A estrada mais perigosa do mundo é feita de água. Morre mais gente a atravessar o Mediterrâneo Central do que em qualquer outra rota de migração do mundo. No meio da tempestade retórica sobre quem tem e quem não tem o direito de entrar na Europa fica a pequena ilha de Lampedusa, que está mais perto da Líbia que de Roma, capital à qual responde. Há precisamente seis anos, a 3 de outubro de 2013, a ilha testemunhou o pior desastre da sua história conhecida: 368 pessoas morreram, muitas delas queimadas, num naufrágio que haveria de mudar, para o bem e para o mal, toda a narrativa europeia sobre a questão das migrações. Vito Fiorino salvou 47 pessoas num barco que só podia levar sete e ainda hoje se sente parte “de um enorme pecado chamado indiferença”

REPORTAGEM ANA FRANÇA , em Lampedusa

fogo no mar

O sonho de Vito Fiorino era ter um barco mas passou mais de metade da vida sem o saber. Viveu em Milão até aos 55 anos, tinha uma empresa de montar aquelas tendas que existem em feiras e onde os comerciantes mostram os seus produtos - queijos, destinos turísticos, carros de luxo. Fiorino, agora com 70, empregava 11 pessoas, viajava pelo mundo todo a montar tendas específicas para cada produto, cada marca. Originalmente carpinteiro, este negócio mais internacionalizado foi a sua forma de ganhar dinheiro. No ano 2000 passou férias em Lampedusa, Itália - “um raio de paixão que me trespassou” - e os dois anos seguintes foram passados a desfazer-se, por partes, do seu negócio, do carro, do apartamento e do seu recheio, dos seus empregados que, poucos dias depois de findas as férias que mudaram a vida a Vito, receberam uma chamada a avisá-los que teriam de mudar as suas.

Em outubro, em Lampedusa, ainda se sai de noite num barco, ainda está calor. 2013 não foi diferente. Era início do mês e a época alta ainda havia de durar pelo menos mais quinze dias. Como fazia tantas vezes, Vito Fiorino ligou aos amigos e propôs-lhes um passeio noturno no seu Gamar, o barco que reconstruiu com as mãos que ainda se lembravam bem dos tempos em que foram de carpinteiro. Desde 2008 que pescava no Gamar, junção dos nomes dos seus netos, Gabriel e Marina, e naquele segundo dia de outubro de 2013 ia mais uma vez levar a sua pequena embarcação, registada apenas para sete ocupantes, ao largo de Tabaccara, perto da Ilha dos Coelhos, uma das praias mais bonitas no mundo, escudada por enormes montanhas, de acessos sinuosos, reserva natural. “À meia-noite os meus amigos ligaram a dizer que afinal naquele dia não podiam, tinham os seus bares para arrumar, tinham tido uma noite cansativa, coisas desse género. E ficou adiado o plano”, conta Fiorino numa conversa em sua casa, num alpendre ora inundado de sol, ora de chuva tropical. Mas o destino daquela noite, como o próprio diz, “era já mais que isso, era uma premonição” e, meia hora mais tarde, o mesmo grupo de amigos voltou a ligar para dizer que afinal queriam mesmo terminar a cansativa jornada num belo barco, a comer uns camarões, a beber vinho, no meio da baía. “Lá fomos. Nadámos, comemos, bebemos, e depois alguém sugeriu que passássemos a noite no barco. Achei estranho, nunca tínhamos feito aquilo mas, realmente, porque não? Uma noite calma, cinco no deck de cima e três nos aposentos de baixo e lá nos fomos deitar. Combinámos que às seis da manhã nos levantávamos para pescar e almoçar o que o mar trouxesse.”

Ilha dos coelhos Foi nesta praia com águas transparentes, aqui fotografada em setembro de 2019, que aconteceu a tragédia de há seis anos

Vito adormeceu e ao fim do que lhe pareceram dez segundos ouviu o motor do barco. Pensou que fossem já seis da manhã mas não, pela janela redonda do deck inferior continuava a ver a noite escura, ou seja, a ver coisa nenhuma. Subiu e viu que dois dos seus amigos comentavam o barulho que se ouvia um pouco à frente. Gritos agudos, uma revolta nas águas como o chapinhar de dezenas de crianças numa piscina. “São gaivotas, encontraram um cardume de peixe perto da superfície, que barulheira”, disse Grazia, uma das amigas de Vito. Louis, naquele momento ao leme, não se convencia. “São gritos, Vito, são pessoas, Vito.” Alessander também estava cético mas Vito continuou convencido de que seriam gaivotas: os gritos eram tão viscerais, tão animalescos, e tendo ouvido e visto o tamanho e o barulho das gaivotas de Lampedusa, pareceu-lhe medonho pensar que aqueles gritos pudessem de facto estar a chegar de dentro de pessoas. “Não eram bem berros, eram uivos, guinchos. Parece estranho, agora que estou a contar isto, não ter pensado logo naquilo que depois vim a testemunhar, mas a escuridão do mar naquela noite, sem lua, era quase pastosa, parecia que se colava aos olhos, era breu total.”

Umas horas antes Vito tinha visto um enorme feixe de luz azul, antes de se ir deitar, e dada a insistência dos amigos decidiu pôr o Gamar a navegar mais ou menos na rota dessa memória. Era impossível saber exatamente se era dali que vinham os gritos mas Vito marcou as coordenadas e acendeu a luz de proa. Já não chegou a partir. “A luz do nosso barco mostrou-nos a tragédia impensável que estava diante de nós: dezenas de pessoas na baía, uns a esbracejar e outros já sem vida boiavam de barriga para baixo à volta do barco. Estavámos no meio de um cenário de guerra mas no mar.”

Os oito amigos ficaram uns segundos parados na proa, não podiam avançar com o barco e trazer toda a gente: com o pânico as pessoas no mar iam fazer afundar também o Gamar. A uma das primeiras pessoas que viu atirou-lhe a bóia, mas não se atira uma bóia de salvamento para cima de um náufrago, pode magoar, então atirou para a frente dele, esperando que ele se movimentasse para a apanhar “mas não, não se mexeu, não sei se de frio se de pânico”. Então Vito atirou a bóia mesmo quase para cima do jovem e aí ele apanhou-a. “Quando ele pôs o pé no barco, seco, salvo, caiu num pranto, numa sucessão de berros de tal forma aflitos que pensámos que estava ferido gravemente, mas não, era só dor de ter visto o que viu.”

Vito ia avançando lentamente por entre as pessoas e nesse caminho viu cenas que nunca vai esquecer. São muitas as pausas na nossa conversa durante as quais Vito olha fixamente para lado nenhum, por entre os ocupantes da mesa que o escutam, ou mexe numa mão com a outra, fazendo o gesto de quem está a embrulhar alguma coisa ou a fazer bolinhos de bacalhau ou almôndegas.

Vito Fiorino O barco dele tinha capacidade para sete pessoas, salvou 47: queria salvar mais, a polícia não deixou. Ele sente-se culpado

Vito retoma o que aconteceu naquele dia. “Dois homens a dois metros do barco estavam a bater-se pela sobrevivência: um deles agarrava-se à volta em forma de corrente que o outro tinha ao pescoço, de forma a segurar-se para não afundar, e o que tinha a corrente tentava libertar-se, partir a corrente, qualquer coisa, o peso de um estava a afogar os dois. A corrente partiu-se e um deles desapareceu no fundo do mar em milésimos de segundo. Louis ainda se atirou ao mar algumas vezes para salvar quem ele via que tinha acabado de desmaiar mas também para ele se tornou perigoso, e só conseguiu resgatar um homem que já se tinha começado a afundar.”

Vito pensou que pudesse talvez salvar seis, sete, que o barco não aguentasse mais mas foi sempre trazendo mais e mais pessoas. “Achei estranho, estavam cobertos de óleo, gasolina, uma coisa viscosa que tornava quase impossível pegar-lhes, nus alguns deles.” Quase ninguém se conseguia expressar. Aninhados ao lado uns dos outros soluçavam. Até que um dos miúdos mais novos, que arranhava inglês, e “parecia um pouco mais lúcido, menos assustado”, começou a contar o que se tinha passado. Vito não fala inglês, foi Luigi que começou a fazer perguntas e o miúdo respondeu como pôde. “Quando avistámos a ilha, o chefe do grupo de traficantes ligou para a Líbia e disse que já tínhamos chegado mas não era bem ainda terra. O mecanismo que arrefece o motor estragou-se e então o homem que estava a levar o barco acelerou com força para chegarmos a terra. O motor estourou e ficámos parados”, conta Vito na voz do jovem.

Para tentarem chamar a atenção de alguma embarcação que pudesse passar, ou mesmo para que alguém os visse de terra, os migrantes atearam chamas a um cobertor e começaram a fazê-lo girar no ar, como um farol de fogo. Uma parte do lençol soltou-se e caiu perto do motor, que já estava a largar gasolina. O barco começou imediatamente a arder e todas as 500 pessoas que o ocupavam fugiram para longe das chamas. “Foi essa a tragédia, o barco virou”, conta Vito. “As pessoas que fomos salvando contaram-nos sobre os gritos das crianças, lancinantes, desesperados, e que a estes juntavam-se os das suas mães, que os ouviam mas não conseguiam saber onde eles estavam. Sem lua é impossível ver no mar mesmo o que está a meio metro de nós.”

Algumas pessoas que o Gamar recolheu estavam nuas: a roupa encharcada pesa no corpo, torna-o mais difícil de flutuar. Além disso, com roupa é mais fácil que as pessoas se agarrem umas às outras para se tentarem salvar.

Do Gamar, Vito e os amigos ligaram para as autoridades, uma vez, duas vezes. “Disseram-nos ‘estamos a ir, estamos a ir’.” Passou uma hora. “À terceira já não nos atenderam.” Passava das sete da manhã quando os navios de salvamento chegaram. As primeiras chamadas do Gamar foram às 5h30. Vito tem a certeza de que as luzes que viu no início da noite eram barcos das autoridades de salvamento da Guarda Costeira mas poucas horas antes tinham chegado outras 200 pessoas ao porto de Lampedusa que ainda estavam a ser examinadas por médicos e por isso as autoridades pensaram que tinham tempo de voltar àquele barco mais tarde, já que, ao início da noite, a embarcação estava apenas parada no mar e não consumida de chamas, como mais tarde aconteceu.

“Não é possível esquecer aquela cena. O barco de outros pescadores a chegar ao porto com cadáveres nas redes de pesca. Mães ainda abraçadas aos seus bebés, ambos mortos, gente carbonizada, crianças, uma visão que não posso agora nem acho que algum dia possa vir a conseguir descrever totalmente”, diz Vito. A sua casa está cheia de fotografias, esculturas, pinturas e símbolos de várias religiões que as pessoas que salvou lhe foram enviando dos locais onde se estabeleceram. Maioritariamente da Somália e da Eritreia, cerca de 120 pessoas permaneceram na ilha quase dois meses, tornando-se “lampedusanos”. O barco trazia mais de 500 pessoas, 368 morreram, 155 foram salvas e 119 corpos foram dispostos no hangar do aeroporto.

O DIA SEGUINTE Há imagens que não precisam de legenda foto getty images

“Quando fui ao hangar ver os caixões, e me encontrei de novo com as pessoas que salvei, parece que ainda foi pior do que no dia, como uma dor fulminante que te faz cair nos braços de quem quer que esteja fisicamente mais próximo.” Hoje Vito culpa as autoridades por terem demorado tanto mas principalmente por se preocuparem mais com o protocolo do que com o salvamento de vidas. “Nós íamos trazendo para dentro gente que encontravámos, eles lançavam-se ao mar para ir buscar uma de cada vez”. Quando Vito chegou ao porto, tinha no seu barco 47 vidas salvas num barco que só pode transportar sete. “As autoridades não me deixaram voltar para ir buscar mais pessoas, sinto-me como se tivesse participado num pecado mortal. A indiferença matou muita gente naquela noite.”

‘gandhis’ e ‘hitlers’

É setembro de 2019, quase seis anos depois daquele dia. Está tudo fechado na via Roma, a maior rua de Lampedusa e onde se concentram quase todos os principais negócios da ilha. O sol que bate no paralelo branco cega quem tem de seguir caminho, sacos de compras numa mão e a outra em concha sobre a testa.

No fim da rua, ao pé de um miradouro com vista para o porto velho, estão nove jovens que imediatamente se distinguem do resto da população: são negros e têm quase todos chinelos, o calçado que é dado a quem chega ao ‘hotspot’, o centro de acolhimento temporário de migrantes na ilha. O “tradutor oficial” do grupo, que transforma em inglês o que os outros lhe contam em francês, é Osseni Koné, 30 anos, que na Costa do Marfim estava a acabar o curso de Direito. A sua consciência mandou que se tornasse um líder estudantil e que se revoltasse contra o governo em vários protestos na capital económica e maior cidade, Abidjan. “As pessoas acham que a guerra acabou na Costa do Marfim mas não acabou, os protestos são silenciados com mortes, as pessoas desaparecem, eu fui ameaçado e não fiquei à espera.”

Porto de Lampedusa É a este local que chegam os migrantes que sobrevivem ao Mediterrâneo. A grande maioria deles nunca tem a oportunidade de conhecer as ruas da ilha: são levados para um centro de acolhimento temporário que existe em Lampedusa e depois transportados para outras zonas de Itália

A história de Osseni Koné acaba por se esbater nas muitas, sôfregas e simultâneas palavras que os outros rapazes vão atirando para o círculo onde se reúnem com o Expresso. “Paz é o que queremos”, “ter papéis e trabalhar e estar em paz”, “viver sem fugir”, “viver sem violência”, “liberdade para denunciar o que está errado”. Quem fala em último é Alya Camara, de 26 anos, que até então tinha estado um pouco mais calado que os colegas. Osseni chama-o e diz que ele tem de falar, que a história dele é uma prova das atrocidades das quais fogem. Meio tímido, e também com medo dos nossos telefones, apesar de termos prometido que não tirávamos fotografias nem gravávamos com imagem as suas declarações, Alya começa a contar o que se passou na sua vida antes de estar aqui, nesta ilha italiana de 6.000 habitantes e 20 quilómetros quadrados onde não cresce nada verde além do verde desmaiado das oliveiras, que parecem vingar até no meio de pedras. “A minha viagem é longa. Tem mais de um ano. Fui preso, passei fome, fui vendido como mercadoria, transportado como mercadoria, fechado em casa meses sem ver luz, em sítios isolados que ainda não sei onde são.”

Saiu da Costa do Marfim porque toda a comunidade da região de Guémon, de onde é originalmente, o ostracizou e até o ameaçou de morte. Porquê? Porque Alya não aceitou o que fizeram à irmã: com dois anos foi submetida a mutilação genital numa suposta viagem de férias a uma aldeia remota. A menina acabou por morrer por causa do procedimento, proibido no país mas mesmo assim praticado em duas em cada cinco menores, segundo números das Nações Unidas. Revoltado, começou a falar contra este crime nas aulas, com os amigos. “Queriam-me morto. Mesmo que escapasse para mais longe, eu já era conhecido e ninguém me ia dar emprego ou proteção.” Fugiu primeiro para Bamako, capital do Mali, e depois para Gao, mais acima. Daí, sempre a caminhar de noite, a comer o possível que encontrava em terras agrícolas ou no lixo, seguiu pela região inóspita de Tamanrasset, no sul da Argélia, uma rota conhecida de migração e por isso na mira dos traficantes. “Eles aí apanham toda a gente. Levaram-me para uma casa às escuras onde passei fome, onde me bateram, de onde só saí depois de mais de três meses a trabalhar para eles sem ganhar dinheiro. Eles ligam às nossas famílias para pagarem a nossa vida, só assim garantimos que continuamos viagem. Eu dei o número e não sei se alguém pagou ou não.” Com ele, naquela casa, estavam mais pessoas e uma certa noite puseram-nos a todos num camião disfarçado de transporte de mercadorias: “Mandaram-nos deitar uns por cima dos outros, o peso de homens por cima de ti, o teu peso em cima deles, como sardinhas esmagadas, um calor horrível e todo o tipo de nojo humano que imaginas”. À noite chegaram a um porto líbio cujo nome Alya não sabe dizer. “Era escuro, colocaram-nos num barco, éramos mais de 30, atiraram todos os telefones ao mar e deram-nos uma bússola. Sigam sempre em frente para norte.” Pelas contas imprecisas de Osseni foram mais de três dias no mar, só com a pouca água que tinham conseguido esconder, em garrafas pequenas, dentro das calças. Se querem ficar em Itália, em Lampedusa, neste sítio tão pequeno de onde todos parecem querer sair, não sabem responder. Mas o que desejam é claro: “Paz”, diz Osseni, e põe as mãos em oração. “Aqui ou noutro lado qualquer, até gostava de ir para Portugal e conhecer o Ronaldo.” Mas Ronaldo, por acaso, até está em Itália, em Turim, tão longe daqui que dava para ir à Líbia e vir e ainda assim fazer menos quilómetros do que ir a Turim - Lampedusa fica mais perto por mar de Tunis (264 kms em linha reta), na Tunísia, e de Trípoli (297 kms), na Líbia, que de Roma (711 kms) ou da cidade de Ronaldo (1143 kms).

Continuando sempre ao longo do miradouro onde encontrámos este grupo chegamos a uma rampa breve que nos leva a um dos monumentos mais importantes da ilha: a Porta da Europa, uma gigante porta amarela, com cinco metros de altura e três de largura inaugurada em 2008, em homenagem a todos os que morreram no mar ao tentarem chegar à Europa. Estas coordenadas marcam o fim do território europeu a sul: para além, e depois de todo o mar, já é África.

Projetada por Domenico Paladino, a porta é feita de cerâmica refratária e ferro galvanizado, nomes técnicos nos quais é impossível não ler simbologia. Os materiais foram escolhidos por serem ambos extremamente resistentes: a cerâmica não cede ao calor, é aliás usada para o revestimento de fornos; o ferro, que é revestido de zinco, sustém os efeitos da corrosão dos elementos aos quais a porta está totalmente exposta.

o “ponto quente”

O ‘hotspot’ que recebe quem chega está apenas preparado para 96 pessoas (nome oficial - Centro di Primo Soccorso e Accoglienza). Recebe dinheiro do Estado, cerca de €35 por pessoa alojada, mas é de facto gerido por uma empresa privada. Como outras unidades semelhantes na Sicília, Calábria e Puglia (no sul de Itália), este ‘hotspot’ tem sido alvo de enormes críticas de algumas organizações não-governamentais, como a Amnistia Internacional, pelas condições precárias em que recebe quem chega. O relatório de ONG de 2016 “Hotspot Italy: Como esta abordagem leva a abusos dos direitos dos migrantes” fala de exemplos de violência policial, episódios de repatriamento forçado sem terem sido esgotadas as avenidas legais disponíveis, intimidação e falta de condições básicas.

É raro ter apenas as 96 pessoas: durante os quatro dias inteiros em que o Expresso esteve em Lampedusa, teve sempre perto de 150. A rapidez das transferências de migrantes para a Sicília é hoje maior que no pico da crise mas até os maiores defensores dos direitos dos imigrantes, como a organização Mediterranean Hope, permanentemente na ilha para receber quem chega, consideram que as pessoas têm de ser enviadas para outros pontos de Itália de forma célere - primeiro porque o ‘hotspot’ não tem condições e depois porque, aqui, apenas é possível demonstrar a intenção de pedir asilo e não pedi-lo de facto, isso só em cidades com tribunais e advogados para analisarem o caso.

O Expresso conduziu até à entrada oficial deste centro de acolhimento para tentar verificar em que condições se encontravam as pessoas, mas três militares impediram que seguíssemos caminho. De qualquer forma este lugar não é, oficialmente, uma prisão, motivo pelo qual Osseni Koné e os outros migrantes com quem falámos podem andar no centro da cidade, livres na medida dos seus possíveis: não são prisioneiros, saem por um buraco que existe nas redes do ‘hotspot’ e que é conhecido por todos - os militares não os impedem. São parte de um grupo de 34 pessoas que chegou ao porto sem ajuda de qualquer barco de resgate - as chamadas “chegadas autónomas” ou “desembarques-fantasma”, fenómeno mais comum no último ano porque Matteo Salvini, o ex-ministro do Interior fortemente contra a imigração mas recentemente afastado do cargo numa mudança de coligações, impediu vários barcos de salvamento de operarem no Mediterrâneo Central durante a vigência do seu mandato. Até 18 de setembro deste ano, segundo dados da Mediterranean Hope, a única ONG que está autorizada a receber pessoas no porto assim que desembarcam, chegaram à ilha de Lampedusa 2.100 pessoas, menos que em anos anteriores. Em 2018 foram 3.500 e em 2017 cerca de 9.500.

Paola Pizzicori, de 50 anos, habitante da ilha há 30, já viu muita gente chegar: sendo tradutora de dezenas de políticos, representantes de ONG e comitivas de inspetores de todo o tipo, é das poucas pessoas na ilha que já visitou o ‘hotspot’. “Não é horrível quando estão lá apenas as pessoas que têm lugar para estar, 80 ou 90, mas mesmo assim envergonho-me de Itália e da UE. Estamos sempre a dizer que somos muito civilizados, herdeiros do Iluminismo e da racionalidade grega e romana e não somos capazes de acomodar quem precisa de forma digna, com quartos, livros, televisão, lugar para rezar. A sério?” Pizzicori é professora e tradutora e membro do Forum Lampedusa Solidale, um grupo de 15 pessoas cuja missão é falar com outros cidadãos da ilha sobre as razões por trás das imigrações, de forma a tentar erodir as ideias pré-concebidas.

Via Roma Rua central de Lampedusa, é o coração da ilha. Nos dias em que o Expresso esteve no local, só por duas vezes viu migrantes a circular nesta zona. Trata-se de uma via tranquila e sobretudo frequentada por locais e turistas italianos. O ‘hotspot’ fica a cerca de dois quilómetros deste local

Perguntamos a Osseni Koné e aos demais pelas condições do centro. Um rapaz que ainda não se tinha manifestado, e que só a muito custo diz o nome - aliás, escreve no nosso bloco que se chama Kébé Souleymane -, diz apenas: “Bom, quer dizer, fui torturado, andei acorrentado em centros de detenção, o centro c’est ok, non?” E é tudo o que há para dizer, o resto da história quer esquecer: “Eu quando me meti no barco fechei os olhos e vim com eles fechados os três dias ou lá quanto tempo foi. Durante esse tempo dormi e pensei muito. Não vou contar mais essa história, I want travailler, not une victime”. Os outros acenam que sim com a cabeça e apenas dizem que não têm nenhum sabão para se lavarem, apenas água, é a única queixa.

o caso da mulher grávida

Em Lampedusa a noite é uma meia-verdade, um manto espesso, como a gasolina do motor de um barco, que se espalha disforme pelo imaginário comum de uma ilha fustigada por emergências humanitárias. Não contamina todos da mesma forma, mas faz escorregar os pensamentos para a incerteza. “Acho que ontem chegaram mais cem.” “Olha que não, era só um barco pequenito, de borracha, eram no máximo uns 30.” “Bom, aqueles ali não estavam cá ontem de certeza.” No café Royal, também na via Roma, é isso que se discute, sob uma chuva intensa e tropical, os resquícios da tempestade da noite anterior.

Há um grupo de homens que joga às cartas por volta das quatro da tarde. Luigi Morelli é o único que aceita falar. Tal como os amigos que estão com ele na mesa, muitos outros habitantes de Lampedusa dizem-se fartos de uma comunicação social que, no seu entender, transformou a ilha numa “espécie de circo” onde só há “grandes beneméritos ou perigosos fascistas”. É tudo o que hão de dizer. Mas Morelli, que vive há mais de dez anos na ilha e foi sócio de um restaurante em Roma antes de se reformar, apesar de não discordar dos amigos, acrescenta alguns detalhes à perceção geral: “As pessoas aqui vão ajudando como podem, não é por estarmos irritados com a desorganização das autoridades e com a quantidade de imigrantes que às vezes se veem nas ruas que desejamos mal a essas pessoas. O problema é que também há muito que fomos abandonados pelos sucessivos governos, não há hospital nem bons transportes nem saneamento decente, as pessoas de Lampedusa também precisam de ajuda”.

Quando os raios caem como caíram nestas noites de setembro em que visitámos Lampedusa, todo o porto velho se ilumina e o mar parece brilhar como se um realizador de cinema estivesse a apontar para ali toda a sua tecnologia de iluminação. Quando as noites são claras em terra, o mar está revolto e não permite a ninguém sair da ilha. Chegam a faltar mantimentos quando as tempestades se prolongam por uma ou duas semanas e o ferry, que os traz de Agrigento, a cidade mais próxima mas mesmo assim a quase nove horas de viagem por mar, não consegue partir. “O governo não quer saber: nem sequer um avião mandam com comida, garrafas de água, medicamentos, nada. A ilha vive do turismo, temos de preservar a nossa forma de vida e não temos como cuidar de mais pessoas. Estamos em 2019 e as crianças de de Lampedusa têm de ir nascer a Palermo, valha-me Deus.”

TRANSPORTES Lampedusa fotografada no ferry que liga a ilha a Agrigento, na Sicília. É uma viagem de nove horas numa embarcação que transporta camiões que abastecem a ilha. Há outro ferry que faz a ligação em quatro horas mas só transporta passageiros. O pequeno aeroporto da ilha é fundamental para ligá-la a Palermo, onde as mulheres grávidas dão à luz - não nascem crianças em Lampedusa

Antonina Maggiore é dona de uma pequena loja de produtos locais, das cerâmicas às azeitonas, das compotas de tomate aos aventais pintados à mão. Tem 56 anos e admite que votou no Lega (partido de Salvini) nas últimas eleições europeias - “porque foi a única forma que vi de abanar alguma coisa” - mas nem esse “voto de protesto”, palavras da própria, resultou: “Ninguém quer saber, nem eles nem ninguém”. O partido de Matteo Salvini conseguiu 46% dos votos em Lampedusa nas últimas eleições europeias, um número impressionante que porém enfraquece quando consultamos o número de votantes total: 1.404 de 5.274 eleitores registados, ou seja, só 26% da população.

O Expresso tentou durante todo o mês de setembro contactar a porta-voz da Lega, Maria dell’Imperio, para as ilhas de Lampedusa e Linosa, mas não obteve resposta. Também Angela Maraventano, ex-senadora pela Liga Norte (partido que deu origem ao Lega) e vice-presidente da câmara de Lampedusa de 2007 a 2009, não respondeu aos pedidos de esclarecimento da posição do partido agora que passaram seis anos de uma das maiores tragédias que o Mediterrâneo testemunhou nos anos que se seguiram à Primavera Árabe. Mas quando o navio de salvamento Sea Watch 3 forçou a entrada em Lampedusa depois de as condições a bordo se tornarem insustentáveis, Angela Maraventano estava lá, no porto, a 26 de junho deste ano, entre outros apoiantes da Lega, contestando a entrada das pessoas e apoiando a prisão da capitã do navio, Carola Rackete. Numa reportagem da Euronews, a ex-vice-presidente da câmara disse que os habitantes querem serenidade e defendeu que há um conluio entre quem salva e as máfias de tráfico de pessoas: “Queremos viver em serenidade na nossa ilha, damos guarida aos que precisam mas é preciso lutar contra este fenómeno porque por trás destes salvamentos há máfias, delinquência. Por isso portas abertas para os pescadores, os cruzeiros, os turistas, mas fechadas para aqueles que traficam humanos”, disse à Euronews já este ano.

“Os lampedusanos são como quaisquer outras pessoas na Terra, foram os jornais que fizeram de nós ‘Gandhis’ e ‘Hitlers’: há os bons e os maus mas eu diria que a maioria das pessoas peca mais pela indiferença do que pela maldade”, diz Paola Pizzicori. No fundo, no fundo, “toda a gente tem emoções e é gerida por elas, ouvem uma notícia má e já querem mandar tudo embora, mas a verdade é que são pouquíssimos os que conseguem olhar para uma mãe, uma grávida, um menino pequeno e terem alguma atitude de maldade”. Fala de uma história que muito se conta na ilha, de quando Angela Maraventano, que continua a ir para o porto reclamar com os desembarques, fez um escândalo porque uma das mulheres que chegou, grávida, não estava a ser assistida suficientemente rápido pelas autoridades italianas. E enervou-se mesmo, até se emocionou. “E isto é uma pessoa que não quer pessoas estranhas na ilha”, conta Pizzicori.

O dono do café Royal, Giacomo Vitale, estava aqui quando o desastre de 2013 aconteceu e lembra-se bem: “Foi uma cena muito triste, não deveria acontecer, recebi aqui muitos e dei-lhes de comer sempre que me foi possível, mas também não é justo que a ilha seja conhecida só por ser uma espécie de caos permanente, só por isso”. Até porque não é. Os restaurantes estão cheios de turistas, há listas de espera para comer, praças com música ao vivo, praias onde só se ouve o italiano dos turistas maravilhados.

As pessoas daqui, na sua maioria, “continuam muito acolhedoras mas algumas cansam-se, claro”. Vitale fala também de alguns “pequenos incidentes” com os imigrantes tunisinos, um problema que muitos habitantes referem. “Alguns metem-se com as raparigas de forma um pouco mais insistente, já roubaram por aí umas garrafas de vinho, causaram alguns distúrbios por estarem bêbedos e as pessoas não querem isso porque prejudica a ideia paradisíaca que os turistas têm da ilha.” Não votou em Salvini - “não gosto dele” - mas entende o voto em alguém que “prometia o fim do caos”. Os permanentes desembarques autónomos “são um problema porque dá a sensação de que não sabemos o que se passa: as pessoas chegam durante a noite e nós só sabemos pelos telejornais, dá uma sensação de que não controlamos, nem tão pouco sabemos o que se passa na nossa ilha”.

o cemitério dos barcos “invisíveis”

A viagem que fazemos de noite até Lampedusa, não de avião mas a bordo de um monstro de centenas de toneladas como é um ferry - este até camiões cisterna cheios de gasolina para a ilha é capaz de conter nas suas entranhas - , mostra bem que o mar Mediterrâneo nem sempre se comporta como o animal domado, pachorrento, que se alonga nas areias das praias como que a pedir festas. A imensidão tem cor negra e o ferry ondula com intensidade suficiente para impedir um homem adulto de caminhar sem ir junto às paredes. É difícil avaliar que estabilidade poderá ter um barco de borracha ou de tábuas de madeira mal pregadas umas às outras, que muitas vezes só aguenta até passar as 24 milhas náuticas que estão sob jurisdição das autoridades líbias. É ali que quem foge passa a ser problema de outras pessoas quaisquer; normalmente dos navios das organizações não-governamentais, de alguns pescadores, de alguns barcos de recreio e das embarcações da Guarda Costeira italiana. As zonas de resgate obrigatório de cada país, denominadas “SAR”, foram estabelecidas pela Convenção de Hamburgo, em 1979 (com revisão em 1997), mas nem a Tunísia nem a Líbia deram números certos quanto aos limites das suas SAR, apesar de terem ratificado o tratado. Itália, sozinha, tem 500 quilómetros quadrados de mar para patrulhar e mesmo Malta (a quem “pertence” quase toda a área que envolve Lampedusa) recorre muitas vezes às autoridades italianas quando um barco se encontra na sua zona de salvamento por não ter meios para socorrer as embarcações.

“Uma coisa que quero deixar clara: não é que os desembarques tenham aumentado agora que existe um novo governo. Eu sempre disse: os desembarques em Lampedusa nunca pararam”, diz o presidente da câmara de Lampedusa, Totò Martello, ao Expresso, numa entrevista no seu gabinete, no centro da ilha. “Não pararam na era dos portos fechados e na luta contra as ONG do governo anterior, não pararam agora que Luciana Lamorgese substituiu Matteo Salvini no Ministério do Interior. Basta visitar o cemitério de barcos.”

E lá estão os barcos sobre as planícies rochosas. E o sol inclemente do sul sobre todas as coisas. O caminho para o cemitério de barcos é feito através de uma antiga base militar norte-americana - está aberta mas é vigiada. De um lado e de outro da estrada, dissimulados em pilhas de estilhaços, estão centenas de barcos de madeira, outros de borracha que agora são fiapos pretos e cor-de-laranja espalhados pelo chão. Veem-se camisolas, cobertores, dezenas de coletes salva-vidas, chinelos, sapatilhas, brinquedos sujos de terra. Dez minutos depois de chegarmos, um militar italiano pede-nos que abandonemos o local.

A 21 de setembro, uma semana depois de o Expresso ter regressado de Lampedusa, a ONG Alarm Phone, que regista todos os pedidos de ajuda dos barcos no Mediterrâneo Central, escrevia no Twitter: “Nunca recebemos tantos pedidos de ajuda como na semana de 16 a 20 de setembro de 2019. Dez barcos ligaram-nos nos últimos cinco dias: um total de 720 pessoas em perigo”. Como dizia Totò Martello, as pessoas continuam a chegar, “com ou sem a certeza de que um navio maior as irá salvar”. As várias autoridades italianas que operam em Lampedusa também já se manifestaram contra o que consideram ser “meios completamente aquém” do desejado para poderem responder à chegada de pessoas. O Expresso pediu uma reação das autoridades no local, que chegou na forma de comunicado, já reproduzido também por outros meios de comunicação italianos. Stefano Paoloni, secretário-geral do Sindicato Autónomo da Polícia, assina a nota: “Os desembarques são contínuos. Nas primeiras semanas deste mês (setembro de 2019), 570 pessoas desembarcaram em Lampedusa e o sistema de segurança já está sobrecarregado. As equipas que temos não são suficientes para lidar com a situação: são quatro equipas de 10 homens, incluindo Polícia, Carabinieri e Guardia di Finanza, mas, na realidade, temos de ter sempre cinco equipas ou não é possível garantir a segurança necessária na ilha”.

Totò Martello, na verdade o seu primeiro nome é Salvatore mas ele mesmo se apresenta como Totò e é assim tratado em todos os meios de comunicação social, diz que a retórica de Salvini, apesar de o homem em si já não ter competências governativas, provocou um grande dano na ilha. “Com o seu discurso de grande arquiteto da diminuição da imigração, Salvini conseguiu apagar o problema da chegada de pessoas aqui. Hoje muita gente diz que ele acabou ou reduziu a imigração, o que não é totalmente verdade.” Os números mostram que as chegadas de barco de facto decresceram. Este ano, até agora e segundo o registo diário do ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados), chegaram a Itália por mar 7.489 pessoas. Em 2018 esse número também foi mais pequeno que nos anos anteriores: 23.370. Se olharmos para 2017, quando chegaram 119.369 pessoas, e para 2016, o pico das chegadas, com 181.436 registadas, entendemos melhor a narrativa de Salvini, mas a luta de Martello é para que as pessoas não se esqueçam que Lampedusa continua a receber pessoas e que precisa de ajuda. “Quando os barcos se tornaram mais pequenos, e não aquelas grandes embarcações que costumavam chegar em 2016, Salvini e até os jornalistas começaram a utilizar a palavra ‘invisíveis’, assim reduzindo a importância deste fenómeno. Se são invisíveis então não existem, não é verdade? Então não são um problema. A linguagem importa. Claro que não são ‘invisíveis’, mas foi essa ideia que se criou.”

Totò Martello Ex-pescador, o atual presidente da Câmara de Lampedusa é um defensor da imigração mas quer mais atenção para o facto de a ilha não estar preparada para dar as melhores condições a quem chega Foto Getty

No início da Primavera Árabe, em 2011, quando mais de 60 mil pessoas chegaram a Itália na onda que hoje conhecemos como “crise dos refugiados” (62.692, segundo o Ministério do Interior), Lampedusa levou com o primeiro grande choque porque, dessas, mais de 51 mil desembarcaram nesta ilha e nas adjacentes: Linosa e Lampione, um pouco mais a norte, e este sim é um número poderoso - uma ilha com seis mil pessoas teve mais de 50 mil refugiados a habitá-la, em momentos diferentes e por períodos de diferentes durações, durante um ano, um cenário que não é fácil esquecer. Para a ilha, e nisto toda a gente concorda, 2011 e 2012 foram anos em que o turismo decresceu para perto de nada. Mas foi também este o ano em que os cidadãos de Lampedusa se tornaram exemplos mundiais de solidariedade, uma solidariedade que os fez serem retratados nos jornais como se fossem um daqueles exércitos míticos que, em franca minoria, acabam por chegar para derrotar o inimigo. A ilha foi nomeada para o Nobel da Paz. Nessa altura, porém, as pessoas que continuaram a chegar não eram uma arma de arremesso político, pelo menos não tão pesada como hoje, não eram o inimigo. “Há dez anos que cá estou e a ilha não mudou nada, quem era acolhedor assim permanece, quem não queria cá estranhos continua a não querer”, diz Henrico Genovese, advogado reformado de 50 anos - “quando vi que tinha dinheiro para me reformar, reformei-me” - que chegou a Lampedusa pouco antes do susto de 2011. “Foi complicado, sim, a ilha em todas as televisões como se fosse um cenário de guerra, com gente a dormir na rua, à frente da igreja e tudo isso. Eu fui lá levar comida e uns tachos e cobertores que tinha por casa, mas aqui não são só os refugiados que se sentem abandonados. O governo deixou-nos há muito tempo.” A repetição de uma frase que, de forma diferente mas conteúdo muito parecido, ouvimos de muitos habitantes de Lampedusa. “A lei do continente não opera aqui, eles não querem saber e a população aqui não quer saber deles em Roma. Se alguém precisar de um médico especialista têm de meter um requerimento, chega dali a 15 dias, se não houver tempestade. No ano passado o padre foi batizar uma criança a Linosa e ficou lá preso uma semana porque não há outra forma de viajar, só de barco, é um isolamento que cria uma carapaça dura de sobrevivência nestas pessoas”, conta Henrico Genovese.

Isolada Uma ilha no meio do nada: Lampedusa é uma porção de terra com 12 quilómetros de comprimento esquecida no Mediterrâneo. O isolamento é duro para quem lá vive - e tem sido aqui a porta de entrada na Europa para milhares de refugiados

a delinquência

“A tensão na comunidade vem do facto de as regras não serem respeitadas, os migrantes têm de ser transferidos em 48 horas e isso nem sempre acontece. Se não há clareza sobre o que se passa, as pessoas daqui não sabem para onde atirar a sua raiva”, explica Totò Martello. E dá um exemplo: “Chegam dois barcos com, por exemplo, 40 tunisinos. Antes de saírem do centro deviam dar as suas impressões digitais para termos um registo deles mas se não pode porque a máquina está estragada, então temos um problema. Se as pessoas ficam aqui mais de 48 horas começam a ficar assustadas, com medo de serem repatriadas e causam alguns problemas - claro que existem atos de delinquência, não vale a pena mentir”, diz o presidente da câmara. E há uma razão para estes atos - e não é os imigrantes serem delinquentes. “Se forem presos são logo levados para Agrigento e podem andar livremente enquanto esperam por julgamento. Se se cumprissem as regras isto não acontecia e as pessoas aqui não teriam com que se chatear.”

Sobre as queixas de falta de serviços públicos, Totò Martello diz que só chegou há dois anos e que o dinheiro existe e está a ser encaminhado para mais serviços públicos. Aponta como prioridades mais iluminação nas ruas e uma escola moderna mas não se compromete com o fecho do ‘hotspot’, uma reivindicação tanto dos habitantes como das ONG - os primeiros porque preferiam que os imigrantes fossem diretamente para Itália continental ou para outros países da Europa; os segundos porque acreditam que o ‘hotspot’ deveria ser um hospital para os habitantes da ilha mas com alas específicas para acolher migrantes, onde pudessem ser vistos por médicos, tivessem espaço e condições sanitárias melhores. “Voltamos à conversa original: não é suposto as pessoas ficarem mais de 48 horas, por isso o ‘hotspot’ não é um local para acolher durante muito tempo, não é um centro de acolhimento, é um ‘hotspot’, é para ser apenas isso, e tem de continuar a existir aqui porque as pessoas continuam a chegar aqui.”

o míssil

A história de Lampedusa é a história da sua posição geográfica. É por ser tão perto de África que as pessoas hoje fogem para este pedaço pequeno de rocha infértil, mas já no início do segundo milénio D.C. por aqui passavam e abrigavam todo o tipo de almas. “A função da ilha sempre foi a de servir como porto seguro no meio de tempestades, de travessias longas e tortuosas, um sítio para nos abastecermos de água e de madeira para poder seguir viagem. Esta ilha era lugar comum a muçulmanos e cristãos, não era de ninguém, toda a gente aqui parava. A meio caminho entre Europa e África, a ilha tornou-se politicamente neutra, onde se executavam trocas de prisioneiros”, explica ao Expresso Nino Taranto, 69 anos, historiador e criador do Arquivo Histórico de Lampedusa, um micromuseu com mapas antigos e muitos, muitos livros.

Um cativador Nino Taranto é um historiador que sabe falar para uma plateia: enquanto dava a entrevista ao Expresso, quem ia entrando no micromuseu já não conseguia sair - era preciso ouvi-lo. No fim parecia uma conferência em pé

Vendo agora todos os hotéis, as dezenas de escritórios de aluguer de carros, os restaurantes uns em cima dos outros, as ruas cheias de turistas, ninguém diria que Lampedusa foi quase até aos anos 1990 uma ilha que ninguém queria - mais estranho: que ninguém conhecia.

A ilha era privada mas fazia parte do território do rei de Nápoles, que se negou sempre a vendê-la aos ingleses por entender que o comércio no Mediterrâneo ficaria muito prejudicado se ela saísse do controlo do reino. Comprou a ilha e tornou-a parte da Sicília. “Praticamente desabitada, em 1843 o rei decide enviar 120 pessoas para povoar a ilha, vindos de várias partes de Itália, e é aqui nasce a história da atual comunidade de Lampedusa, que é uma colónia com muito pouco tempo, cerca de 170 anos, e todos originalmente imigrantes.” As condições climáticas e topográficas da ilha não eram conhecidas, então mandaram para aqui agricultores, só que isso não funcionou, não existe terra arável. Lampedusa tornou-se uma colónia penal e, como não havia outra forma de sobreviver, cortaram as árvores milenares que estavam no meio das montanhas e fizeram madeira para vender para o continente. “Só no fim do século XIX é que se descobre, finalmente, a pesca, que se torna a atividade principal da ilha até ao final dos anos 80, quando tudo muda de novo”, continua Taranto, que por esta altura, e enquanto dá a entrevista ao Expresso, já está a ser ouvido por uma plateia de turistas que ultrapassa as 20 pessoas - chegaram para ver o micromuseu mas acabaram a beneficiar de uma lição de História. No fim da entrevista uma senhora pergunta: “A que horas é a próxima palestra?”.

Taranto prossegue. “Em 1986 dá-se um episódio muito importante para Lampedusa. Na sequência do bombardeamento de Trípoli por parte dos norte-americanos, o Coronel Gaddafi lança dois mísseis sobre Lampedusa, uma base dos norte-americanos. Ninguém se magoou nem nada se estragou mas, de repente, estava a televisão toda a falar desta ilha que os líbios tinham tentado atacar. Lampedusa estava todos os dias e a toda a hora nas notícias e os italianos não conheciam sequer a existência deste seu território.”

O mundo fica a conhecer as praias incríveis de mar transparente e o turismo explode. “Começa-se a construir hotéis, alojamentos de todo o tipo, restaurantes, bares, locais para alugar barcos e os próprios barcos de pesca passam a ser usados para o turismo, aparecem serviços de transportes e aluguer de carros...”

Em 2011 dá-se uma nova “invasão” de jornalistas mas por motivos diferentes - é o início da crise de refugiados, sobretudo na sequência da Primavera Árabe. A ilha mais do que duplica os seus habitantes devido à chegada de 9000 tunisinos. “Voltamos a falar de Lampedusa, todos os dias, mas agora por causa do caos. Imigrantes ilegais, ilha da vergonha, a ilha suja. E este episódio é importante porque marca uma altura em que os lampedusanos começaram a desaprovar quase tudo o que tem que ver com a imigração”, explica Taranto. Ao mesmo tempo circulavam imagens de gente a ajudar com tudo o que tinha e a ilha torna-se uma espécie de exemplo de solidariedade - é escolhida como primeiro destino do Papa Francisco, é nomeada para Nobel da Paz.

A mensagem No meio do micromuseu de Nino Taranto vê-se uma fotografia de migrantes com uma mensagem do tamanho do Mediterrâneo: “A cultura é um mar que une”

Três meses depois da visita do Papa, morrem 368 pessoas a 3 de outubro de 2013, uma “tragédia evitável”, segundo Taranto. “Se fosse dada a estas pessoas a oportunidade de chegarem à Europa sem se mandarem ao mar, isto não acontecia.”

Naquele outubro havia uma atmosfera de férias. “Quando se soube das mortes, abateu-se sobre a ilha um silêncio enorme, um manto de silêncio. Os caixões estiveram alinhados no hangar, dias e dias, já não eram férias nenhumas”, recorda o historiador. Seis anos depois, Taranto explica porque é que as ONG são muito criticadas - chamam-lhes “piratas, traficantes, revendedores de carne humana” -, comenta o crescimento em Lampedusa, ainda que não muito expressivo, da Liga de Salvini, e aborda ainda o facto de alguns turistas se terem juntado no porto da ilha para a “condenação imediata de Carola, a capitã alemã do Sea Watch”. “A economia daqui é apenas turismo. A imagem da ilha ligada à imigração, qualquer ligação que se faça na cabeça do potencial turista, é uma ameaça à forma de vida. Quando um turista liga para pedir um quarto, os donos dos hotéis asseguram-lhe logo que não há imigrantes à vista porque no imaginário coletivo a ilha está sempre cheia de imigrantes.”

O historiador continua a falar pausadamente para cada vez mais gente. Esta parte agora é importante, solene. Olhando para a plateia, diz: “O património de solidariedade desta ilha está em risco e é tão importante como o património histórico, natural, turístico. E está em risco. O sentido de humanidade está a perder-se de tal forma que as pessoas começaram a achar incríveis os mais simples gestos”. E conta uma história que se passou com ele: “Um dos rapazes que sobreviveram ao 3 de outubro entrou aqui e pediu-me para ligar à mãe, com quem não falava há dois meses, e eu ‘sim, claro,‘toma lá o telefone’ e as pessoas que aqui estavam disseram que eu estava a fazer algo extraordinário. Meu Deus, isso é o básico. O normal seria não deixar ligar? Seria dizer-lhe para ir comprar um telefone?”.

Taranto partilha o plano de Pietro Bartolo, agora deputado europeu mas médico em Lampedusa durante mais de 30 anos e uma espécie de santo secular para estas pessoas, para a redistribuição de imigrantes. “Se todas as 8000 freguesias italianas recebessem três ou quatro pessoas e se o dinheiro que o Estado dá a estes centros de acolhimento sem condições nenhumas fosse dado a cada presidente da câmara para que colocasse logo a trabalhar aquelas pessoas, Itália não teria um problema”, defende Taranto. “Até porque quando nós vemos uma pessoa a trabalhar ficamos tranquilos, se virmos um imigrante pela rua a beber, a causar distúrbios, já deixamos de concordar com a política de imigração. Esta situação de animosidade quem a criou fomos nós.”

Não foi só uma vez que os imigrantes no ‘hotspot’ de Lampedusa pegaram fogo às instalações, em protesto contra as condições mas também contra o tempo que demoram os processos de pedido de proteção e o tempo que ficam retidos na ilha sem saberem o que lhes vai acontecer. “De todos os rapazes que passaram por aqui não me recordo de um único delinquente. Nós é que criamos os delinquentes. Os imigrantes esperam dois, três anos por papéis de asilo ou proteção. Criámos uma forma de assistencialismo que lhes dá tudo de borla, não os deixam trabalhar. Eles querem trabalhar, querem estudar mas essa febre saudável nós tratamos de a curar num instante com a nossas leis que parecem feitas para lidar só com números, nunca com vidas.. As pessoas chegam aqui mas não é o fim da viagem, é um passo, a nova vida têm de a conquistar noutro sítio, não aqui. Quando se entra em contacto com estas pessoas, quando nos apercebemos que não são números, dá-se um entendimento mútuo quase sempre muito bonito que ensina a ambos os intervenientes muito mais sobre cada país, cada cultura, do que anos de leituras.”

a ironia

A história da migração em Lampedusa, como já Nino Taranto nos tinha explicado, tem séculos. Mas nos últimos 20 anos, ou por causa das várias guerras civis em África ou por causa da miséria, ou porque as terras onde eles viviam e que cultivaram se tornaram manchas áridas e quebradiças de infertilidade, quase 300 mil pessoas passaram por Lampedusa a caminho de um sítio melhor, ou pelo menos era esse o sonho ao comando. Desde 2009 que Giacomo Sferlazzo, artista plástico, historiador oral, escritor e músico se embrenha no que os outros consideram despojos para tentar encontrar a verdadeira história das pessoas que passam por Lampedusa. A associação de intervenção cívica que lidera, a Askavusa, criada em 2005 quando um grupo de pessoas unidas pelos ideais de fronteiras abertas e fortemente ligadas à esquerda decide começar a chamar à atenção não só para os direitos de quem chega mas também para a necessidade de que a ilha tenha mais serviços públicos para quem lá vive - uma estação de tratamento de águas, mais atenção ao tratamento de lixo, uma escola e um hospital, eis algumas das reivindicações da Askavusa.

É Giacomo que está também à frente do Porto M, um bar com um palco metido numa rocha e que serve de expressão artística às reivindicações da associação. M de quê? M de Mar, M de Mediterrâneo, M de Migração, M de Memória, M de Música e M de Militarização. Giacomo considera que Itália, e toda a UE, estão “viciadas” na militarização, vergadas ao peso das grandes empresas de armamento: o pesado, que “impele os países para a participação em guerras grandes como no Iémen, na Líbia, na Síria”, e o mais “leve”, como os radares e os satélites de monitorização dos barcos que vão chegando.

História Giacomo durante um concerto no Porto M e no qual conta a história da ilha, desde a fundação até à crise de refugiados. A atuação é um misto de concerto com intervenções retóricas sobre os problemas que afetam Lampedusa

Neste momento, Giacomo tem a correr no tribunal de Agrigento uma queixa contra a UE e o Governo italiano devido à falta de assistência no salvamento das pessoas na tragédia de 3 de outubro. “Dois barcos acercaram-se do barco dos migrantes, apontaram as luzes, rodaram ali à volta e foram-se embora. Um destes barcos era da Guarda de Finanza. Temos testemunhos dos sobreviventes e das primeiras pessoas que chegaram lá primeiro, os socorristas. A nossa tese é de que esta tragédia era precisa para justificar as novas políticas de controlo da migração.” As palavras de Giacomo são duras, nem toda a gente pensa assim, o próprio Vito Fiorino considera que os barcos que viu durante a noite pensaram que tinham tempo para socorrer aquelas pessoas mais tarde, ou seja, não as deixaram lá por negligência.

Giacomo quer que Lampedusa seja “um observatório privilegiado das migrações” e por isso decidiu construir no seu bar um museu de objetos dos imigrantes - foram recolhidos dos detritos dos barcos que chegaram a Lampedusa ou entregues pelos próprios viajantes. Há museus no centro da Europa, como em Paris, que já pediram a Giacomo para ceder alguns destes objetos mas ele recusou - é na ilha que devem estar expostos, diz, não há lugar mais certo para eles.

Memória No museu de Giacomo há calçado pendurado no tecto, coletes salva-vidas agarrados às paredes e pequenos artefactos espalhados pela sala - simbolizam o medo, a esperança, o desespero e a fé dos migrantes que outrora navegaram pelo Mediterrâneo e que foram donos de todos estes objetos

O museu começou com o desembrulhar de uma caixa plastificada. “Um dia, nas minhas passeatas à procura de lixo, e o lixo para mim é o símbolo do espaço que a modernidade ocupa, encontrei uma caixa de cartão revestida de plástico e lá dentro tinha cartas, fotografias, textos religiosos, foi um achado que me marcou muito, então pensei que era preciso honrar aquelas memórias.” Ao fim de um ano tinha uma pilha enorme de objetos e começou a pensar na melhor forma de dar sentido a tudo aquilo, sendo que muitos, quase todos os objetos, têm dono desconhecido. “Entendemos que estes objetos têm de ter uma reflexão, precisam de ser inseridos numa análise porque sem ela podem dizer-te uma coisa e o seu contrário. É suposto haver uma racionalização do problema. É fácil chegar aqui e dizer ‘ai, pobrezinhos dos imigrantes, que coisa triste’, choramos, choramos, certo, pobres deles, mas o que é que está por trás deste fenómeno? Porquê esta imigração? Quais são as causas?” Hoje são três paredes cheias de histórias por contar: uns sapatos velhos, vários tachos, pratos e cafeteiras, centenas de coletes salva-vidas, fotografias de famílias sorridentes corroídas pela água, cartas e documentos plastificados, um saco de pano bordado à mão, focos, embalagens de leite em pó e conservas.

Mas afinal quais são as causas do problema? Giacomo considera que são históricas e culpa dos que hoje “continuam a impedir uma normalização” do processo de pedido de asilo. A forma “demasiado emocional” de entender a imigração “tolda a racionalidade necessária para analisarmos friamente este assunto”. “Há um imperialismo contemporâneo que é preciso denunciar. O que fizemos na Líbia, na Síria, no Afeganistão, no Iraque, é criminoso e por isso não podemos impedir as pessoas de procurarem fugir disso.”

É por isso que a luta desta associação, assim como do Forum Lampedusa Solidale, é para transformar toda a narrativa sobre a natureza do que se passa na ilha: “Nada do que se passa aqui é uma emergência - um terramoto é uma emergência, isto é uma realidade que acontece há mais de 20 anos nesta ilha e é preciso tomar medidas sérias como se tomam para outras realidades permanentes que acontecem sempre”, diz Paola Pizzicori, do Lampedusa Solidale, que, como educadora, considera que devia ser obrigatório nas escolas ensinar às novas gerações as razões que levam as pessoas a mudar do país onde cresceram. “Nós, os europeus, fazemos isso sem problema entre os Estados-membros, outros parecem não ter o direito de procurar uma vida melhor”, relembra.

os inimigos

A tragédia de 3 de outubro comoveu o mundo e fez girar mais rápido a máquina de decisões europeia. Menos de duas semanas depois do desastre estava no mar uma das mais ambiciosas missões de salvamento permanente desde a Segunda Guerra Mundial: a Mare Nostrum foi a corajosa resposta do governo italiano a uma urgência que teimava em tornar-se o normal. Um ano depois, o número de pessoas resgatadas pela operação ultrapassava as 150 mil, mas isso não foi suficiente para que os outros países europeus se juntassem na partilha de custos - com uma fatura de nove milhões de euros por mês, 900 soldados, 32 navios e dois submarinos, a Mare Nostrum foi substituída pela Triton, uma missão não de salvamento mas de proteção de fronteiras, que já não tinha embarcações perto da Líbia mas sim estacionadas à frente dos países europeus, nos limites do Espaço Schengen, e com um orçamento de menos de três milhões.

Em 2015, contra os protestos de Itália mas com a aprovação da maioria do bloco, foi criada a Operação Sophia, com o objetivo de combater e incapacitar os traficantes de pessoas na Líbia. Da sua frota, além de aviões, faziam parte 19 barcos, disponibilizados por vários países europeus, e por isso a Sophia, o nome de uma menina nascida num barco de resgate, acabou por se tornar também uma missão de salvamento. Mas a pressão política que havia definhado a Mare Nostrum recai então sobre os esforços da Sophia, que neste momento não tem um único barco de patrulha e resgate. A vigência da operação foi renovada a 27 de setembro deste ano por mais seis meses. Mesmo sem todos os meios necessários, a missão Sophia salvou 45 mil pessoas desde meados de 2015 até ao fim do verão de 2019 (segundo dados da própria missão). Durante esse mesmo período, foi a Guarda Costeira italiana, em conjunto com as ONG no mar, quem salvou mais gente: cerca de 100 mil pessoas, segundo uma análise do Centro Internacional para as Operações de Paz (ZIF, em alemão).

À deriva e abandonado Barco filmado em setembro de 2019: as costas de Lampedusa são imprevisíveis - uma embarcação no meio do nada ficou presa junto às rochas. A história de como ali chegou e não mais saiu é um mistério

Desde o início, a missão Sophia nunca foi totalmente consensual. De entre os seus vários objetivos, o mais controverso foi sempre a cooperação com a Líbia - e o treino da respetiva Guarda Costeira -, um país sem governo estável, palco de severos atentados aos direitos humanos, de entre os quais escravatura institucionalizada e tortura. A Guarda Costeira líbia não salva pessoas porque não tem recursos - e aceita pagamentos dos traficantes para não interferir nas travessias pelas quais as pessoas que fogem lhes pagam - e o país não tem capacidade para “salvar” ninguém, ou seja, para entregar quem é resgatado no mar a um sítio onde não haja guerra. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos já disse que a Líbia não é um “porto seguro” e, por isso, é ilegal levar de volta quem foge de lá. Mas quando a Guarda Costeira líbia intervém, na maioria das vezes estas pessoas acabam de regresso a locais que um diplomata alemão destacado em África um dia descreveu à chanceler alemã, Angela Merkel, como sendo “campos de concentração”.

Segundo relatórios internos da Frontex e de várias instituições europeias aos quais o Expresso teve acesso por via de dois advogados, Juan Branco e Omer Shatz, que estão a tentar levar a UE e vários dos seus dirigentes a responder no Tribunal Penal Internacional por causa das mortes no Mediterrâneo, Bruxelas estava ciente dos perigos da ligação às autoridades líbias, já que a Guarda Costeira da Líbia mantém uma relação bem documentada com os contrabandistas. “Como mencionado em relatórios anteriores, alguns membros das autoridades locais da Líbia estão envolvidos em atividades de contrabando”, lê-se num relatório de 2016 da própria Frontex. O relatório cita entrevistas com pessoas resgatadas que disseram ter sido traficadas por líbios de uniforme.

“Muitos [oficiais da guarda costeira] eram das milícias - muitos lutaram com milícias durante a guerra civil”, disse Rabih Boualleg, que trabalhou como tradutor da Operação Sophia no final de 2016 a bordo de um navio holandês envolvido no treino da Guarda Costeira líbia, ao “POLITICO”. Contactada pelo Expresso, a direção da missão defendeu-se das acusações dizendo que “a operação EUNAVFOR MED [Sophia] é uma operação da Política Comum de Segurança e Defesa (PCSD) focada em quebrar o negócio de contrabandistas de migrantes e traficantes de seres humanos e em contribuir para os esforços da UE em restabelecer a segurança na Líbia e na região do Mediterrâneo Central”. Em parceria com diversas identidades, tanto líbias como europeias, adianta ainda a fonte, a Sophia “treina a Marinha e a Guarda Costeira líbias de forma a contribuir para a segurança das suas águas territoriais do país e a formação também inclui atividades de salvamento marítimo, com um grande foco nos direitos humanos e no Direito Internacional”. Como consequência, avança ainda a referida fonte, desde o início da missão foram já apreendidos 151 suspeitos de tráfico e destruídos 551 barcos para que não possam voltar a ser utilizados pelos traficantes. Problema: barcos cada vez mais baratos, mais frágeis, de utilização única.

Depois do fim do Mare Nostrum, o Mediterrâneo ficou um lugar muito mais perigoso, apesar de sempre o ter sido. Durante a vigência da missão, de um ano apenas, quatro em cada mil pessoas que tentaram a travessia para a Europa morreram afogadas - mas desde que essa operação acabou, esse número passou para 24 por cada mil, segundo a análise mais recente do ZIF. Quem defende uma política de controlo de fronteiras considera a existência dessas missões um factor que contribui para o aumento das viagens porque os migrantes sabem que vão ser salvos. Mas os números mostram outra realidade. O ano em que mais pessoas fugiram dos seus países em direção à Europa foi 2016, o Mare Nostrum há muito que tinha deixado de resgatar pessoas. Chegaram 180 mil, morreram cinco mil, mais do que o registado em qualquer outro ano. Nos primeiros nove meses de 2019 saíram da Líbia 12.901 pessoas, segundo os números do Observatório para as Migrações do Instituto para o Estudo de Política Internacional de Itália. Durante o tempo em que não houve barcos no mar, uma média de 46,7 pessoas saíram diariamente da Líbia em dias nos quais as ONG estavam posicionadas ao largo da Líbia e 47,4 nos dias em que não havia navios de salvamento no mar.

Poucos meses antes do fim da Mare Nostrum chegava ao Mediterrâneo o navio Phoenix, da MOAS, a primeira das ONG que se mobilizaram com a missão de salvar vidas. Chegaram a estar 12 navios de salvamento nas águas internacionais, em frente à Líbia, preparados para o socorro, mas a situação política europeia começou a mudar em 2016, modificando-se totalmente no fim de 2017 quando Matteo Salvini tomou para si o tema da imigração e fez destas organizações o maior inimigo. Até os pescadores foram ameaçados, abrangidos pela mesma lei que criminalizava os salvamentos. “O decreto contra as ONG acabou por afetar também os pescadores. Essa lei tem um artigo a dizer que se socorres alguém podes incorrer numa multa de €50 mil e ainda te tiram o teu barco. Eu não posso perguntar a uma pessoa que se está a afogar pelo seu passaporte. Houve pescadores com processos por terem salvo pessoas mas ganharam sempre porque a lei do Salvini não é válida à luz da lei internacional”, explica Totò Martello, que, na altura do desastre de 3 de outubro, era presidente do sindicato dos pescadores. Tem apenas uma memória vívida desse dia: “Eu levanto-me muito cedo. Fui até ao porto, como vou sempre, e vi que muitos barcos de pesca, que normalmente estão a regressar com peixe pela manhã, traziam pessoas lá dentro, migrantes, pessoas que tinham salvado. Na altura fiz uma t-shirt que dizia apenas ‘sou pescador’ e andava sempre com ela porque dizer ‘sou pescador’ chega, se o sou então tenho de salvar, é uma questão de honra, nem se consegue enfrentar o mar se não o fizermos”. E garante que é isso que os seus companheiros sempre fizeram, independentemente da lei aprovada em junho de 2019.

O mapa e o território A seta assinala a localização de Lampedusa, que tem a Líbia a sul e que está mais próxima da Tunísia que da Sicília. Estes territórios e estas águas são parte enorme do debate sobre migrações e refugiados - e é o que ali acontece que tem mudado políticas, umas mais pró e outras mais anti-imigração

entraram, bateram-lhe, amarraram-no

Alberto Mallardo está há quatro anos à frente da Mediterranean Hope, uma organização que faz parte da Federação de Igrejas Protestantes de Itália, criada em 2014 depois do desastre em Lampedusa para analisar os fluxos migratórios na ilha e prestar ajuda, principalmente ajuda legal, a quem chega sem conhecer os caminhos para pedir proteção internacional. São os únicos, além das autoridades e dos membros do Fórum Solidariedade, um projeto da sociedade civil iniciado pela Mediterranean Hope, a poder receber as pessoas no porto de Molo Favaloro, o porto militar. Recebem quem não sabem que vai chegar. Saltam da cama a que horas for, embrulham-se em mantas à espera de barcos que podem trazer 20 ou 500 pessoas. O ritual é sempre o mesmo e está documentada em dezenas de reportagens: autoridades sanitárias de luvas brancas fazem uma análise rápida a cada pessoa para despistar qualquer doença contagiosa e as pessoas que chegam são colocadas em carrinhas e levadas para o centro. É enquanto esperam pelos exames ou para serem levados para o ‘hotspot’, ou quando ainda estão no barco, que a Mediterranean Hope tenta ajudar.

A página de Facebook de Mallardo é repetitiva: chegaram mais estas pessoas, mais estas, mais este número ontem, mais aquelas durante a noite: número de homens, mulheres, crianças e mulheres grávidas. E cada publicação é acompanhada sempre do mesmo apelo à UE: “Estas viagens perigosas não são necessárias, deixem as pessoas viajar e entrar na Europa para pedir asilo como um turista normal e o seu caso analisado como uma pessoa normal e não como um clandestino, como alguém que não tem direito de estar aqui a pedir auxílio”, lê-se numa das publicações. Em conversa com o Expresso no centro turístico de uma ilha onde só sabemos que existe um problema de imigração porque os jornais dizem e não porque se veja alguém nas ruas, Alberto repete o mesmo. Nota-se no rosto genuína incompreensão pelo processo pelo qual estas pessoas chegam aqui, o perigo enorme que Mallardo parece não entender, parece que nunca leu o discurso de nenhum político populista. Mas, no fundo, claro que sabe o que faz isto acontecer. “É preciso questionar até a distinção entre refugiados e migrantes económicos e é por isso que os corredores humanitários, que permitem passagem segura a um determinado número de pessoas até que elas cheguem a um avião, são uma das formas que defendemos para garantir que quem passa fome, quem está em ambientes de guerra, quem precisa de um trabalho que sustente a sua família, consegue chegar a sítios seguros sem ter de vender tudo, fugir, ser explorado, torturado, vítima de tráfico e todas essas coisas.” A decisão política da União Europeia em bloquear a emissão de vistos “leva as pessoas a estas viagens perigosíssimas porque não é possível pedir asilo sem ser em solo europeu”.

Mallardo já falou disto em dezenas de conferências, centenas de artigos e entrevistas mas sabe que só fazendo cada dia o mínimo pode ajudar as pessoas a entender a necessidade de uma abordagem personalizada ao problema da imigração. A Mediterranean Hope retirou com sucesso 1000 pessoas do Líbano e de Marrocos ao longo de dois anos. Os custos para o governo italiano foram nulos, já que toda a viagem foi paga pela Federação de Igrejas Protestantes. Iniciativas como estas, que já preveem cidades específicas para onde enviar cada família, comportam um nível de organização de receção de refugiados ou imigrantes muito maior - o caos que se vê em Lampedusa quando as pessoas chegam desordenadamente não se verifica quando existe um corredor humanitário. “Vivemos num clima político, um pouco por todo o mundo ocidental, que dá prioridade à deportação e às políticas de desencorajamento da imigração como métodos para o controlo da entrada de pessoas e por isso são precisos mais projetos como este corredor que ajudem quem está em situações mais vulneráveis.”

TODOS SÃO BEM-VINDOS Foto publicada pela Mediterranean Hope nas suas redes sociais: o trabalho que fazem no terreno, nem sempre fácil, leva à letra o que publicam no Facebook e Twitter - Lampedusa, um porto aberto

Claudia Vitali só começou a colaborar com a Mediterranean Hope há cinco meses, tem 25 anos e a formação dela é em Estudos Africanos, vertente lusófona. O Expresso rapidamente se torna uma oportunidade para treinar o português mas logo se mete o italiano pelo meio e o inglês. Claudia trata principalmente de explicar aos migrantes que chegam à ilhas que direitos têm e que procedimentos devem adotar. “O pedido de asilo em Itália é normalmente um processo longo e às vezes complicado. Quem chega de barco a Lampedusa é considerado por lei um migrante irregular. No ‘hotspot’ de Lampedusa a pessoa pode formalizar uma manifestação da vontade de solicitar proteção internacional mas nem sempre sabem disso e podem acabar deportados por não darem entrada desse pedido. O meu trabalho é tentar que ninguém caia pela rede da desinformação.” Nesse processo já recolheu histórias que não vai esquecer, como a de um pescador tunisino que se tornou refugiado à força: o processo dele ainda corre na Sicília e por isso mesmo Claudia não diz o nome para não prejudicar o pedido de asilo. “Em agosto deste ano chegou aqui um homem que contou que não queria necessariamente ter saído da Tunísia mas foi enganado por dois supostos mecânicos que o abordaram no seu barco de pesca fingindo que tinham de verificar o motor. Entraram, bateram-lhe, amarraram-no e ele, desmaiado, veio de barco para cá. Deixou filhos doentes na Tunísia, o seu irmão foi espancado quando ameaçou dizer à polícia e ele agora precisa de proteção internacional porque está ameaçado de morte se voltar.”

EM PERMANÊNCIA Claudia Vitali, à esquerda, e Alberto Mallardo, à direita, estão todos os dias em Lampedusa para acompanharem os migrantes que sobrevivem ao Mediterrâneo - muitos dos que chegam à ilha não sabem os direitos que possuem e acabam deportados. Parte do trabalho da Mediterranean Hope, ONG para a qual ambos trabalham, é evitar que isso aconteça

Até 15 de setembro de 2019, 4.023 migrante foram devolvidos à Líbia, segundo a Organização Internacional para as Migrações (OIM). Mais de 78.000 chegaram à Europa desde o início do ano, era este o número que a contagem diário do ACNUR marcava dia 1 de outubro. O número de migrantes que perderam a vida ao tentarem chegar à Europa já ultrapassa as nove centenas (950 pessoas até agora) este ano mas é metade do número registado no mesmo período de 2018 (1.839 mortes confirmadas).

“Só chegam menos pessoas porque o governo italiano tem um acordo com a Líbia: desde 2017 que está previsto o pagamento de milhões de euros à Guarda Costeira líbia e treino dos seus membros, cuja função é intercetar barcos enquanto não estão em águas internacionais e levá-los de volta à Líbia”, diz Claudia, secundada pela posição oficial da ONU, que já pediu à UE que reveja a sua definição de sucesso no que à imigração diz respeito. “Até a palavra ‘migrantes’ está errada, faz lembrar aves migrantes, migração natural, marés, como se estes fluxos fossem a lei da natureza e nós não tivéssemos qualquer responsabilidade neles, como se não tivéssemos interferência nos países dos quais as pessoas fogem, como se essas coisas migrantes fossem um problema na natureza e não dos humanos”, acrescenta Paola Pizzicori, que dormiu na igreja de Lampedusa 15 dias seguidos este ano, em junho, em protesto contra o bloqueio dos portos à embarcação Sea Watch 3. “Ali estávamos todos ao nível do chão, é duro, desconfortável, não consegues dormir, queres vir embora, queres desistir e podíamos desistir porque as nossas casas são ali ao lado. Ao nível do chão, uns em cima dos outros, fomos obrigados a pensar e a falar no que seria estar num barco sem poder desistir.”

Até ao início da Segunda Guerra Mundial, as fronteiras entre nações mudavam com relativa frequência. O período de paz que se seguiu, e que hoje ainda vivemos na Europa, tornou-as coisas inamovíveis, estáticas. O passaporte é uma coisa relativamente recente, foi instituído depois da Primeira Guerra Mundial como medida temporária - e assim ficou. O conceito de fronteira tem-se tornado tão dominante no discurso político recente que por vezes nos esquecemos que elas são feitas pelo homem, são arbitrárias, impostas, e normalmente seguem interesses novos dos povos que habitam as terras (o Kosovo tornou-se independente apenas em 2008, por exemplo) ou antigos, como vemos no mapa de África, recortado segundo os interesses das potências coloniais. Persistem porque existem governos que as mantêm válidas. E é só. Mas Lampedusa não tem paredes, não tem muros como os que separam Israel da Palestina, como o que existe ainda em Chipre, não tem barreiras artificiais como as que há muito se ergueram entre o México e os Estados Unidos. No entanto tem uma porta, uma porta que pressupõe a existência de paredes: sem paredes para que seria preciso uma porta? Não deixa de ser irónico que para homenagear os que perderam a vida a tentar chegar à Europa se construa uma porta quando a verdadeira que se podia abrir permanece, na maioria das vezes, fechada.





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