“Sou lésbica, sou católica, sou pessoa”

É jovem, católica e lésbica à procura de legitimar o seu papel na Igreja. “Sempre falei com padres em relação ao assunto e a resposta era sempre aquela, 'perfeita', tu vais para o inferno.” Chama-se Carolina, tem 26 anos e é voluntária na Jornada Mundial da Juventude
1 de agosto de 2023
Carolina Moutela decidiu confessar a um padre que é lésbica, como quem vai “fazer um desabafo”. Estava nos Convívios Fraternos, em Aveiro, um retiro espiritual dedicado a jovens católicos. Escolheu o Padre Ângelo para a confissão, o mesmo que preparara os pais para o seu batismo. Não seria a primeira vez que falava sobre a sua sexualidade perante um padre, mas fazê-lo assim, por oposição a uma conversa informal, era ainda mais significativo. Confessar é pedir perdão.
Carolina estava preparada para pedir desculpa pela sua homossexualidade. “Tu vais para o inferno”, era a frase que costumava ouvir do outro lado. A resposta do padre Ângelo foi outra: “Deus ama-te independentemente de seres lésbica ou não”.

Carolina Moutela começou a mudar a sua expressão de género aos 19 anos, hoje tem 26
Traz à volta do pescoço um fio a segurar uma cruz já desgastada pelo tempo, que lhe foi oferecida nos Convívios Fraternos. Aconteceu há seis anos, precisamente. Para além da ferrugem que reveste a cruz, estão timidamente visíveis as linhas desenhadas que remetem para as estacas onde Jesus foi pregado. A cruz lembra-lhe todos os dias que a conjugação da fé com a orientação sexual deixou de ser incompatível.
As relações que não seguem o padrão heterossexual provocam diferentes reações dentro da Igreja. No telemóvel de Carolina “choviam mensagens” quando o Papa Francisco trouxe o tema ao Vaticano, no passado mês de janeiro. O representante da Igreja Católica fez um comunicado a condenar a criminalização da homossexualidade, sem no entanto deixar de referir que “não é crime, mas é pecado”.
No mesmo ano em que o Papa vem a Portugal para a Jornada Mundial da Juventude, foi publicado o documentário "AMÉN: Francisco responde", disponível na plataforma de streaming Disney+ que conta com cerca de 160 milhões de subscritores. É uma conversa onde o Papa se junta com jovens de diferentes etnias, religiões e crenças para debater as fissuras que se fazem sentir na religião católica. Falam de assuntos como o aborto, o acolhimento das pessoas LGBTI dentro da Igreja e até de pornografia.
“Deus fez o homem e a mulher”
A cisão entre a homossexualidade e o catolicismo é uma história antiga. Carolina sentiu isso na pele, tanto na Igreja, como no seio familiar. O levantar do sobrolho dos pais deu-se quando Carolina tinha 12 anos. O que parecia uma brincadeira mundana entre duas amigas, rapidamente se tornou no ponto de partida para uma relação atribulada com a mãe e com o pai. Carolina foi “apanhada a dizer a uma rapariga que gostava muito dela”, motivando uma chamada dos progenitores à escola para denunciar a situação.
Em Estarreja, perto de Aveiro, “a comunidade LGBT era vista como promíscua, pessoas que não conseguiam arranjar trabalho”. O medo dos pais foi precisamente esse: o futuro de Carolina. Durante a adolescência, o caminho para uma “vida digna” passava pela ideia de deixar de ser lésbica. “Deus fez o homem e a mulher” eram palavras que, repetidamente, saíam da boca do pai. Esta visão alterou os comportamentos de Carolina, ao ponto de namorar com rapazes. Mesmo assim, a sua orientação sexual era posta em causa. “É só uma fase”, dizia o pai, justificando as “más experiências que [Carolina] teve com rapazes”.
Na primeira vez da família em Lisboa não houve tempo para visitas turísticas. Foram diretos ao consultório do psicólogo. Nas consultas, Carolina podia ser quem era, podia dizer “aquilo de que gostava, aquilo de que não gostava e o que fazia na escola”. Ir àquelas sessões significava destapar e verbalizar o que se passava em família. Era um espaço seguro onde falava da sua orientação sexual sem receios.
“Sou ou não sou [lésbica]?”, questionava-se.
A resposta à pergunta começou a ganhar contornos, aos 15 anos, quando já acompanhada também em psiquiatria. O médico respondeu-lhe com a conhecida metáfora cromática: “Entre o preto e o branco há uma gama de cores e não só um meio”. A ideia deste espetro deu “uma certa paz” a Carolina, mas não lhe deu uma certeza instantânea. No seio da Igreja, a conversão estava implícita e a pressão era evidente. Dos 15 aos 18 anos, frequentou campos de férias com freiras onde a ideia era deixar de ser lésbica, porque a mãe “acreditava que era o melhor”.
“Foram semanas intensas e eu saía de lá a pensar que era hetero [heterossexual] e que ia continuar este caminho. Tudo fazia sentido.” Em dezembro, a ideia já era outra. “Sou lésbica e isto não está a funcionar”, pensava Carolina. A linha entre a pressão e a conversão é ténue.
As terapias de conversão foram recentemente criminalizadas, em Portugal. De acordo com o departamento de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), esta prática tem como objetivo mudar tanto a orientação sexual, como também a identificação de género. Estas “terapias” podem ser praticadas em diferentes ramos da sociedade e as mazelas não são apenas psicológicas, uma vez que os sujeitos estão muitas vezes sujeitos a terapias de eletrochoque - medicação que induz o vómito - e até a exorcismos. Do ponto de vista religioso, sobressai a ideia de que qualquer desvio da sexualidade normalizada é inerentemente pecaminoso.
A 21 de abril deste ano, vários partidos apresentaram propostas no sentido de proteger os direitos da comunidade LGBTI. O Partido Socialista (PS) apresentou um projeto de lei destinado a criminalizar as práticas de terapia de conversão sexual, que foi aprovada com os votos do PS, Bloco de Esquerda (BE), Partido Social-Democrata (PSD), Iniciativa Liberal (IL), Pessoas-Animais-Natureza (PAN) e Livre.








Carolina não foi sujeita a nenhum tratamento destes, mas a pressão dos pais para ir aos campos de férias falava mais alto. A jovem gostava desse campo de férias. Lá, podia pegar na sua guitarra clássica e combinar melodicamente as cordas de bronze e nylon com as caras que tinha vindo a conhecer nos anos anteriores.
Aos 19 anos, foi impedida de voltar a participar neste retiro. O motivo era, aparentemente, inofensivo: já tinha uma idade que não justificava a sua participação nos campos de férias; era preciso dar espaço aos mais novos. Aceitou a justificação com alguma relutância, mas a dúvida remoía-lhe a consciência. “Era sempre uma desconfiança porque nessa altura eu já estava meio assumida, já tinha uma relação, apesar de a minha expressão de género ser mais feminina.” No retiro organizado pouco depois desse campo de férias, voltou a tentar inscrever-se, desta vez por telefone. A resposta foi direta e sucinta: “Vamos falar sobre sexualidade e portanto não queremos que tu venhas”.
A rejeição levou Carolina a afastar-se da Igreja: abandonou o coro da paróquia, mas não conseguiu deixar de ir à missa, optando sistematicamente por “ficar mais para trás”, nas últimas filas.
Escolheu viver a fé sem entraves de terceiros. Se antes a participação menos ativa na Igreja se devia à resistência que aí encontrava, o motivo agora é a distância. A viver em Lisboa, tenta assistir à missa através do ecrã do telemóvel. Agora, as visitas à igreja de Estarreja ficam guardadas para as datas mais importantes do calendário católico. Todos os Natais e Páscoas faz questão de partilhar os dias com a família e aproveita para regressar ao coro, onde agora é recebida com um caloroso “precisamos de ti”.
A vontade de servir fala mais alto
“A partir de uma certa altura da minha vida nunca escondi que era lésbica. Na minha entrevista de emprego tinha uma bandeira LGBT atrás de mim”, conta. Carolina trabalha hoje para a Jerónimo Martins, na Azambuja, mas o seu percurso profissional começou precisamente em Estarreja, com um estágio profissional na mesma empresa.
O receio dos pais sobre o seu insucesso profissional passou a ocupar menos espaço. Os estarrejenses reconhecem-na como uma profissional que serve o outro com entusiasmo. “É na minha paróquia, na minha cidade, que as pessoas à minha volta começam a ver quem é que eu sou e a comunicar com os meus pais”, recorda. “Fui atendida pela Carolina e gostei muito”, são palavras que tranquilizam os pais assustados com o futuro da filha. A ideia de que a jovem pode não ser bem sucedida por ser lésbica não é já tão premente.
Bordado no colete, Carolina exibe a forma de um arco-íris que lhe foi oferecido por uma cliente; um gesto que relembra com frequência.
São mais de um milhão e meio de pessoas que se vão juntar na capital portuguesa para a Jornada Mundial da Juventude – um número sem precedentes para um evento em Portugal. Entre os dias 1 e 7 de agosto, Carolina vai ser mais uma a partilhar a sua fé com os jovens que chegam de todo o mundo. Embora nunca tenha participado em nenhuma das edições anteriores, fez questão de se inscrever como voluntária na área de logística. “Se é em Portugal, vou servir”, reforça. Mais do que um momento de encontro com outros crentes, espera que a Jornada seja uma oportunidade para promover o convívio com jovens com diferentes orientações sexuais e expressões de género que, como ela, mantiveram uma relação próxima com a religião católica.
Foi a vontade de servir o outro que dispôs Carolina Moutela para a ação. “Queria fazer ativismo, falar sobre não querer que ninguém mais passe por aquilo que eu passei”. Num encontro de jovens da Rede Ex Aequo ouviu histórias iguais à sua. Em 2022, integrou a associação, onde ajuda a quebrar o isolamento dos jovens e promove o acesso a uma educação para as questões da orientação sexual e identidade e expressão de género. A compatibilidade entre a sexualidade e a religião não cabe no trabalho feito pela Rede Ex Aequo, que se compromete a ser laica e apartidária. É nas redes sociais que Carolina encontra o espaço para a interseccionalidade.
Carolina Moutela construiu uma presença digital ativa de olhos postos nas pessoas LGBTI e católicas. Quem procura respostas às suas dúvidas ou um modelo a seguir, conversa com a jovem através das redes sociais. “Eu não era extrovertida, eu não era alegre. A partir do momento em que eu mudo a minha expressão de género, e começo a fazer este ativismo, as pessoas orgulham-se de mim”, congratula-se.
Agora, o telemóvel toca com mais frequência e a jovem responde à mais recente notificação para conversar com aqueles com quem partilha a fé.
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Créditos
Texto de Constança Vilela com João Santos e Margarida Alves, alunos de Jornalismo na Escola Superior Comunicação Social (ESCS)
Vídeo Margarida Alves e João Santos
Edição de Vídeo Constança Vilela, João Santos e Margarida Alves
Fotografias Margarida Alves
Webdesign João Melancia
Apoio web João Melancia
Coordenação Marta Gonçalves, Pedro Candeias e Vera Moutinho, docente Jornalismo Multimédia da ESCS
Direção João Vieira Pereira
Expresso 2023