"Há barreiras mas não há limites"

Iron Brothers: a história de dois irmãos, uma prova de 226 km e uma luta por mais inclusão no desporto

A causa

“Eu não sou o protagonista desta história, é o meu irmão. É a voz dele.” Miguel Ferreira Pinto tem 35 anos, é advogado, irmão a tempo inteiro, atleta, e está no Passeio Marítimo de Algés, em Lisboa, a preparar-se para mais um treino: dali a uns dias, vai a Hamburgo participar no IronMan 2022, o campeonato europeu de triatlo e uma das provas desportivas mais exigentes do mundo: 3,8 quilómetros a nadar, 180 quilómetros a pedalar, 42,2 quilómetros a correr.

Outros 15 atletas portugueses vão participar no IronMan, mas só Miguel faz parte de uma equipa: os Iron Brothers. Pedro, o seu irmão mais novo com paralisia cerebral, também vai. O distúrbio não é um entrave à participação na prova, mas sim o motivo da ida à Alemanha: “Há centenas de pessoas que se reveem nele para tornar o desporto mais participativo e inclusivo”, diz Miguel.

Pedro assume essa responsabilidade, mas é “tímido”: não dá confiança a estranhos imediatamente, escolhe bem o timing das suas intervenções, prefere recorrer ao irmão para passar as mensagens verdadeiramente importantes: “Ele vestiu muito esta camisola, porque um dos grandes objetivos [dos Iron Brothers] é a angariação de fundos para a Associação de Paralisia Cerebral de Lisboa (APCL)”, explica Célia Carmona, psicóloga que acompanha Pedro no Centro de Reabilitação de Paralisia Cerebral Calouste Gulbenkian. Atualmente, a paralisia cerebral afeta dois bebés em cada mil em Portugal.

"Onde vai um, vai o outro e vamos todos juntos até ao fim"

Os dois irmãos são inseparáveis - e irrequietos - desde sempre, contam os pais. "O Miguel começou a vida a brincar deitado debaixo da tábua de engomar", diz o pai, Fernando. Mas depois Pedro nasceu, e a sua cadeira de rodas passou a ser o local preferido de ambos para as brincadeiras de infância.

Agora, Pedro está a preparar-se para entrar na piscina que os pais construíram no jardim da casa da família em Carnaxide, onde nada cerca de uma hora, duas vezes por semana. O espaço é coberto e adaptado às suas necessidades de mobilidade, o calor é abrasador, a água está a 32º por uma questão de “conforto”.

“Ele já está muito confortável dentro de água. O objetivo é dar-lhe mais qualidade de vida, para que ele faça movimentos que fora de água não consegue fazer”, explica Bruno, professor de natação de Pedro há 18 anos, enquanto o segura. “Na cadeira ele está sempre muito tenso.”

Com todo o corpo dentro da piscina e apenas a cabeça de fora, Pedro não perde tempo em responder. “Estás a chamar-me gordo!”, acusa. “Gordo não, só velho”, responde o professor, e o Iron Brother não se fica: estica o pescoço para cima e tosse várias vezes na direção de Bruno. “Hey, não tussas para cima de mim!”, pede, enquanto os exercícios continuam a ser feitos.

Aluno e professor tratam-se com cumplicidade, a relação é visivelmente longa e saudável. “Ele é traquina”, diz Bruno, e também isso é visível no rosto de Pedro: o sorriso não é neutro, o olhar parece aluado, mas não é, as palavras que diz são raras e escolhidas a dedo. 

Os exercícios na água são sobretudo de força e flexibilidade. Não parecem difíceis, mas são: Pedro vai tentando esquivar-se como pode ao esforço, não se estica sempre o máximo que pode, e como qualquer aluno “preguiçoso” ouve as reclamações do professor quando isso acontece. “Braços e pernas ao mesmo tempo, vá lá. Andamento! Isso. Qualquer dia és tu a puxar pelo teu irmão”, vai incentivando o professor. “[O Bruno] é um fofo”, comenta Pedro a flutuar na água. 

A preparação é profissional, a monitorização é extensa: Miguel tem um sensor de glicose colado ao corpo (idêntico ao usado por diabéticos), outro para medir os ritmos cardíacos, e é capaz de explicar em detalhe porque é que um suplemento é melhor que o outro. Quando lhe perguntam se costuma comer durante a prova, sorri com a ingenuidade da questão. “Estamos 16 horas em prova. Se não me alimento… não tenho hipótese”, responde, antes de lembrar uma das últimas provas: a maratona de Sevilha, que realizou poucos dias depois de ter tido covid-19: sentia-se bem mas não comeu o suficiente, e por isso o corpo começou a desistir ao quilómetro 30.

Mas os últimos anos têm mostrado que os Iron Brothers não desistem: apesar da fraqueza, os dois irmãos terminaram a prova e conseguiram melhorar o seu tempo. E a maratona de Sevilha também foi especial por isto: Pedro e Miguel viajaram sozinhos de avião até à cidade espanhola. “Normalmente, os nossos pais ou amigos vão connosco. Mas, dessa vez, queríamos ter uma experiência só nossa, entre irmãos. E foi incrível”, explica Miguel. 

Essa recuperação de Sevilha não seria possível sem o contributo de Pedro. “Ele tem crescido muito em todas as áreas. A nível de maturidade psicológica, determinação, persistência em ultrapassar as dificuldades. E até do seu egocentrismo: tudo funcionava à volta dele, mas ele tem olhado muito mais para o que está à sua volta”, explica Célia Carmona, que se apressa a desmistificar a condição de paralisia cerebral: “Vermos um corpo com grandes limitações físicas por vezes faz com que tenhamos menos expetativas em relação à pessoa, o que não acontece. Eles têm muitas capacidades, muitas competências, há uma grande heterogeneidade de casos… E são felizes: têm os seus projetos de vida e as suas realizações.”

Embora se estejam a preparar para uma missão impossível para a esmagadora maioria dos mortais, os dois irmãos raramente treinam juntos. E este é um dado importante: Pedro e Miguel fazem triatlo há quatro anos e já realizaram várias provas, mas nunca sabem se estão realmente preparados para a seguinte — só no próprio dia. 

A prova

São 5h30 da manhã no centro de Hamburgo e centenas de atletas vão aquecendo o corpo contra o sol: estão prestes a entrar num lago urbano para nadar 3,8 quilómetros e começar o longo processo de se tornarem homens de ferro. A multidão de familiares e amigos dos atletas está entusiasmada, há bandeiras de países de todos os cantos do mundo, o ritmo da música eletrónica ajuda ao ambiente festivo. 

A comparação que se segue é incompleta — não contempla as inclinações e depressões do terreno, não contempla o vento nem o sol, não contempla o cansaço — mas a sua matemática ajuda a explicar a dimensão do desafio: Miguel e Pedro preparam-se para percorrer 226 quilómetros sem parar, sensivelmente a mesma distância que vai da casa da família em Carnaxide até Badajoz, Espanha.

“Devia ter dormido mais uma horinha ou duas, mas que se lixe”, diz Miguel quando lhe perguntam se se sente bem e preparado. O atleta português está em stress, a logística dos Iron Brothers é exigente, mas os seus sorrisos vão ficando mais rasgados com o aproximar da partida. “Qualquer coisa tu grita, puto. Eu não consigo olhar para trás”, diz ao irmão, quando os primeiros atletas (profissionais) já saltaram para dentro do rio e os restantes se vão aproximando da água à espera do sinal de partida.

Há muitas coisas passíveis de serem o foco de atenção dos pais dos Iron Brothers — o equipamento dos filhos, as condições de segurança do barco onde Pedro irá competir —, mas o foco da mãe é mais emotivo do que prático: “Foi uma infância feliz… Sou uma sortuda”, diz Teresa, quando está prestes a separar-se dos filhos. 

Os Iron Brothers são uma de duas “special teams” (equipas especiais, com mais do que um elemento) que vão competir este ano: a outra veio da Polónia, e o anfitrião da prova faz uso do microfone para mostrar carinho às duas duplas. Pouco tempo depois, Miguel dá um abraço apertado ao pai, encaminha-se com o irmão para a água e os dois começam a prova. 

Faltam cerca de 15 minutos para as 9h00 e os dois irmãos já estão de regresso ao ponto de partida, rasgando a água e uma das pontes do centro da cidade, continuando a ultrapassar muitas das toucas verdes que começaram com largos minutos de avanço. A natação já está, foi completada em 1h28m42s, e familiares e amigos dos outros atletas dão a Miguel e Pedro a melhor ovação da manhã.

Durante a transição entre a água e a bicicleta (a pé), Pedro começa a escorregar na cadeira: os espectadores ficam apreensivos, Miguel pára a marcha e aproxima-se do irmão, evita que ele caia, aperta o cinto uma segunda vez, “ele agora está bem”. E volta a ser notório que os Iron Brothers já conquistaram fãs em Hamburgo. 

Segue-se a parte mais longa e exigente da prova: duas voltas de um percurso que se estende além da cidade e até aos subúrbios bucólicos de Hamburgo, num total de 180 quilómetros sempre a pedalar. O Expresso acompanhou o início do percurso, mas rapidamente perdeu de vista os dois irmãos: só os voltou a ver perto das 13h, noutra zona da cidade, durante uma subida particularmente acentuada e amplificada pelo calor: Miguel continua sorridente, agradece os incentivos, acena afirmativamente quando lhe perguntam se está bem.

As horas passaram, o vento alemão cresceu, o stress foi aumentando: todos os atletas precisam de cumprir as etapas da prova num determinado tempo, sob pena de serem desqualificados. “Ele vai ficar tão triste se não conseguir. Foi o ano todo a trabalhar para isto…”, desabafa Maria, mulher de Miguel, numa fase em que já não é possível conter os nervos. 

Os movimentos dos Iron Brothers são acompanhados ao minuto pela família através do sistema GPS da prova, e Fernando, o pai, dá o mote às 16h20: “Eles têm 30 minutos para fazer 12 quilómetros, ou são desqualificados”. “Temos aqui meia hora de sofrimento”, diz um dos jornalistas. “Ah pois temos”, responde o pai, de olhos postos na esquina de onde os filhos tardam a aparecer.

Mas eles aparecem. Chegam estafados, sem saberem se conseguiram ou não, maldizendo o vento, mas chegam. E têm o poder de emocionar estranhos: uma funcionária da organização da prova sai do seu posto, aproxima-se da dupla, agradece aos dois irmãos com as lágrimas nos olhos. Fernando e Teresa também estão emocionados, mas não têm o luxo de um festejo demorado: o tempo de transição é curto e é necessário ajudar os filhos a prepararem-se para a corrida.

"Antes partir que torcer"

Mais do que em qualquer altura da prova, os momentos que antecederam a transição entre a bicicleta e a corrida provam algo que já se sentia: Miguel e Pedro têm o privilégio da família. O apoio do pai e da mãe é constante e traduz-se invariavelmente em esforço físico, stress acumulado, decisões certeiras que são tomadas em poucos segundos — como se também fossem desportistas de alta competição.

Toda a família Pinto Ferreira é uma equipa altamente treinada e preparada, mas isso não apaga um facto óbvio: vencido o tempo e o fantasma da desqualificação, Miguel e Pedro estão agora a começar uma corrida de 42,2 quilómetros. Estão cansados e estarão sozinhos durante o percurso que, no melhor dos cenários, se vai prolongar por várias horas. Teresa e Fernando podem e vão sofrer à distância — mas pouco mais podem fazer. 

E este é um ponto crucial para perceber o esforço de Miguel. O apoio da família está lá, o apoio comercial também, a atenção mediática idem (além do Expresso, a SIC também acompanhou esta prova). No entanto, este suporte não se traduz propriamente em ajuda física para completar uma prova de 226 quilómetros por baixo do calor de Hamburgo. 

Por outras palavras: Miguel quer ser “a voz” de Pedro e de todas as pessoas com paralisia cerebral, quer tornar o desporto mais inclusivo, quer fazer a diferença. Todos estes objetivos são meritórios, mas também são banais: felizmente, o mundo está repleto de ativistas disponíveis e capazes de lutar por causas nobres. Miguel poderia ser uma voz a favor da mudança sem mexer um único músculo — e provavelmente seria bem-sucedido.

Por isso, nenhum destes objetivos responde à pergunta que o Expresso fez recorrentemente durante o tempo que acompanhou o treino e a prova dos Iron Brothers: o que é que move um homem a preparar-se durante anos para um esforço sobre-humano que poucas pessoas estariam dispostas a fazer? 

Já passaram vários dias desde que a competição terminou e a família regressou a Portugal, mas a resposta continua a não ser óbvia. Correndo o risco de estar errada, a melhor hipótese será a mais simples — e está visível nos filmes caseiros que abrem o primeiro vídeo desta reportagem: Miguel corre por amor ao irmão e Pedro compete exatamente pela mesma razão. Mais do que para alertar para a inclusão de pessoas com deficiência, os dois irmãos começaram esta aventura pelo simples prazer de partilharem a vida um com o outro — como fazem desde que se conhecem. Nesse sentido, completar o IronMan não é nada de extraordinário: apenas um prolongamento natural de uma ligação umbilical que existe há mais de 30 anos.

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À espera que os filhos completem a primeira de quatro voltas a correr, Fernando fala dos momentos de nervosismo durante a transição da bicicleta para a corrida. “Sobre a situação de há bocado… Se há coisa que eu não quero é mostrar às pessoas que isto é uma choraminguice”, diz, referindo-se às lágrimas que se soltaram depois de Pedro e Miguel terem deixado a bicicleta para trás e começado a correr. 

Fernando quer voltar a sublinhar que o importante na história dos filhos é a mensagem de inclusão, mas a eletricidade nervosa do seu corpo leva-o ao passado — “O Miguel começou a vida a brincar deitado debaixo da tábua de engomar” — e ao presente: o avô de Pedro e Miguel morreu em janeiro, Pedro era muito próximo dele, ficou bastante afetado, não teria sido capaz de fazer o luto sem o apoio psicológico que recebe. 

Pedro e Miguel têm quatro voltas para completar, são 42,2 quilómetros de corrida no total, e quando passam pela família a preocupação é uma: se o sistema GPS da prova continua a localizá-los, se a tecnologia ainda considera que eles estão a competir. E estavam: Miguel correu, desacelerou, conversou com outros atletas, inventou “novas formas de andar” quando o corpo começou a acusar o tempo. 

Mas conseguiu. O momento em que os dois irmãos cruzam a meta com a bandeira da APCL e recebem as respetivas medalhas é apenas a confirmação de que o objetivo inicial foi cumprido. Portugal soube logo a boa notícia: “Está feito. Acabou. Está tudo bem”, diz Fernando ao irmão, num telefonema de rescaldo curto. 

Voltemos ao “dia perfeito” avançado por Miguel no final da conversa com o Expresso, na sua casa em Carnaxide: “Se tudo correr bem, 1h15 na água, cinco minutos de transição, 7h e pouquinho na bicicleta, cinco minutos de transição, 4h30 na corrida. Este era um dia perfeito.” Resultado final: 1h28m42s na água, 7h40m53s na bicicleta, 4h50m36s na corrida, um total de 14h28m39s em prova. A matemática é diferente, o dia revelou-se perfeito na mesma e a psicóloga Célia Carmona resume assim a experiência dos Iron Brothers na Alemanha — e também a vida de Pedro: “Há barreiras mas não há limites.”

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Créditos

Texto Tiago Soares
Vídeo Rúben Tiago Pereira
Fotografias Rúben Tiago Pereira e Pau Storch
Infografia Jaime Figueiredo e Carlos Esteves
Webdesign Tiago Pereira Santos
Apoio web Maria Romero
Coordenação Diogo Pombo, João Pedro Barros e Joana Beleza
Direção João Vieira Pereira

Expresso 2022

O Expresso viajou a convite da Betano, patrocinadora dos Iron Brothers