger | Casa das Letras, 2021, 432 págs. | €21,90

A Arma Perfeita | David E. Sanger | Casa das Letras, 2021, 432 págs. | €21,90

Uma Teoria da Democracia Complexa

No seu formato atual, a política não responde às necessidades do mundo contemporâneo. Esta é a conclusão deste livro, lançado há um ano por um dos 25 grandes pensadores do mundo segundo a revista “Le Nouvel Observateur”. O filósofo político traça aqui o projeto que deveria ser o de todos: “Pensar uma democracia complexa para governar as sociedades do século XXI.” E isso é necessário porque “a principal ameaça à democracia não é a violência, nem a corrupção, ou a ineficiência, mas sim a simplicidade”. O grande desafio é deixar de querer adaptar os velhos conceitos às novas realidades, sair do desfasamento teórico e encontrar conceitos novos, que correspondam em complexidade àquilo que as nossas sociedades espelham. / Luciana Leiderfarb

Uma Teoria da Democracia Complexa | Daniel Innerarity | Ideias de Ler, 2021,  408 págs.| €18,80

Uma Teoria da Democracia Complexa | Daniel Innerarity | Ideias de Ler, 2021,  408 págs.| €18,80

Ciência

A evolução não é um conto

Quando um escritor e um paleontólogo dialogam, tudo pode acontecer

Texto Luciana Leiderfarb

O que acontece quando um escritor encontra um paleontólogo? Segundo este livro maravilhoso, o mesmo que ocorreria se um neandertal trocasse impressões com um Homo sapiens. Juan José Millás converteu em livro mais de um ano de conversas com o paleontólogo Juan Luis Arsuaga, e o resultado é uma narrativa humorística e inteligente sobre aquilo que nos distingue enquanto espécie. Tudo o que nos rodeia — um vale, uma loja de brinquedos, uma simples pedra, um parque infantil — fala da nossa evolução, do que deixamos de ser para sermos o que somos. E o que parece um mero passo é na verdade um salto gigantesco. O também jornalista Millás (nomeadamente no “El País”) consegue ser ao mesmo tempo narrativo e literal: há momentos em que as frases de Arsuaga apenas podem ser transcritas. O que define uma espécie? “Devias perguntar primeiro porque existem espécies.” Porque existem espécies? “Existem espécies porque tu dizes que existem. Na Natureza, tudo flui, não há nada estanque.”

A Natureza não quer saber de categorias humanas, diz o paleontólogo, distinguindo entre empréstimos genéticos — que existiram entre o neandertal e o sapiens — e hibridação. “Aquilo que não percebeste até agora é que a Pré-História não está nos sítios arqueológicos, isso é o que pensam os ignorantes (...). Carregamo-la dentro de nós, tu e eu”, explica ele. Carregamo-la no corpo, nas mutações dos primatas até ao bipedismo (“Uma autêntica maravilha arquitetónica. Nem o melhor engenheiro do mundo se teria lembrado de um colo como o do fémur, que suporta todo o peso do corpo quando caminhamos”). Ou na revolução alimentar do grande para o pequeno, impulsionada pelas mulheres e um degrau abaixo da agricultura (“eu penso que a cena normal é aquela em que os caçadores voltam (...) sem nada e lá estão as mulheres a aguardá-los com os geófitos, as lapas que provêm da recolha do marisco, em suma, com os itens pequenos”). Dissecando estas etapas, percebe-se que não houve uma ordem. “Isto não é um conto. Se quiseres um conto, vai ao ‘Génesis’. A evolução não tem a estrutura de um relato. A evolução é o mundo do caos.”

A Vida Contada por um Sapiens a um Neandertal | Juan José Millás e Juan Luis Arsuaga | Editorial Presença, 2022, 184 págs. | €14,90

A Vida Contada por um Sapiens a um Neandertal | Juan José Millás e Juan Luis Arsuaga | Editorial Presença, 2022, 184 págs. | €14,90

O corpo

“Um Guia para Ocupantes” é o subtítulo de uma espécie de biografia do corpo que ocupamos — e nos ocupa. O autor, que também escreveu “Breve História de Quase Tudo”, tem o dom de transformar informação em narrativa e nos levar a ler meio milhar de páginas como se de um romance se tratasse. Como somos feitos, o que nos alimenta, nutre e envenena, como respiramos, o que se passa na doença, o que é a dor são alguns dos 23 capítulos deste manual inusitado com passagens na primeira pessoa que nos familiarizam com o humano que teve esta ideia luminosa. / Luciana Leiderfarb

O Corpo | Bill Bryson | Bertrand, 2019, 536 págs. | €22,20

O Corpo | Bill Bryson | Bertrand, 2019, 536 págs. | €22,20

Contágio

Nestes tempos virais — em todos os sentidos —, a leitura deste livro esclarece como são e como funcionam os vírus que estão a mudar o mundo. O “New York Review of Books” classificou-o de “obra-prima”, e de facto não é difícil imaginar porquê. A globalização e a expansão económica obrigaram a mudanças drásticas nos ecossistemas, o que nos tornou vulneráveis a infeções que se mantinham encapsuladas nos habitats que invadimos. As consequências catastróficas deste fenómeno são visíveis, mas como revogá-las? / Luciana Leiderfarb

Contágio | David Quammen | Objectiva, 2020, 600 págs. |€25,45

Contágio | David Quammen | Objectiva, 2020, 600 págs. |€25,45

Música e Fotografia

Silêncio Aflito | Luís Trindade | Tinta da China, 2022, 496 págs. | €24,90

Silêncio Aflito | Luís Trindade | Tinta da China, 2022, 496 págs. | €24,90

Silêncio Aflito

Caso raríssimo entre a escrita sobre música popular em Portugal, Luís Trindade atribui às canções (o título vem de um espécime de José Afonso) o protagonismo devido, tomando-as como um organismo com vida própria, capaz de agirem sobre a sociedade, independentes dos seus criadores. Exemplar. Pena oferecer menor importância ao teatro na época estudada, do pós-guerra aos anos 70, e porventura exagerar a importância dos EUA. / Miguel Cadete

Escrítica Pop | Miguel Esteves Cardoso | Bertrand, 2022, 640 págs. | €24,40

Escrítica Pop | Miguel Esteves Cardoso | Bertrand, 2022, 640 págs. | €24,40

Escrítica Pop

Passados 40 anos sobre a 1ª edição, saúde-se esta versão ampliada, ou Miguel Esteves Cardoso enquanto aguçado crítico de música — entre Lisboa e Manchester — no arranque da década de 80. Omite-se na capa o subtítulo “Um Quarto da Quarta Década do Rock”, talvez porque aqui se inclui também “O Ovo e O Novo”, texto editado em 1981 por A Regra do Jogo como capítulo algo escondido de um volume sobre pop-rock e onde MEC analisa música dos anos 70. Esta reedição tem prefácio de Manuel Falcão, fundador do jornal “Blitz”, e posfácio do próprio MEC. / Luís Guerra

Lisboa Clichê | Daniel Blaufuks | Tinta da China, 2021, 400 págs. | €24,90

Lisboa Clichê | Daniel Blaufuks | Tinta da China, 2021, 400 págs. | €24,90

Lisboa Clichê

Blaufuks, fotógrafo, via-lhe “uma aura de Nova Iorque tirada de um filme de detetives, em que nós éramos simultaneamente o detetive e o criminoso”, mas o preto e branco das luzes da cidade refletidas no “pavimento urbano” é o de uma Lisboa entre o final dos anos 80 e o início dos 90, período coincidente com um artista na casa dos 20, desperto para as vivências da liberdade: do crescimento da noite no Bairro Alto ao Chiado após o grande incêndio, mas ainda uma cidade de tascas, de novos hábitos em velhos lugares. Um outrora quotidiano. Não há que ter medo da saudade. / Luís Guerra

Banda Desenhada

A luz e o seu reverso

“Juventude” é um romance de crescimento em BD: há verão, mas também desalento

Texto Sara Figueiredo Costa

O mais recente livro de Marco Mendes conjura férias de verão e viagens juvenis, o rumo apontado ao mar e às travessias noturnas entre amores acabados de descobrir e amigos que parecem — e talvez sejam — para a vida. Esse lado luminoso tem um reverso, o das dores de crescimento por onde às vezes passam a doença e a morte, sombras que nunca deixam de fazer parte daquilo que somos. “Juventude” é um romance de crescimento em banda desenhada, cada prancha uma imagem de tons saturados de cor e detalhes que vão dando forma à narrativa.

Sem texto a estruturar os acontecimentos, a sequência de imagens faz-nos acompanhar o protagonista em momentos que se adivinham fundamentais num determinado período da sua vida, coincidente com a chegada à faculdade, a saída de casa dos pais, a conquista de um outro quotidiano onde se vão traçando novas liberdades. São pranchas de uma enorme candura, ecoando essa nostalgia pelas férias intermináveis e livres de preocupações, onde a vida parecia recomeçar, plena de possibilidades, a cada nascer do sol. E apesar dessa forte presença do verão, das viagens com amigos, das possibilidades ilusoriamente infinitas, “Juventude” faz-se igualmente de pranchas onde assoma o desalento, com a doença daquela que supomos a mãe do protagonista a ganhar espaço, mas também com momentos de solidão, desorientação, confronto com alguns silêncios difíceis de partilhar. E está aí a força deste livro, que não separa a festa da escuridão: há luz e cor em certas pranchas sombrias e há sombras e tons mais neutros que rondam momentos de notória alegria. A lembrar alguns dos mais belos contos de Cesare Pavese, o livro de Marco Mendes assenta no verão como uma luva para todo o ano.

Juventude | Marco Mendes | Turbina/A Seita, 2022, 120 págs. | €25

Juventude | Marco Mendes | Turbina/A Seita, 2022, 120 págs. | €25

Gente Remota

Ficção construída a partir de quatro entrevistas a antigos combatentes na Guerra Colonial, “Gente Remota” olha para o presente com vontade de o espicaçar, convocando os delírios gloriosos de um suposto império, os traumas de guerra de que pouco se fala, o racismo estrutural que preferimos ignorar e as ameaças à democracia que vamos empurrando com a barriga. Sem ceder ao panfleto, Sousa Lobo cria uma história atual e desconcertante sobre Portugal e os seus mitos, recorrendo ao jogo de espelhos sempre presente no seu trabalho — um dos mais interessantes do panorama contemporâneo da BD nacional. / Sara Figueiredo Costa

Gente Remota | Francisco Sousa Lobo | Chili Com Carne, 2022, 100 págs. | €15

Gente Remota | Francisco Sousa Lobo | Chili Com Carne, 2022, 100 págs. | €15

O Amor Infinito Que Te Tenho e Outras Histórias

É a quarta edição de um dos livros portugueses de BD mais traduzidos internacionalmente. Paulo Monteiro reúne aqui uma série de histórias curtas, originalmente publicadas em revistas e fanzines entre 2005 e 2010. São histórias onde o quotidiano é subitamente atravessado por uma poética da melancolia, mas também pela subtileza na escolha de metáforas visuais, por vezes rondando o fantástico, sem nunca tropeçar no cliché. Num preto e branco densamente povoado de personagens que refletem tantos dos nossos abismos, este livro continua a ser uma bela surpresa 12 anos depois da sua primeira edição. / Sara Figueiredo Costa

O Amor Infinito Que Te Tenho e Outras Histórias | Paulo Monteiro | Polvo, 2022, 72 págs. | €12,20

O Amor Infinito Que Te Tenho e Outras Histórias | Paulo Monteiro | Polvo, 2022, 72 págs. | €12,20

Infantil

Senhor Mar | André Carrilho | Bertrand, 2022, 48 págs. |€12,20

Senhor Mar | André Carrilho | Bertrand, 2022, 48 págs. |€12,20

Senhor Mar

Depois de “A Menina dos Olhos Ocupados”, que ganhou o Prémio Nacional de Ilustração, a história de um dia de uma família na praia e da descoberta de que o mar, sendo um elemento poderoso, é extremamente frágil. Há que cuidar dele. / Sara Figueiredo Costa

Os Vizinhos | Einat Tsarfati | Fábula, 2020, 48 págs. | €14,95

Os Vizinhos | Einat Tsarfati | Fábula, 2020, 48 págs. | €14,95

Os Vizinhos

Uma menina chega ao seu prédio e sobe as escadas. E cada porta revela-lhe um tipo de vizinhança diferente. O que há por trás das portas? A autora israelita satisfaz a nossa curiosidade. / Luciana Leiderfarb

O Incrível Rapaz que Comia Livros | Oliver Jeffers | Orfeu Negro, 2020, 40 págs. | €15

O Incrível Rapaz que Comia Livros | Oliver Jeffers | Orfeu Negro, 2020, 40 págs. | €15

O Incrível Rapaz Que Comia Livros

Esta é a história do Henrique, que devorava livros e, ao fazê-lo, começou a ficar cada vez mais inteligente. Até que uma reviravolta (no estômago) fez com que começasse... a lê-los. / Luciana Leiderfarb

A Origem das Espécies de Charles Darwin | Sabina Radeva | Nuvem de Letras, 2019, 64 págs. | €15,50

A Origem das Espécies de Charles Darwin | Sabina Radeva | Nuvem de Letras, 2019, 64 págs. | €15,50

A Origem das Espécies

Feito por uma ilustradora graduada em biologia molecular, o livro adapta a teoria da evolução de Darwin e é ele próprio uma janela a partir da qual se vê a diversidade do mundo. / Luciana Leiderfarb

O Camião das Histórias | Rosário Alçada Araújo, Patrícia Furtado e Olesya Z. Biletska | ASA, 2022, 48 págs. | €11,50

O Camião das Histórias | Rosário Alçada Araújo, Patrícia Furtado e Olesya Z. Biletska | ASA, 2022, 48 págs. | €11,50

O Camião das Histórias

A edição bilingue deste livro é uma forma de as crianças ucranianas acolhidas por cá contactarem com a língua portuguesa. Fala-se de um pai que conta histórias ao filho a bordo de um camião do lixo. / Luciana Leiderfarb

Créditos

Textos Expresso
Fotografias Getty Images, Reuters e Rui Duarte Silva
Coordenação editorial Luciana Leiderfarb
Coordenação web Joana Beleza e João Carlos Santos
Apoio web João Melancia
Direção João Vieira Pereira

Expresso 2022