Libertos

A história dos reclusos que dão a volta ao mundo

Libertos

A história dos reclusos
que dão a volta ao mundo

Em 2016, uma professora da prisão criou os Libertos: figuras de cartão, dotadas de nome, história e personalidade. Cada uma encarna o alter-ego de um preso da cadeia de Custóias, no Porto. E cada uma ganha vida quando viaja pelo mundo, à boleia de voluntários, em busca da liberdade negada ao recluso a que pertence

JUNHO DE 2025

Ao entrar na prisão de Custóias, batem certo as referências dos filmes. Uma porta branca e robusta, com aparência de pesar toneladas, destapa um corredor fino, com um raio X ao fundo, ao estilo dos aeroportos. Do lado direito, um guiché onde repousam as chaves, imensas, e os documentos de identificação dos visitantes. Alguns guardas largam a coreografia dos afazeres para nos instruir: telemóveis, computadores e demais aparelhos eletrónicos não são autorizados a entrar. As mochilas também ficam de fora: tudo encaixotado em cacifos.

Depois do rastreio às visitas, um guarda prisional segue em frente. Abre e fecha cada porta, com o tilintar das chaves a ressoar nas paredes e a convergir num eco que se baralha com os passos e as vozes e mescla o início com o fim das palavras. Os corredores são frios, gastos como veias de um corpo velho.

Não é comprido o caminho até à escola da prisão. Do escuro de um corredor central, rapidamente se desagua num pátio interior ao ar livre, com um campo desportivo à direita e um pequeno jardim à esquerda, do mesmo lado onde ficam as salas de aula.

Está soalheiro o dia em que ali entramos pela primeira vez. E a sala, acanhada e lotada, é palanque de uma tarde de aulas invulgar.

“A serra da Estrela é o ponto mais alto de Portugal Continental, com mil novecentos e noventa e três metros. Não é o ponto mais alto de Portugal inteiro porque ainda há uma serra mais alta nos Açores”, diz Alberta Rocha, a quem todos chamam Berta. É uma das convidadas desta aula. "A ilha do Pico", ouve-se logo de seguida retorquido da plateia.

Ali a um canto, é a professora Isabel Leal que, com um certo agrado nos lábios, assiste a tudo isto. Isabel conhece a capacidade de Berta de acicatar esta plateia. Nota-se na convidada a experiência no ofício. Já não é a primeira vez que vem com o marido, César Jesus, para relatar viagens que fizeram com um dos mais de cem Libertos que habitam aquela cadeia. São voluntários traquejados e desta vez levaram três deles a passear: Charlô acompanhou-os à serra da Estrela, Xavier foi conhecer o País Basco e Xiri andou à boleia por Cáceres.

Quem ouve falar pela primeira vez destes bonecos articulados - os Libertos - estranha serem ali tratados como se tivessem vida própria e pensamento. São apenas figuras de cartão, mas dotadas de nome, personalidade e história. Vestem-se com tecidos escolhidos pelo recluso a que pertencem, tentando plagiar-lhe o estilo. Os rostos partem de fotografias dos homens reais, transformadas no Photoshop para lhes preservar a identidade, ainda que, mais bigode, menos bigode, suficientemente aproximadas para serem reconhecidos.

E aí está o que não é evidente desde o início. É que dentro destes bonecos habitam os alter-egos dos reclusos de Custóias. Neles reside a esperança de sair dali, de ir ver mundo e regressar para contar a experiência, ao mesmo tempo que os humanos que lhes deram corpo estão enclausurados, a cumprir pena.

Da esquerda para a direita, estes são Xavier, Gente Séria, Joca e Caché

Da esquerda para a direita, estes são Xavier, Gente Séria, Joca e Caché

Isabel Leal não sabe bem como chegou àquela ideia. Foi um clique que lhe deu. Um sobressalto repentino quando lhe veio à cabeça uma cena do filme “O Fabuloso Destino de Amélie”. Nela, o anão de loiça do pai de Amélie, desaparecido do jardim de casa, começa a surgir em postais com fotografias nalguns dos pontos mais turísticos do mundo. Na Torre Eiffel, em Paris, na Fontana di Trevi, em Roma, na Praça Vermelha, em Moscovo. O pai de Amélie não sabia, mas o boneco de loiça é dado pela filha a amigos que vão viajar, pedindo-lhes que tirem fotografias e as enviem para casa, a fim de ocupar o pai e de lhe curar a depressão. Ele, intrigado, pergunta-se como é que o anão era capaz de se desprender do cimento do jardim e andar pelo mundo, sozinho.

Foram essas viagens “um bocadinho mágicas” a desfilarem no filme francês de 2001 que fizeram Isabel pensar: com os alunos do Estabelecimento Prisional do Porto, a brincadeira “deveria ter ainda mais impacto”. Construir bonecos com a cara de cada um e encontrar quem os quisesse levar a viajar pelo mundo. E, coincidência, veio-lhe à ideia uma colega da prisão que planeara uma viagem pela América Latina para esse ano, 2016. Perguntou-lhe se não queria levar um boneco consigo, para “tirar umas fotografias lá no Machu Picchu”. Ela aceitou.

Depois do Machu Picchu, seguiu-se outra viagem, a Berlim. E depois outra e outra. Nesse ano, todos os 14 alunos da professora acabaram por ir a algum lado.

Só depois, é que Isabel lhes achou um nome: Libertos.
Outro nome para o projeto: Livre Trânsito.
E ainda outro para a página de Facebook onde decidiu ir partilhando os passeios:
Livre Mente.

Sem ainda ter noção da dimensão que tomaria, começara aí o projeto da vida desta professora.

XAVIER

De Focșani para Matosinhos

É um homem alto, de pele morena e cara redonda, de onde desponta uma barba desarrumada e sobressai alguma calvície. Nota-se nele um sotaque estrangeiro a embalar o discurso articulado, fruto de ter nascido na Roménia, em 1990, numa cidade chamada Focșani, a mais de três mil quilómetros dali.

Quando chegou à prisão de Custóias, Ionel não ofereceu resistência. Entrou para a escola logo em janeiro de 2024. Para ocupar o tempo, como todos, mas sobretudo para melhorar o português. Se os nove anos que viveu em Portugal, entre 2010 e 2019, lhe serviram para ganhar alguma fluência no falar, na escrita nunca chegara a ter sucesso. Há coisas difíceis no português. “Por exemplo, o acento agudo, o grave, o til, que se utiliza muito, o C de cedilha, que é importante a pronunciar”, explica-nos.

Não sabia escrever em português quando entrou para a turma de Isabel Leal, a meio do ano letivo. Lá começou a melhorar a escrita. E pouco tempo depois, em meados de fevereiro, haveria de nascer Xavier, o seu Liberto. Um pouco mais cabeludo, um nadinha mais magro, com a mesma expressão no olhar, não demorou a desenjaular-se.

Quando o casal Berta e César exibe um mapa na parede com um pedaço de Espanha e outro de França, Ionel reconhece imediatamente o sítio onde chegou a ir em pessoa e para onde, coincidentemente, o seu boneco, Xavier, foi agora passear. Passou por Bilbau, San Sebastián, Pamplona e Vitória, num trilho de alguns dias. Foi fotografado junto a uma estátua do primeiro governador do País Basco e no museu Guggenheim, o baluarte da cultura basca, responsável, segundo Berta, por “abrir a cidade ao mundo”.

“Estamos perante dois países, mas perante um mesmo povo que tem de reserva uma mesma língua. E uma coisa que eu aprendi é que qualquer pessoa que esteja no País Basco e queira trabalhar para os diversos governos regionais, tem de saber falar basco. Pode saber falar duzentas línguas, que se não souber falar basco, não tem emprego. Não há volta a dar”, conta César, para deslumbre da assistência.

Embora seja um homem subtil, nota-se nos olhos compenetrados de Ionel que aqueles minutos de protagonismo do seu Liberto – e dele mesmo – compensaram a espera. Se dúvidas houvesse, ele desfá-las todas quando, no fim da aula, se levanta e agradece a presença do casal em nome da turma inteira.

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Primeiro, o País Basco. Depois, andou mais por perto: a manifestação do 1.º de Maio, uma exposição em Matosinhos, o museu de Serralves, no Porto. Pequenos percursos, mas com um eco inesperado, mesmo para Ionel.

Na meia dúzia de minutos que temos autorização para conversar, num pátio cinzento e interior que dá para as janelas de algumas celas, Ionel não abre muito o jogo. Diz ser um homem normal, com uma vida “nada especial”. Chegou a Portugal com 20 anos e gostou. Estranhamente, no lado oposto da Europa, haveria outro sítio capaz de o fazer sentir-se em casa. Tal como em Espanha, onde chegou a viver dois anos, simpatizou com os costumes, as pessoas e tudo lhe fazia lembrar a Roménia.

O filho mais pequeno, com três anos, já se habituou a comparecer com a mãe nas visitas semanais na prisão. Mas lá no país onde nasceu, junto do Mar Negro, continua a viver o filho mais velho, de seis. É o pai de Ionel quem se encarrega dele, conta-nos. E por isso é para lá que arrancará viagem assim que sair em liberdade. Quer estar em casa um tempo, refazer-se emocionalmente.

“Faz-me falta a minha família, mas também o meu país. O meu pai. Estar em casa. Espero um futuro melhor. Espero aprender a lição, agora que estou aqui. E, no futuro, ter uma vida mais direitinha.

Nem nunca Ionel tocou no assunto, nem Isabel ousou perguntar. A professora não faz ideia do crime que condenou aquele aluno. Vai sabendo dos delitos de outros, mas nunca por borbulhar nela a curiosidade. “Eles próprios é que me vão contando. Eu por vezes até me esqueço. Mas, se souber, também não há problema nenhum. No início, pensei que me ia deixar influenciar, mas não deixo. E fico contente com isso. É preciso que eles sintam que alguém cuida deles, que alguém se preocupa com eles sem se impressionar com o crime que cometeram.

Sem conhecer ainda a realidade do ensino na prisão, Isabel Leal foi ali parar há 13 anos depois de se ter especializado em educação de adultos, em 1998, onde aprendeu a adequar os ensinamentos de professora primária a pessoas mais velhas. Deixou para trás 18 anos de experiência com crianças. Mas, sobretudo, a mudança fê-la libertar-se das amarras dos programas de ensino.

Ali não há manuais, provas ou exames. Nem rigidez nos conteúdos. É a tarimba dos professores que certifica um aluno, quando está em condições de passar ao nível seguinte.

Isabel Leal, professora do Agrupamento de Escolas de Matosinhos e criadora do projeto Livre Trânsito. Rui Oliveira

Isabel Leal, professora do Agrupamento de Escolas de Matosinhos e criadora do projeto Livre Trânsito. Rui Oliveira

A turma, além de estar sempre ao sabor dos processos e transferências dos reclusos para outras prisões, reúne também uma heterogeneidade própria. Pode acontecer que, num grupo de oito alunos, cada um esteja a fazer uma coisa diferente. “Trabalha aquilo de que precisa para evoluir”, assegura a professora, notoriamente criativa e com uma veia artística, que passou a ter espaço para “inventar aquilo que quiser”.

É nesta equação que entram as viagens dos Libertos. Muitas vezes, usa as características dos países e regiões visitadas para explicar Geografia, História ou até Matemática, “com os números da população, da área do país, dos quilómetros de uns sítios para os outros”. A Língua Portuguesa é posta em prática em fichas de interpretação sobre as apresentações. “Por vezes, tenho o cuidado de juntar numa ficha o Xíri, o Xavier e o Xavou, três Libertos. E faço-o de propósito para dar a letra X”, exemplifica.

Pode questionar-se para que servem duas turmas do 1º ciclo na cadeia – apesar de os reclusos poderem estudar até ao ensino superior, e de até haver quem o faça. As exceções são casos como o de Ionel, que frequentou a escola até tarde, na Roménia, e que só precisa de melhorar o português.

A grande maioria dos reclusos tem apenas o ensino básico. Em 2023, segundo a Pordata, eram quase nove mil de um total de 12 mil reclusos no país. No entanto, são inúmeros os homens que chegam à turma da professora Isabel sem o 4º ano. “Às vezes não sabem ler bem. Por vezes não sabem ler de todo. E já aconteceu não saberem sequer escrever o nome”. No mesmo ano, eram 362 os analfabetos.

GENTE SÉRIA

O filho do super dragão

Todos o tratam por Gente Séria. Há-de haver até quem não associe Benjamin à sua cara, de tão raro que é chamarem-no pelo nome de nascença. O homem baixo, de bigode grisalho e farto, já sem cabelo, que pela alcunha poderia prever-se carrancudo, tem afinal um ar afável e sereno, como o de quem não tem pressa de ir a lado nenhum. 

Ali já todos o conhecem. É a terceira vez que está preso. Apanhou “quatro anos e quatro meses por tráfico agravado” – admite-o logo de rajada, para começo de conversa. Mas já não punha ali os pés há 22 anos, ressalva de seguida. Saiu em 2000, voltou em 2022. “Nunca por roubar nem nada disso. Sempre por tráfico.”

Por já conhecer os cantos à prisão e o vagar com que o tempo passa ali dentro, não foi preciso pensar muito para querer frequentar a escola. Repetir a quarta classe, mas sobretudo, “ter direito a [saídas] precárias” e, no entretanto, “poder ir saindo do pavilhão, que é um bocado pesado”, assume. Por fim, acrescentar outro entretém à televisão, às revistas e às palavras cruzadas que o vão ocupando na cela.

Quando conversámos com Benjamin, estava na cadeia há dois anos e meio — exatamente a idade do liberto Gente Séria. O boneco que a professora Isabel sugeriu que criasse recebeu o nome da alcunha com que Benjamin é conhecido na claque dos Super Dragões, do Futebol Clube do Porto, o seu “clube de coração”, como gosta de dizer. E nem seria preciso dizê-lo. A camisola de riscas azuis e brancas, justa para o diâmetro da barriga, anunciava a paixão antes mesmo de abrir a boca.

A viagem do Gente Séria a Paris trouxe à memória de Benjamin as duas vezes em que lá esteve para assistir a jogos do FC Porto. “Aquele campo, cheio de gente”, diz com um sorriso, como se a imagem ainda lhe pulasse na cabeça. Também a passagem do Gente Séria pela Madeira lhe fez chegar memórias, quando viu uma fotografia do boneco sentado numa esplanada a saborear uma “caipirinha daquelas da Madeira” – ou, melhor dizendo, “uma poncha”, corrige. Mas se há lugar que o tocou profundamente foi a paragem na Ribeira do Porto, local onde nasceu há 59 anos.

É alegre e leve o discurso de Benjamin sobre o Gente Séria, como se estivesse a falar de um filho que conhece o mundo em seu nome, ou como se as viagens do boneco também fossem um pedaço da liberdade que só vai voltar a ter daí a 22 meses, o tempo que ainda lhe falta cumprir na prisão.

Nos dois anos e meio anteriores, o boneco – vestido com uma camisola azul, mas com o cabelo que Benjamin já não tem e com um bigode ainda longe de se render à cor branca – teve também o privilégio de visitar a Assembleia da República, no período em que António Costa era primeiro-ministro. E isso, para Benjamin, foi um verdadeiro avanço, comparado à sua própria experiência: ele conhecia o edifício das escadas, mas nunca o tivera visitado por dentro. E para rematar tudo isto, o Gente Séria teve o privilégio de conhecer Sérgio Godinho, e de ter o encontro imortalizado numa fotografia.

O que talvez Benjamin não saiba – mas Isabel Leal nos revela – é que o “cantor famoso” Sérgio Godinho já se deixou fotografar com mais de um Liberto. A conta vai em três. “Quando apareço com um novo, ele já nem estranha. Só pergunta: ‘Como se chama este?’”, conta a professora.

Ao longo destes nove anos, também Marcelo Rebelo de Sousa, Manuela Azevedo, José Cid, António Zambujo e muitos outros se juntaram à rede que a professora vai tecendo fora da prisão. Mais recentemente, foram Valter Hugo Mãe — abordado por Isabel após uma apresentação literária — e Dino D'Santiago quem se cruzou com os Libertos.

Mas as histórias, como o projeto, por vezes vão além fronteiras. Como a que aconteceu no Peru, em Machu Picchu, anos depois da primeira viagem de um Liberto. Quando outro boneco voltou ao mesmo lugar, levado por mãos diferentes, a voluntária que o levou foi surpreendida no momento em que o fotografava junto aos bilhetes, no guiché. Um funcionário correu atrás dela, sorridente, pedindo para também ser fotografado com o boneco porque se lembrava do primeiro de todos, anos antes.

Libertos com Marcelo Rebelo de Sousa, José Cid, Maro, Dino D'Santiago, Paulo de Carvalho, Uxía e António Zambujo, Jorge Prendas e Rui Reininho e ainda Manuela Azevedo

Libertos com Marcelo Rebelo de Sousa, José Cid, Maro, Dino D'Santiago, Paulo de Carvalho, Uxía e António Zambujo, Jorge Prendas e Rui Reininho e ainda Manuela Azevedo

Ao olhar para trás, Isabel reconhece que a história já vai mais longa do que alguma vez pensou. Sabe que “o projeto tem de acabar”, nem que seja quando se reformar, o que já não tardará. E, ainda assim, continua. “Há pessoas aqui que não têm ninguém. Ou não têm família, ou as famílias não querem saber deles. Não têm visitas.” Para esses reclusos, faz a diferença saber que alguém, algures, há de viajar com o seu boneco. Passa a existir um fio invisível que os liga a alguém, a um lugar, a um mundo lá fora.

É o poder da alienação, concretiza Carlos Filipe Saraiva, psicólogo clínico com uma vasta experiência no contexto prisional. “O nosso cérebro tem um conjunto de mecanismos que nos permite imaginar um cenário e esquecermo-nos do espaço em que estamos. Mesmo que, de um ponto de vista lógico, isso seja aparentemente inconsequente, para quem está privado de um conjunto de liberdades, faz toda a diferença. Não é à toa que uma das componentes para a depressão — doença com maior prevalência entre os reclusos do que na população em geral — tem a ver com a perda de esperança e de futuro”.

Por isso, Isabel Leal repete muitas vezes que o cantinho com jardim onde funcionam as salas de aulas é o mais agradável daquela cadeia, construída em forma de poste telegráfico e inaugurada quatro dias após o 25 de Abril de 1974. Nessa altura, substituiu a velha prisão da baixa do Porto e, até final de 2004, ainda recebeu reclusas mulheres. Desde então tem sido exclusivamente masculina e, mesmo com capacidade para 686 presos, está quase sempre sobrelotada, mesmo sendo um ponto de passagem para detidos preventivamente ou condenados a aguardar transferência para outra cadeia.

JOCA

Mais um hóspede na Palestina

Foi na prisão, com Isabel, que João aprendeu “umas letras” e a caligrafar o nome. O homem magro, moreno, com o cabelo já sem disfarçar o rasto da idade, nunca frequentou outra escola “lá fora”. Numa ocasião lá tentou, já casado, em horário pós-laboral, mas não havia como conciliar com o trabalho. Pegava cedo pelas feiras do país, e de Espanha, que percorreu toda a vida como vendedor ambulante, tal e qual os outros ciganos da família.

Foi para “ver se aprendia alguma coisa” que entrou naquela escola, quando foi preso. Logo nas primeiras semanas, respondeu ao repto da professora para criar um boneco ao qual chamou de Joca, sem outro critério além de soar vagamente ao seu nome. Sem barba, apenas bigode, mas com os dentes que já lhe faltam e igualmente vestido de amarelo. Nesse dia, recorda-se de “brincar e rir na sala”, e de querer que o seu boneco fosse “o mais bonito”. Até que foi transferido para a cadeia de Paços de Ferreira e perdeu o rasto ao liberto.

Mas seis anos depois, voltou a Custóias, preso pela segunda vez. Um ano de pena por, novamente, conduzir sem carta, diz-nos. Quando quis tirá-la, não sabia ler. Só conseguiu uma “paga por fora”, à margem da lei. Só que agora, com mais idade e outro tempo entre mãos, decidiu voltar às letras já na cadeia. “Faz falta. Há muito tempo que abri os olhos sobre isso. Uma pessoa que não saiba ler é um cego”, diz, com a lucidez de quem sabe ao que vem, e com um sotaque que revela as raízes alentejanas, apesar de viver há mais de três décadas no Norte.

Só agora, durante a segunda pena, João soube por onde andou a viajar o Liberto Joca durante os anos em que esteve afastado dali. Soube que visitou um sítio cujo nome esquece — Auschwitz — “um sítio onde eram contra os judeus e os ciganos”, arrisca. Não sabe onde Auschwitz fica no mapa. Nem conhece o que o liga à Palestina, para onde o Joca também foi viver um ano, com Micaela Miranda — atriz, voluntária, antiga diretora da escola do Freedom Theatre, no campo de refugiados de Jenin.

Foi no final do verão de 2016 que ela o levou para o coração de um dos territórios mais vigiados da Cisjordânia. Entrou no quotidiano como mais um hóspede da casa. “Lembro-me de uma fotografia em que o pus a tomar café, enquanto esperávamos que viessem encher o depósito da água no telhado”, conta Micaela, entre sorrisos, quando se sentou connosco a conversar na casa da mãe, em Vila Nova de Gaia.

Joca ganhou um papel simbólico também para a voluntária que o levou. Através dele, falava-se dos checkpoints, das fronteiras, mas também daquilo que se celebra na Palestina — “o café à noite, os doces, o convívio”. Tornou-se pretexto para levar a história daquele território mais longe. E havia sempre quem quisesse ser fotografado com o boneco.

No final desse ano, Micaela fez questão de visitar a cadeia de Custóias. Levou o então marido e um amigo, ambos palestinianos, para partilharem com os reclusos o que é viver na Palestina. “O que me ficou dessa sessão foi uma reflexão muito profunda sobre a liberdade e o perdão”, recorda, completada por Isabel. “Eles identificaram-se muito. Nem que seja pelas coisas simples, como não poderem ter na prisão uns óculos de sol, um cachecol, umas luvas.”

Micaela Miranda levou o liberto Joca para viver com ela durante um ano no campo de refugiados de Jenin, na Palestina. Rui Oliveira

Micaela Miranda levou o liberto Joca para viver com ela durante um ano no campo de refugiados de Jenin, na Palestina. Rui Oliveira

Hoje Micaela continua a falar árabe. Mas depois de, em 2017, se ter mudado para Londres para fazer um mestrado, contrariamente ao que planeara, acabou por não voltar à Palestina. Passou a viver na capital inglesa como atriz e professora e vai recebendo à distância, destroçada, as notícias da casa que já foi sua, que ainda é sua, que viu nascer as duas filhas. “Elas também são palestinianas”, diz, com firmeza. “Elas são a minha prioridade. Digo sempre para mim própria: 'estas são as palestinianas que eu consigo salvar'.”

CACHÉ

A professora tatuada no braço do aluno

Diz que é um bocado “desenho animado”, mas quem olhar bem percebe que é ele. Tem-lhe a cara, as tatuagens, até a corrente ao pescoço. O que tem a menos de barba, compensa na comparência de dentes. O Caché é a réplica em cartão de um homem alto e musculado, que fugiu de casa aos 12 anos e só aprendeu a escrever o nome já com 27, dentro da sala de aulas da prisão de Custóias.

“Eu sou dos primeiros”, diz Leandro com vaidade. Compareceu pela primeira vez nas aulas de Isabel em 2016, o ano em que o projeto começou, quatro anos depois de ter sido condenado pela primeira vez, aos 23, por “andar a roubar”. A pena era longa: estaria preso até aos 30. A filha ainda pequena, com dois anos, já teria dez quando o pai saísse em liberdade. Era preciso arranjar forma de obrigar o tempo a passar mais depressa.

Nesta “noção muito subjetiva do tempo”, não há comparativo à prisão. Não é só a liberdade de movimentos que é tirada aos reclusos. Com ela arrancam-se outros “direitos e escolhas”, terraplanando a “identidade individual” de quem ali habita, explica o psicólogo Carlos Filipe Saraiva. “Há um tratamento desindividualizado grupal. O recluso pode escolher o seu horário? Não. O recluso pode escolher o que vai comer? Não. Pode escolher quando é que vai ser o horário de visita? Não. Pode decidir quando é que se vai embora? Não.”

Para o psicólogo, “projetos como este são muito interessantes”, desde logo porque devolvem um pouco dessa humanidade. “Criar um Liberto, dar-lhe um nome, um significado, é também criar uma identidade. Não é só um boneco, é o meu boneco”, reforça. “É meio caminho andado para garantir alguma estabilidade emocional e, ao mesmo tempo, mostrar que afinal há vida para lá do que se estava à espera. Se o meu Liberto pode viajar, porque é que eu não posso? A criatividade transpõe barreiras. E funciona”.

“A professora ajudava-me a não pensar tanto nisto. Foi quem me ensinou a escrever o meu nome”, diz Leandro. As memórias saem-lhe com nervosismo, na biblioteca de Custóias — vazia àquela hora — onde alguns jornais repousam numa mesa, à espera de quem queira saber o que se passa fora dali.

Antes de conhecer Isabel Leal, a escola não passava de uma memória remota para Leandro. Até chegar ali não sabia o que era o Pão de Açúcar ou onde ficava a praia de ipanema, mas calhou o liberto Caché ter-se estreado no Brasil. E Leandro entusiasmou-se. Quis fazer outro, com roupas de verão e tatuagens à vista, para se parecer ainda mais com o homem verdadeiro. Esse segundo visitou Macau, Hong Kong e a ilha de São Tomé, “onde passa a linha do Equador”, como nunca esqueceu.

E ele, que nunca pôs os pés num país estrangeiro, pôde aprender sobre lugares que de outro modo nem saberia existirem. “Uma pessoa, num bocado de tempo, sente que está na rua. No fundo, sou eu. No fundo, já não pensava que estava preso.”

Leandro está na prisão pela segunda vez. Garante que, depois da primeira pena, ao sair em liberdade, largou os assaltos. Até aprendeu “uma arte”: tornou-se capoteiro e arranjou trabalho. Segundo nos conta, foi por conduzir sem carta que voltou a ser preso. “Na justiça portuguesa, infelizmente, uma pessoa paga muito pelo passado”, lamenta. Mais um ano e seis meses. Mais uma filha, que nasceu já com ele preso e que não teve autorização para ir visitar à maternidade. Uma filha que terá de esperar pelo fim da pena do pai para dormir com ele a primeira noite, lembra.

Quando se sentou a falar connosco, já não se interessava pelas aulas. À medida que a libertação se aproxima, a capacidade para se concentrar falha. “A minha cabeça só vê rua, rua, rua.” Mas, ainda assim, diz-se grato pela dedicação de Isabel, levantando levemente o braço para que fosse visível como lhe dedicou a pele. “Prof. Isabel” está lá tatuado, a tinta azul de uma caneta, gravada com uma agulha improvisada de uma mola de isqueiro — como se fazem as tatuagens na prisão.

Foi a primeira vez que escreveu no corpo o nome de alguém que não fosse da família. Não esquece o que ela lhe deu: a possibilidade de compreender o mundo. E embora ainda hoje confesse que se irrita ao ler e escrever — “gaguejo, desisto, enervo-me” —, nas contas é um ás. Já contou 200 mil euros em notas de vinte.

Isabel teve paciência. E ele, finalmente, tempo.

O pior é a noite. “Quando fecha [a porta], é quando vêm os problemas”. Nessas horas, o pensamento repete-se como um mantra. Rua, rua, rua, rua. “Cá dentro, o nosso pior inimigo é o relógio: um minuto é uma hora, uma hora é uma semana, uma semana é um mês, um mês é um ano.”

Com a experiência qualquer um percebe: o tempo é o que mais está encarcerado numa prisão. As horas detêm-se ali como se as paredes balizassem um perímetro de exceção, onde são autorizadas a sossegar. Chega a ser distópico, até. Uma brecha. Um buraco negro, perante todo o mundo lá fora numa correria, a centrifugar minutos, como se não conhecesse outra forma de estar senão atrasado.

Quando estivemos com Leandro já tinha cumprido 11 meses de pena. Ou melhor, corrigiu-nos, faltavam cumprir quatro. Na cadeia, o tempo conta-se sempre a partir do futuro. Não são duas horas e quarenta e cinco minutos, são um quarto para as três.

Não é o que está para trás, é o que ainda falta passar. 

Pode acompanhar as viagens dos Libertos e o projeto Livre Trânsito pelo Facebook na página Livre Mente.

Créditos

Texto Joana Ascensão
Fotografia Rui Oliveira
Webdesign Tiago Pereira Santos
Motion graphic Carlos Paes
Web development João Melancia
Coordenação Marta Gonçalves, Rita Ferreira, Mariana Adam e Joana Beleza
Direção João Vieira Pereira

Expresso 2025

Créditos

Texto Joana Ascensão
Fotografia Rui Oliveira
Webdesign Tiago Pereira Santos
Motion graphic Carlos Paes
Web development João Melancia
Coordenação Marta Gonçalves, Rita Ferreira, Mariana Adam e Joana Beleza
Direção João Vieira Pereira

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