“Quando víamos um cadáver na rua tirávamos um pedaço de carne para cozer”: 90 anos do maior crime soviético sobre a Ucrânia
Pelo menos 3,9 milhões de ucranianos morreram à fome em 1932-33. Se juntarmos os bebés que morreram no útero das suas mães grávidas, esse número ascende aos 4,5 milhões. As políticas económicas de Estaline espalharam graus diferentes de miséria por quase toda a URSS, mas na Ucrânia a fome foi corretivo desenhado para subjugar um povo que sempre tentou resistir.

O que aconteceu ao riso
e às fogueiras que as meninas
costumavam acender na véspera do solstício de verão?
Onde estão as aldeias ucranianas,
e os pomares de cerejeiras junto às casas?
Tudo desapareceu num fogo voraz
As mães devoram os seus filhos,
homens loucos vendem carne humana
nos mercados.
Excerto do poema de Oleksa Veretenchenko "Algures no Norte Distante e Selvagem" (parte de uma série de poemas escritos em 1933, publicados em 1942-43 na revista "Nova Ukraina")
Sopa de cascalho e bolinhos de ervas daninhas, caldo dos ossos dos animais de estimação. Crianças de barrigas inchadas, corpos inertes pelas estradas, nos passeios, nas escadas das casas. As pessoas rastejavam para os campos de trigo para comer espigas antes de morrer. Morriam de fome no ato de comer, porque o corpo há muito deixara de conseguir processar alimentos. Crianças desmaiavam e morriam por cima das carteiras nas salas de aulas. Um casal abriu um buraco fundo e deixou lá os seus filhos, para não os ver morrer. Essas crianças foram salvas. Muitas outras fugiram dos seus pais depois de assistirem ao assassínio dos irmãos mais frágeis. No final de 1933, quem ainda estava vivo cortava pedaços de músculo dos mortos que caíam no meio da rua e isso deixou de ser insólito, apesar de sempre ter sido punido, quando as pessoas eram denunciadas.
Assim foi a vida na Ucrânia entre 1932 e 1933. Estes relatos e milhares de outros podem ser lidos em livros, teses de doutoramento, atas do Congresso dos Estados Unidos e todas as páginas que os principais centros de investigação académica sobre assuntos ucranianos mantêm na Internet. São vastíssimos os arquivos de testemunhos de vítimas do Holodomor: holod (fome) e mor (morte em massa, como uma praga), momento histórico que a Ucrânia e outros 17 países do mundo, incluindo Portugal, consideram um ato de genocídio por parte do Governo da União Soviética de Estaline.
A discussão, na academia, não está fechada. O Parlamento Europeu e as Nações Unidas consideram o Holodomor um crime contra a Humanidade, e muitos estudiosos concordam que a fome de 1932-1933 foi fabricada pelo homem, mas não creem que existam provas suficientes para afirmar que os ucranianos foram martirizados pelo facto de serem ucranianos, requisito para a classificação de genocídio.
Nenhum investigador sério conseguiu, até agora, argumentar que a fome que assolou a Ucrânia foi provocada por catástrofe natural, vírus inclemente ou situação de guerra — porque não foi. Estaline fez aprovar uma série de diretivas que levaram 3,9 milhões de pessoas (e cerca de 600 mil crianças por nascer) a encontrar a sua morte, evitável. A tragédia poderia ter sido mitigada em diversos momentos, mas Estaline não estava disposto a ceder. No início de 1933, rodou ainda mais a faca no torso esquelético do povo ucraniano.
Os hábitos culturais herdados do tempo da fome são visíveis no comportamento das famílias em relação à comida, passados quase 100 anos, quando a maioria já não passa fome. Lyudmyla Kozlovska, fundadora da ONG Open Dialogue, cresceu com uma avó que viveu os piores dias do Holodomor. Morreu em 1992, depois de lhe ensinar que comer é privilégio. “Dizia-me: ‘Naquela altura tínhamos de defender a comida e esconder-nos debaixo do solo, em silêncio total, não fosse alguém bater à porta para tentar encontrar comida’”, conta a ativista. A sua mãe herdou parte desse terror. “Sempre comprou muita comida para armazenar. Quando era mais pequena, perguntava porquê e respondia-me que é preciso ter muita comida, porque pode vir alguém e levar quase tudo.”
Mortes diretamente causadas pela fome por distrito (de 1932 a 1934)
No final de 1933, os distritos de Kiev e Kharkiv tinham perdido, cada um, cerca de um milhão de habitantes. Os maiores produtores de cereais nas planícies ucranianas, Odesa e Dnipropetrovsk, perderam, cada um, cerca de 350 mil pessoas, uma diferença considerável. Menos afetado foi o Donbas industrial, onde 175 mil seres humanos morreram de fome em 1933. As áreas planas sofreram menos com a fome do que as zonas de floresta, porque não tinham passado um período de fome tão severo em 1932.
De resto, se a situação se tornasse insuportável, os camponeses no sul e sueste poderiam tentar encontrar refúgio, emprego, caridade, nas áreas urbanas e mais industrializadas de Zaporíjia, Kryvyi Rih e no Donbas. “Além disso, na primavera de 1933, o Governo de Moscovo estava muito mais disposto a conceder alívio no abastecimento de cereais ao sul da Ucrânia do que ao centro: Moscovo precisava de mais cereais e de manter as pessoas vivas nas principais áreas produtoras, era a única forma de alcançar as metas. Os outros podiam ser abandonados à morte, e foram”, escreve o historiador Serhii Plokhy na explicação anexa à coleção de mapas sobre o Holodomor que resultou da investigação do Instituto de Investigação para a Ucrânia da Universidade de Harvard e do demógrafo Oleh Wolowyna, diretor do Centro de Estudos Demograficos e Investigação Socioeconómica da Fundação Científica Shevchenko, em Nova Iorque.
No total, 3,9 milhões de pessoas morreram na Ucrânia como consequência da fome, entre 1932 e 1934. Uma em cada oito sucumbiu à fome, incluindo 600 mil crianças geradas que não chegaram a nascer.


As fomes que atingiram a URSS a partir de 1931 foram resultado direto das políticas económicas adotadas desde o final de 1929 — coletivização, requisição de cereais e gado para financiar a industrialização, perseguição aos agricultores que não quisessem participar em cooperativas, entre outras medidas que fizeram baixar a produção de forma drástica, como, de resto, já tinha acontecido noutras zonas da URSS assim que se deu início à expropriação bolchevique depois da Revolução de 1917.
Nova política, velha política
Vladimir Lenine, líder da Rússia entre 1917 e 1924 (URSS depois de 1922) fora testemunha dessas políticas e, em março de 1921, decidiu arredondar as arestas mais duras das leis de expropriação e coletivização em vigor. Voltou a conceder alguns direitos de exploração privada aos agricultores. Chegava a era da Nova Política Económica (NEP, na sigla inglesa), que acabou com a prodrazvyorstka (requisição obrigatória de cereais) e implantou antes o prodnalog (imposto sobre os agricultores, pagável em produtos agrícolas).
Já o seu sucessor, Josef Estaline, chegou ao poder (1924) com objetivos praticamente antitéticos. Com a recém-formada União Soviética envolta numa crise económica avassaladora, Estaline não podia deixar o seu próprio círculo passar fome. Havia que alimentar Moscovo, os membros do Politburo e todo o aparelho estatal. Além disso, o líder da URSS queria uma sociedade industrial — não agrícola — e serviu-se da milagrosa fertilidade dos solos ucranianos para extrair os cereais de grande qualidade que vendeu no estrangeiro, mesmo durante os meses em que a fome foi mais aguda.
A relativa autonomia cultural e económica da Ucrânia passou de ser considerada condição essencial à preservação da URSS unida para ser vista como ameaça que poderia fazer reemergir, a qualquer momento, mais revoltas pela independência ucraniana, como as várias que se tinham sucedido desde o início do século. Temendo o fim da União Soviética, Estaline começou a conjeturar formas de sangrar essa seiva insurgente que resistia na Ucrânia e que ele acreditava residir principalmente entre os membros do campesinato.
“Nenhum deles tinha culpa de nada; mas pertenciam a uma classe que tinha culpa de tudo”
Ilya Ehrenburg, escritor russo, 1934
Por esta altura tiveram início os chamados "Planos Quinquenais" (o primeiro funcionou entre 1928 e 1932), cujo objetivo era fomentar a criação de uma sociedade maioritariamente industrial, financiada pela venda de cereais e produtos agrícolas ao estrangeiro.
Estes planos reverteram a NEP de Lenine e passou a ser incentivada a criação de kolkozes (quintas coletivas), que resultaram da fusão de pequenas explorações. Os maiores proprietários foram apelidados kulaks, ou "punhos", numa tradução literal, pedras na progressão do grande arado socialista, e acusados de sabotar os planos de coletivização por não aceitarem entregar as suas terras, os seus cereais, os seus animais. Na verdade, dali a poucos meses, haveriam de aceitar a bem ou mal, como todos.

“Não és membro da cooperativa! Inscreve-te imediatamente!” 1927-1928. Heritage Images/Getty Images
“Não és membro da cooperativa! Inscreve-te imediatamente!” 1927-1928. Heritage Images/Getty Images
“O Holodomor foi uma opção. Foi um crime de um regime totalitário. Estaline entendeu que a construção do império soviético seria impossível sem o envolvimento, o esforço, o trabalho dos ucranianos, só que os ucranianos não eram grandes entusiastas do império e há muito que lutavam para não perder as suas próprias identidade e cultura. Moscovo não era então, nem é agora, o centro do mundo para os ucranianos; nós não queríamos então, e não queremos agora, ser russificados. Houve várias revoltas nos anos antes do Holodomor contra as medidas económicas soviéticas, e Estaline apercebeu-se de que tinha de controlar a Ucrânia de alguma forma, porque não seria possível manter o seu poder e a própria URSS sem a Ucrânia”, diz ao Expresso Ivan Petrenko, diretor do Instituto de Investigação para o Holodomor, parte integrante do Museu do Holodomor, em Kiev.
A coletivização estava a ser um êxito, disso não havia dúvidas. Em dezembro de 1929, já 4.311.000 agregados familiares estavam organizados em coletivos agrícolas. Ao milhão de domicílios incluídos na primeira vaga de adesões, em 1 de junho desse ano, seriam adicionados outros 3.311.000 entre julho e dezembro. Em seis meses, estavam coletivizados quase 25 milhões de pessoas, de uma população total de agricultores perto dos 125 milhões. Um quinto do campesinato. A 20 de fevereiro de 1930, o partido anuncia números ainda mais impressionantes: a coletivização atingira 50% de todas as famílias camponesas.
A requisição forçada de cereais não é posterior ao esforço de coletivização. Começa antes, mais ou menos a meio do ano de 1929. O requerimento em si não era novidade. Novo era o facto de estar a ser instituído como medida permanente, e não apenas como emergência. Cada quinta passou a ter as suas metas de colheita, mas os camponeses, que exploravam individualmente as suas terras, também tinham as suas. Era o regresso da tal prodrazvyorstka com que Lenine quisera acabar. Era agora Estaline quem ressuscitava as práticas próprias dos czares da Rússia imperial, que os bolcheviques tanto tinham lutado para derrubar.
Liquidar o kulak
A ideia subjacente era clara: dizimar os kulak como classe social, dissera o próprio Estaline a um grupo de académicos marxistas, meses antes. Até então, mesmo os camponeses com mais posses, mais terras, mais gado, tinham autorização para ingressar as quintas coletivas, caso o desejassem. Mas o líder da União Soviética não queria, ou achava que não precisava, da sua colaboração. No sentido de reforçar quer as requisições quer a punição aos kulaks, o Politburo aprovou a criação de uma comissão de 21 membros, divididos em oito subcomissões, que iriam ocupar-se das diferentes fases da coletivização forçada — incluindo a vigilância destes proprietários.
Porém, o projeto que foi aprovado em plenário não era do agrado de Estaline, que o julgou condescendente, precisamente, com os kulaks. Como explica no livro “Pobreza, Riqueza, Ditadura, Democracia: Escassez de Recursos e as Origens da Ditadura” o académico Jack Barkstrom (1944-2018), o decreto dividia esta classe de camponeses “abastados” (posse de dois cavalos e/ou duas vacas era a medida de avaliação em vigor) em três categorias. Para cada uma Estaline instituiu um castigo específico, mais severo do que aquele que tinha sido inscrito no decreto original.

“Kulak sanguessuga: “O que é que a mim me importa a fome?” Coleção Privada Heritage Images/Getty Images
“Kulak sanguessuga: “O que é que a mim me importa a fome?” Coleção Privada Heritage Images/Getty Images
Os mais perigosos de todos eram os que se envolviam em atividades subversivas, ou seja, camponeses que organizavam revoltas. Para esses (cerca de 60 mil agregados, estimou o partido), Estaline estabeleceu a pena de morte como castigo máximo, mas a prisão também estava autorizada. Para o segundo grupo (150 mil agregados), os que mostravam objeções à forma como a coletivização era feita ou reclamavam contra a quantidade de cereais exigida seriam enviados para regiões distantes como a Sibéria, Cazaquistão ou montes Urais. Ao último grupo pertenciam cerca de 800 mil agregados, os que tinham aceitado integrar o coletivo mas não podiam ser considerados adeptos “seguros” do comunismo, uma vez que tinham pertencido anteriormente à classe abastada. A esses era dada uma pequena terra para cultivarem, mas também estavam obrigados a cumprir as metas de entrega de cereais estabelecidas para cada terreno individualmente.
Além de tudo isto, os prazos para atingir os objetivos da coletivização foram severamente encurtados por Estaline, que queria ver 65% a 75% de todo o esforço completado, nas áreas de planície, até ao fim do ano agrícola 1930-31. Para as outras áreas da Ucrânia a fasquia fixava-se nos 35% a 45%.
Por si só a coletivização não explica as mortes no Holodomor, porque o sul era muito mais coletivizado e foi onde morreram menos pessoas. A coletivização tem outras consequências, como o desequilíbrio económico-social entre as quintas não-coletivizadas, que não tinham acesso a qualquer maquinaria agrícola moderna, ou a empréstimos ou mercados lucrativos.
Ainda sobre as modificações de Estaline, é importante apontar que a alínea que permitia aos camponeses ficarem com pequenos animais, como galinhas, foi eliminada, tal como qualquer possibilidade de apresentar queixa por confisco exagerado ou indevido de propriedade agrícola. Deixou de ser possível a um agricultor abandonar a quinta coletiva depois de ter aderido.
O número oficial de famílias deportadas estabeleceu-se nas 381 mil — cerca de 1,5 milhões de pessoas. Alguns estudiosos consideram este número demasiado conservador e apontam para uma deportação de cerca de três milhões de pessoas. Deportados ou expropriados, a maioria dos académicos concorda que a dekulakização levou a que cerca de 15 milhões de pessoas ficassem sem casa. Alguns conseguiram encontrar outras formas de sustento, na construção civil, por exemplo, mas cerca de um milhão seguiu para campos de concentração, ainda segundo a investigação de Jack Barkstrom.

Kulak, aqui um porco forte, e o padre: dois inimigos do socialismo Foto: Fine Art Images/Heritage Images/Getty Images)
Kulak, aqui um porco forte, e o padre: dois inimigos do socialismo Foto: Fine Art Images/Heritage Images/Getty Images)
Além das deportações, perseguições e saques a que estavam sujeitos, Estaline decidiu instaurar um método com provas dadas no Donbas industrial: as listas negras para as vilas onde a existência de kulaks que resistiam à coletivização estava a fazer baixar os níveis de toneladas recolhidas de determinada região. No fim de 1932, metade de toda a Ucrânia, 79 distritos, estava no quadro dos incumpridores, pelo que não podia, por exemplo, comprar ou vender qualquer tipo de produtos, incluindo sal, querosene e fósforos.
Além dos produtores de cereais, que também na Rússia e noutras regiões da URSS podiam e tinham sido incluídos em listas negras, na Ucrânia qualquer pessoa ou entidade podia figurar nestes editais da vergonha: enfermeiros e artesãos, por ligações familiares a kulaks; empresas de conserto de maquinaria, madeireiras, fabricantes de utensílios para a casa. As quintas e empresas na lista negra não podiam receber técnicos para arranjar o material de trabalho e também deixou de ser permitido ter em casa moinhos de cereais, pelo que se tornou mais difícil fazer pão, até porque os fósforos também iam faltando.

"Abaixo os parasitas!" Póster de propaganda soviética contra os kulaks, 1924. Foto: Fine Art Images/Heritage Images/Getty Images
"Abaixo os parasitas!" Póster de propaganda soviética contra os kulaks, 1924. Foto: Fine Art Images/Heritage Images/Getty Images
Avançando para 2022, encontramos Vitaliia Yaremko, ucraniana residente nos Estados Unidos, mais especificamente na Califórnia, onde estuda as consequências desta prática no desenvolvimento económico das regiões ucranianas entre 1992 e 2014. Os resultados são claros, conta ao Expresso: “As listas negras reduziram significativamente a atividade económica das localidades que estiveram sujeitas a esse tipo específico de repressão, mesmo depois de 1991, uma diferença de cerca de 20% em relação às que não estiveram nas listas negras. Isto tem várias razões, claro que algumas nada têm que ver com as listas negras, mas há claras ligações entre esse passado e o desenvolvimento económico. Por exemplo, algumas zonas ficaram fora dos esforços de eletrificação quando ela chegou, uma vez que tinham estado nas listras negras de 1930”. Também o espírito empreendedor é deficitário nas antigas zonas negras. “O número de investidores e empreendedores nestas áreas é menor do que o registado em outras zonas da Ucrânia, o que é explicável pela falta de iniciativa económica. A ideia do Holodomor era domar, abater o espírito dos habitantes do meio rural, proibir a iniciativa privada, forçá-los a seguir regras, instalar o medo.”
Na família não existem vítimas da fome, são todos de Lviv, mas Vitaliia vê muitas semelhanças entre o Holodomor e os atos da Rússia na atual guerra.

Um homem chora numa manifestação realizada na cidade de Donetsk, no leste da Ucrânia, em 2007, quando passavam 75 anos do Holodomor Foto: Alexander Khudoteply /AFP via Getty Images
Um homem chora numa manifestação realizada na cidade de Donetsk, no leste da Ucrânia, em 2007, quando passavam 75 anos do Holodomor Foto: Alexander Khudoteply /AFP via Getty Images
“O regime de Putin inventa histórias para denegrir as pessoas, como na altura dos kulaks. Eram capitalistas usurpadores, agora são nacionalistas e nazis. Outro paralelo é a forma como o Kremlin persegue e castiga, com penas de até dez anos, quem ousa manifestar-se contra a atual guerra, desenhando leis específicas contra pessoas específicas, neste caso as que usam a palavra ‘guerra’ como se fez na altura do Holodomor contra um grupo específico: os camponeses". Mas ainda há outra coisa, bem mais grave, no entender de Vitaliia. "O Kremlin instituiu campos de filtragem para as pessoas retiradas das zonas de conflito da Ucrânia e levadas para a Rússia. São deportações e, como se não bastasse, levam-nas depois para locais muito longe das suas casas, no fim do território russo, como acontecia na altura do Holodomor aos deportados. Nunca na vida imaginei que isto pudesse voltar a acontecer”.
Durante as primeiras semanas de guerra, as forças russas que iam ocupando cidades roubaram os supermercados, furtaram comida de casas particulares, reivindicaram a propriedade de empresas agrícolas na região de Kherson e roubaram toneladas e toneladas de vários cereais, que venderam para financiar a guerra. A agência Associated Press analisou dados de mais de 50 viagens realizadas por navios russos e sírios que saíram de portos de cidades ocupadas com destino à Síria, Líbano e Turquia. O valor destas colheitas está estimado em mais de 530 milhões de euros.

"Por que é que o donos de terras estão a afiar as suas facas e os seus dentes?" Poster de propaganda soviética Foto: Fine Art Images/Heritage Images/Getty Images
"Por que é que o donos de terras estão a afiar as suas facas e os seus dentes?" Poster de propaganda soviética Foto: Fine Art Images/Heritage Images/Getty Images
Ivan Petrenko, do Museu do Holodomor, lembra que o legado desses dias está longe de ultrapassado. “O Holodomor afetou-nos psicologicamente, afetou-nos como nação, sem dúvida. Para a geração que se seguiu a esses anos, o impacto foi enorme, a todos os níveis, o trauma familiar, mas também económico, por causa do confisco de bens de família, das listas negras, etc. Agora, os idosos que ainda viveram parte desses anos ou nasceram de famílias que viveram a fome têm de esperar em filas para o pão, e veem na televisão os cereais presos nos portos do sul, dependentes de autorizações russas para serem distribuídos. É ‘retraumatizante’”.
Um muro à volta da sobrevivência
Em março de 1930, as autoridades anunciaram a coletivização de até 70% de todas as terras cultiváveis, um valor dez vezes superior em relação a 1929. A maioria dos camponeses foi intimada a juntar-se às produções coletivas, mas muitos resistiram. Na primavera de 1930, uma onda de insurreições camponesas submergiu as regiões rurais ucranianas.
Só no mês de março de 1930, as autoridades registaram mais de 1700 revoltas e protestos. Os revoltosos mataram dezenas de administradores e ativistas soviéticos, como relata Serhii Plokhy, historiador e diretor do Centro de Investigação para a Ucrânia da Universidade de Harvard, no seu livro "A Porta da Europa: Uma História da Ucrânia" (Ideias de Ler).
Nas regiões ucranianas perto da Polónia, o êxodo foi quase total. Porém, quem não fugiu até à primavera de 1933 já dificilmente poderia tê-lo feito depois. Estaline recorreu ao exército e à polícia secreta para vigiar todas as vilas e decretou a obrigatoriedade de passaportes internos.
Pelas ruas de Kiev, Kharkiv, Odessa e outras cidades, as miseráveis carcaças da Humanidade arrastavam-se com os pés inchados, implorando por migalhas de pão ou procurando comida em montes de lixo. Estavam enregelados e imundos. Cada manhã, carroças rolavam pelas ruas, recolhendo os restos emaciados dos mortos. Muitas vezes, até as camisas tinham sido arrancadas dos cadáveres para serem trocadas por uma fatia de pão. Aqueles que conseguiram chegar a Moscovo tiveram mais hipóteses de sobrevivência. Ali havia pão, feito de trigo ucraniano; e também era possível comprar alguma comida no mercado negro. A dificuldade era lá chegar. Nos comboios e nas estações, a polícia secreta, com os seus bonés vermelhos e azuis, parava todos os viajantes, exigindo prova de que tinham permissão para viajar. Os que não podiam apresentá-la eram presos. Nessa época, o meu amigo S. trabalhava como assistente no Hospital Revolução de Outubro. Uma noite convidou-me a visitá-lo ao hospital, prometendo-me um espetáculo inusitado. Quando cheguei, levou-me a uma grande garagem que ficava no quintal. Um guarda destrancou a porta e entrámos. S. acendeu a luz e contemplei uma imagem inesquecível de horror. Empilhados como madeira contra as paredes, camada após camada, estavam os cadáveres congelados das vítimas recolhidas nas ruas naquela manhã. Alguns dos corpos, soube mais tarde, foram usados para dissecação e experiências nos laboratórios. O resto foi simplesmente enterrado em valas, à meia-noite, em ravinas próximas, longe da vista das pessoas. “Este, meu amigo”, sussurrou S. suavemente, “é o destino das nossas aldeias”.
Testemunho de Mykola Prychodko no livro "The Black Deeds of the Kremlin" (1953–55)
Qualquer pessoa que precisasse de viajar tinha de obter um passaporte, mas estes não eram emitidos para camponeses, apenas para trabalhadores industriais ou com funções burocráticas no aparelho estatal. Os que tentavam fugir e eram apanhados podiam ser presos, mortos ou devolvidos às suas casas e aos seus terrenos, que já não tinham já forças (ou sementes) para cultivar.
O bisavô de Ivan Petrenko, vice-diretor do Instituto de Investigação sobre o Holodomor, foi um desses camponeses obrigados a fugir, com três filhos e a sua mulher, no início de 1932. A família vivia em Kuban, então nome da região do sudoeste russo que hoje contém as províncias de Adigueia, Carachai-Circássia e parte de Stavropol Krai, e que na altura era habitada maioritariamente por ucranianos. “O meu avô contou-me que a família toda teve de deixar a propriedade e rumar ao norte à procura de emprego. Todos os cereais, animais, provisões tinham sido requisitados”, diz ao Expresso numa entrevista por videoconferência, a partir de Kiev.
Também a família do lado da mãe passou as agruras do Holodomor. A sua avô, que já morreu, contou-lhe um episódio que se passou em Sumy, no nordeste da Ucrânia, quando ela era ainda muito pequena. “Todos os dias, a minha avó e os irmãos dela andavam pela rua à procura de comida. Um dia, ao pé da estação de comboios, a minha avó viu no chão uns restos de peixe ainda com algumas peles e umas lascas de peixe agarradas às espinhas, apanhou tudo e desatou a correr para casa. Fizeram um caldo com espinhas e cabeças”. Por essa altura, tal como aconteceu com milhares de famílias, a sua bisavó vendeu ou trocou por comida quase toda a roupa que a família tinha, pratos, moinhos de farinha, mobília. “Usaram tudo o que havia em casa para conseguirem comer.”
Mesmo quando conseguiam escapar pelo meio de todos os obstáculos, os trabalhadores rurais, como não eram residentes das cidades, não tinham cartões de racionamento, por isso não tinham acesso ao pão e ao leite racionados. Só as cantinas das várias instituições governamentais providenciavam algum tipo de refeições regulares, mas para comer era necessário um cartão de trabalhador de determinado departamento. Muitos sobreviventes comeram nestas cantinas sem identificação, confiaram na sorte; outros também o tentaram mas foram presos ou deportados.
As próprias estatísticas do partido mostravam a dimensão do problema. Em janeiro de 1932, num relatório enviado a Estaline, Vsevolod Balytsky, então ainda chefe da OGPU ucraniana [Obiedinionnoye Gosudarstvennoye Politicheskoye Upravlenie, “Diretório Político Unificado do Estado”], calculou que mais de 30 mil pessoas tivessem deixado o país no mês anterior. Passado um ano, em pouco mais de dois meses (de 15 de dezembro de 1932 a 2 de fevereiro de 1933) quase 95 mil camponeses deixaram as suas casas. Muitos fugiram para a Rússia.
Rapidamente se encontrou solução. Em janeiro de 1933, Estaline e Molotov fecharam as fronteiras da Ucrânia. Qualquer camponês ucraniano encontrado fora do país era devolvido ao seu local de origem. Nenhum bilhete de comboio era vendido a trabalhadores agrícolas. As fronteiras do distrito do Cáucaso do Norte, então Kuban, fortemente ucraniano, também foram fechadas e, em fevereiro, foi bloqueado o distrito do Baixo Volga.
Em poucos dias, a OGPU enviou reforços de Moscovo. Surgiram cordões nas estradas que levavam à Rússia e a todos os países com que a Ucrânia faz fronteira. Entre 22 e 30 de janeiro de 1933, Genrikh Yagoda, chefe da OGPU, disse a Estaline e Molotov que os seus homens haviam capturado 24.961 pessoas em diversas fronteiras, das quais dois terços vinham da Ucrânia e quase todo o restante do norte do Cáucaso. A maioria foi mandada de volta para casa, embora cerca de oito mil estivessem detidos sob investigação policial e mais de mil já tivessem sido presos.
“Os colegas ucranianos de Yagoda estavam ainda mais ocupados. Em fevereiro, relataram que tinham estabelecido uma ‘proibição incondicional de emitir qualquer documento de viagem’, para que nenhum camponês pudesse sair legalmente de sua aldeia. Além disso, criaram ‘patrulhas móveis’ que detiveram mais de 3800 pessoas encontradas nas estradas e mais de 16 mil em estações de comboios”, escreve a historiadora norte-americana Anne Applebaum no seu livro sobre o Holodomor “Fome Vermelha” (Bertrand).
Pergunta: As pessoas estão a sofrer caladas esta fome ou estão a revoltar-se?
Resposta: Como é que se podem revoltar e o que é que conseguiriam se se revoltassem? Sofrem porque perderam toda a esperança. Andam como cegos e caem no chão, onde quer que a morte os atinja. Ninguém presta atenção aos cadáveres espalhados pelas ruas. As pessoas passam-lhes por cima ou contornam-nos e continuam a andar. De vez em quando são recolhidos e enterrados em valas comuns. Setenta e tal pessoas são enterradas juntas.
Pergunta: Já ouviu alguma coisa sobre casos de canibalismo?
Resposta: Como não? Está sempre a acontecer. Uma mãe que matou os filhos quando viu que eles estavam prestes a morrer. Quando vamos na rua e vemos um cadáver, olhamos para ver se há alguém a ver e tiramos um pedaço de carne para cozer.
Pergunta: Qual é a razão da fome? Houve uma seca ou uma colheita má, ou não estão a semear?
Resposta: Houve uma colheita, semeámos e plantámos, mas assim que alguma coisa cresce eles levam tudo embora para Moscovo. Tivemos uma boa colheita este verão, mas o que é que isso nos traz? Trazem máquinas, ceifam e cortam tudo, debulham e não deixam um grão para trás. Levaram tudo. As pessoas a chorar e a perguntar ‘o que vamos comer?’, mas os chekistas [membros da polícia secreta] riram e responderam ‘vocês vão encontrar alguma coisa’. E o que as pessoas faziam para esconder alguns grãos! No cabelo, debaixo da língua, mas eles procuram aí também, e levam.
Testemunho de Maria Zuk, refugiada ucraniana, ao jornal “Ukrainian Voice”, em Winnipeg, no Canadá. Setembro de 1933. Uma das primeiras referências ao Holodomor na imprensa internacional
O evitável horror
Em meados de 1932, 70% dos agregados da Ucrânia foram coletivizados, em oposição a uma média de 60% em toda a União Soviética. A república que produzia 27% dos cereais soviéticos tornou-se responsável por 38% de todas as entregas de cereais ao Estado. Mesmo assim, a colheita não atingiu as exigências: na URSS ficou 40% abaixo do alvo e na Ucrânia, em particular, 60% aquém. Os registos públicos sobre a quantidade de cereais recolhidos em toda a URSS entre 1930 e 1935 mostram uma oscilação pequena nas quantidades (algo entre os 83 milhões de toneladas em 1930 e os 68 milhões em 1935), só na cabeça de Estaline os ucranianos estavam a roubar fundos ao ideal comunista. “A insistência em que os camponeses lhe entregassem cereais que Estaline considerava que deviam existir levou a uma catástrofe humanitária”, escreve Anne Applebaum.
No outono de 1932 ainda teria sido possível voltar atrás. O Kremlin podia ter oferecido comida, como tinha feito em 1931 e já no início de 1932, ainda que de forma intermitente. Em vez disso Estaline optou por um discurso de culpabilização dos ucranianos. Os altos líderes comunistas passaram a acusar as autoridades locais de “inclinações direitistas” por não cumprirem as requisições de Moscovo.
A 22 de outubro de 1932, Estaline cria uma comissão especial.
Vyacheslav Molotov, presidente do Conselho dos Comissários do Povo, vai enviado para Kharkiv.
Lazar Kaganovich, membro do Politburo e um dos poucos homens de total confiança de Estaline, para o Kuban.
Era tempo de ver o que andavam os camponeses a fazer, em vez de colherem os seus cereais e os despacharem com morada do Kremlin.
Requisição de Cereais entre 1931 e 1933 (toneladas)
Em março de 1930, Estaline, pressionado pelo Politburo, publicou um artigo no “Pravda” com o sugestivo título “Tontos com Tanto Sucesso”, no qual atribuiu a culpa da coletivização forçada às autoridades locais excessivamente zelosas.
Os ativistas do partido interpretaram o texto como ordem para parar a coletivização e assim, ao longo dos meses seguintes, metade das terras anteriormente coletivizadas regressou às mãos dos camponeses. Cerca de oito milhões de camponeses escolheram sair das quintas cooperativas e voltaram às suas terras, segundo a investigação de Plohky e do Instituto de Investigação para a Ucrânia da Universidade de Harvard.


Requisição de Cereais entre 1931 e 1933 (percentagem)
Em poucos meses, a coletivização forçada tinha sido retomada. Desta vez, os camponeses optaram, em grande medida, por formas passivas de resistência, incluindo recusa de cultivarem cereais e outros produtos agrícolas além dos necessários à sua sobrevivência, abate de animais domésticos para evitar que fossem confiscados pelo Estado e fuga das zonas rurais.
Confrontados com esta nova forma de resistência campesina, Estaline e os seus associados recusaram-se a reconhecer a derrota e acusaram os camponeses de sabotagem, de tentarem fazer as cidades passar fome e de minarem a industrialização. As autoridades declararam que os camponeses estavam a esconder cereais e exigiram quotas maiores, tanto do campesinato coletivizado como dos que se recusavam juntar às produções coletivas. O regime tratou a Ucrânia de forma especialmente severa, porque as suas terras tão fecundas eram cruciais para a concretização dos planos económicos de Moscovo.


Uma série de diretivas vindas do Politburo expurgou das fazendas e das quintas de milhões de ucranianos todo e qualquer alimento, não apenas cereais como reservas de sementes, gado vivo, carne armazenada, gorduras animais e vegetais.
O partido anunciou que “o cumprimento das metas de entregas de cereais é a principal função de todas as cooperativas”. Mesmo as reduzidas rações de subsistência que tinham sido permitidas noutros anos de coletivização foram confiscadas, nenhuma exceção foi autorizada.
Os comunistas ucranianos imploraram aos emissários de Moscovo que permitissem aos camponeses reter alguns cereais, e também umas quantas sementes das principais espécies, para poderem continuar a cultivar no ano seguinte. Kaganovich não cedeu, e dessa grande coragem deu conta a Estaline, num telegrama. Dizia ter convencido os camaradas de partido na Ucrânia que “a preocupação com o mantimento de algumas reservas alimentares” estava a “prejudicar seriamente o plano de requisição obrigatório” de cereais.
Honrado camarada Estaline,
Existe uma lei do Governo soviético que diz que os aldeões devem passar fome? Porque nós não temos uma fatia de pão na nossa quinta desde 1 de janeiro... Como podemos construir uma economia socialista popular quando estamos condenados a morrer de fome, e quando ainda faltam quatro meses para a colheita? Por que razão morremos nos campos de batalha? Para agora passarmos fome, para vermos os nossos filhos a morrer de fome?
Carta anónima encontrada entre a correspondência de Estaline (em "Fome Vermelha", Anne Applebaum)
Algures pela madrugada de 9 de novembro de 1932, já a fome e as doenças próprias da desnutrição matavam milhares por dia, Nadezhna Sergeevna Alliluyeva, mulher de Estaline, suicida-se com um tiro no coração. A filha de ambos, Svetlana, disse mais tarde que a mãe morrera de “desilusão devastadora” com Estaline e com a fome que a política de coletivização provocara.
De novembro ao fim do ano de 1932, diversos camaradas de Estaline, pessoas amigas que fizeram viagens pela Rússia e pela Ucrânia, indivíduos bem colocados nas diversas instituições do Estado, enviaram cartas ao líder da URSS, ou falaram com ele diretamente sobre o que se estava a passar nos campos de toda a região.

Membros de uma brigada comunista abrem um celeiro de uma família de kulaks, à procura de reservas de comida, na região de Donetsk (1933) Foto: Pictures From History/Universal Images Group/ Getty Images
Membros de uma brigada comunista abrem um celeiro de uma família de kulaks, à procura de reservas de comida, na região de Donetsk (1933) Foto: Pictures From History/Universal Images Group/ Getty Images
Na véspera de Natal de 1932 foi anunciado que os agricultores tinham cinco dias para enviar todas as suas reservas de cereais, incluindo sementes.
A 1 de janeiro de 1933, Estaline enviou a Molotov e Kaganovich um comunicado que servia para lhes refrescar a memória sobre existência de uma lei, de 7 de agosto de 1932, chamada Lei das Cinco Espigas de Trigo, a qual estabelecia que todos os que fossem apanhados com mais do que esse número de artigos alimentares poderiam ser julgados por “roubar propriedade do Estado”. No início de 1933, foram julgadas e condenadas 54.645 pessoas. Dessas, 2000 foram executadas.
Depois da imposição desta lei do “roubo” de propriedade, os ucranianos veem-se de frente para um precipício: ou guardam alguns cereais e são presos ou executados caso estes sejam encontrados pela polícia, ou os entregam na totalidade e morrem à fome. Um processo lento, que provoca dores insuportáveis em todo o corpo enquanto este se vai alimentando dos próprios tecidos para sobreviver, tornando-se cada vez menos denso.
O historiador Stanislav Kulchytsky, que ainda é vivo, foi membro do Partido Comunista e foi a pessoa a quem esse mesmo partido encomendou uma obra que ilibasse Estaline da fome ucraniana. Acredita que o Holodomor foi um genocídio. Os seus pais viveram-no, mas a lei 58 do antigo código penal da URSS (atividades antissoviéticas) proibia a comunicação entre pais e filhos sobre a história do passado.
No seu livro “Anatomia do Holodomor”, Kulchytsky escreve que este telegrama é uma das provas fulcrais que atestam a intenção de Estaline de perseguir e castigar os ucranianos em particular, ou seja, genocídio. Estaline tinha consciência do que estava a acontecer e de como as suas ordens estavam a matar milhares e milhares de pessoas por dia, tantas que os ativistas do partido não tinham força braçal suficiente para recolher os cadáveres das ruas, sobretudo nos distritos de Kharkiv e Kiev.
No livro de Applebaum há um relato impressionante sobre o aspeto físico de uma pessoa faminta. Um sobrevivente lembra a sua mãe como “uma jarra de vidro, cheia de água límpida de nascente. Todo o seu corpo podia ser visto...era transparente e cheio de água, como um saco de plástico”.
A meio de janeiro de 1933, Estaline, com a sua documentada paranoia já em níveis possivelmente insuportáveis para o próprio, decide que os camponeses ucranianos poderiam começar a pagar um imposto de apenas parte da sua produção, em vez de terem de entregá-la por completo caso não cumprissem as metas de requisição. A fome começa a acabar, mas o processo foi lento. Estaline sabia o que se passava, mas mesmo assim decretou que essa reconversão de castigos só entraria em vigor no verão. Permitiu mais seis meses de expropriação dos camponeses ucranianos. Em junho, a ajuda começou a chegar, nada mais do que a reposição dos alimentos anteriormente requisitados.
Destruir a “questão ucraniana”
Como vimos pelos decretos que foram sendo aprovados por Estaline em relação aos castigos cada vez mais severos para quem não cumprisse as inclementes metas de requisição de alimentos, 1933 foi o ano em que a fome passou a ser uma arma direta de Estaline contra o povo ucraniano, não mais uma consequência da cegueira ideológica. E enquanto a fome atingia os camponeses com mais força do que qualquer outro grupo, outra forma de repressão, de natureza cultural, dava os seus primeiros passos, também na Ucrânia. Do professor de aldeia ao padre, do pequeno político ao poeta, grande parte do capital intelectual da Ucrânia foi deportada ou presa. Como escreve Applebaum, “uma catástrofe desta dimensão exigia uma justificação igualmente extraodinária”.
Em dezembro de 1932, dois decretos secretos do Politburo, revelados após a abertura dos arquivos, com a Perestroïka de Gorbachev, puseram fim à política de “indigenização” criada em 1923 para permitir às diferentes repúblicas da URSS algum grau de autonomia cultural e linguística. Várias das medidas anteriormente descritas — perseguição, prisões em massa, restrições a algumas viagens — não foram sentidas apenas na Ucrânia. O Cazaquistão também sofreu, mas em nenhuma outra república soviética os falhanços da requisição de cereais foram tão diretamente atribuídos às questões da nacionalidade e legado cultural e linguístico como na Ucrânia e em Kuban.

Vários camiões com cereais confiscados, na regão de Kiev. "Pão socialista em vez de pão dos kulaks", lê-se na parte lateral do primeiro camião Foto: Pictures From History/Universal Images Group Getty Images
Vários camiões com cereais confiscados, na regão de Kiev. "Pão socialista em vez de pão dos kulaks", lê-se na parte lateral do primeiro camião Foto: Pictures From History/Universal Images Group Getty Images
O primeiro decreto culpava os “baixos” valores de produção e entrega de cereais na “ausência de vigilância revolucionária” e afirmava que a aleivosia se infiltrara em cada quinta, que cada trator era conduzido por um descendente cossaco. O segundo decreto é a concretização, em medidas, do pensamento expresso no primeiro. Todas as regiões da URSS onde existiam escolas, livros e imprensa em ucraniano foram obrigadas a acabar com a prevalência da língua, e a voltar a adotar o russo
Havia, de facto, oposição real dos membros do Partido Comunista Ucraniano às políticas de Estaline. Muitos recusaram-se a implantar os níveis impraticáveis de requisição de cereais nas suas zonas, o que adensou o medo de Moscovo de que mais e mais revoltas estivessem a ser orquestradas nos bastidores do próprio Partido. Muitos foram julgados e condenados por se terem atrevido a escrever a Estaline sobre a fome, sobre a impossibilidade de recolher mais cereais, sobre a queda de confiança dos cidadãos na ideologia comunista. Só em novembro de 1932, no mês em que Moscovo emitiu uma ordem para a “liquidação dos ninhos de contrarrevolucionários”, os serviços secretos prenderam 14.230 pessoas; 27 mil haveriam de ser detidas nos três meses que restavam até ao fim do ano. Daí até à construção de uma conspiração internacional com ajuda da Polónia foi um pequeno passo retórico. O facto de a Polónia ter assinado um pacto de não-agressão com a URSS em julho desse ano de 1932 não pareceu ter influência na narrativa.
Estaline sempre viveu aterrorizado com a questão ucraniana. Timothy Snyder, um dos historiadores que defendem que o que se passou nestes meses foi um genocídio, vê na questão do nacionalismo ucraniano o facto que deu razão de ser à URSS. “A União Soviética foi criada como federação de unidades nacionais. Isso aconteceu porque os líderes comunistas, todos, incluindo internacionalistas como Lenine, entenderam nos anos de 1917 até 1922 (um ano depois de o Exército Vermelho bolchevique ter conseguido derrotar as pretensões independentistas da Ucrânia) que tanta gente disposta a lutar e a morrer pela Ucrânia teria de ser contida de alguma forma. É verdadeiro dizer que a Ucrânia criou a União Soviética, já que sem o reconhecimento geral de uma questão ucraniana, a União Soviética não teria nascido da mesma forma”, defendeu numa entrevista à página de notícias americana Vox, nos dias que se seguiram ao início da guerra e quando todo o mundo estava envolvido na discussão histórica sobre as origens da narrativa imperialista de Vladimir Putin, no dia em que mandou invadir a Ucrânia. “Os planos da Ucrânia eram completamente contrários aos do Kremlin, o mesmo acontece hoje. A Rússia continua a querer fazer da Ucrânia uma colónia, continua a querer destruir a nossa identidade”, concorda Ivan Petrenko.
“Então fui até à casa seguinte. Eram um casal jovem. Olhei pela janela e vi a mãe e o pai mortos no chão. O filho pequeno estava deitado no meio, ainda vivo, a mamar no seio seco da sua mãe. Levei-o para um sítio onde estas crianças órfãs ficavam e acho que o salvei. Enquanto permaneci na aldeia ele foi como um irmão para mim e tentei cuidar dele. Depois levaram-nos juntos para outro orfanato. As crianças cujos pais haviam morrido de fome não eram bem tratadas, nem podíamos acender os fogões para nos mantermos quentes. Disseram-nos que éramos parasitas, capitalistas, herdeiros dos kulaks e das classes exploradoras. Estes lugares não eram orfanatos, eram casas de tortura. As crianças não tinham nada para comer. Era impossível estarmos limpos. Éramos literalmente comidos por piolhos. Mas ninguém se importava. Éramos a prole do inimigo de classe derrotado”.
Testemunho de Ivan Kasiianenko, de Los Angeles, Califórnia, perante a Comissão para a Investigação da Fome Ucraniana do Congresso norte-americano (1987)

Dois rapazes recolhem algumas batatas que tinham sido enterradas e que as brigadas de recolha de comida não conseguiram encontrar Daily Express/Hulton Archive/Getty Images)
Dois rapazes recolhem algumas batatas que tinham sido enterradas e que as brigadas de recolha de comida não conseguiram encontrar Daily Express/Hulton Archive/Getty Images)
O braço ucraniano do Partido Comunista foi o primeiro a ser saneado, mas logo depois a rede de vigilância e perseguição estendeu-se às pessoas das artes e das letras. O caso do historiador e linguista ucraniano Mykola Skrypnyk é dos mais conhecidos: ali estava um homem do regime, que até apoiara as cruzadas contra outros seus colegas, de repente roubado de toda a autoridade intelectual, quando o Partido decidiu acusá-lo de “ucranização de russos à força” e anular todos os cursos de língua ucraniana que tinha passado a vida a instaurar nas universidades. Acabaria por pôr fim à vida depois de uma reunião do partido onde foi ridicularizado, o trabalho de uma vida repudiado.
Em pouco tempo, a maioria das instituições onde artistas ucranianos se reuniam, e onde alguns viviam, como a Casa dos Escritores, ficou vazia. Cerca de 4000 professores foram classificados como “inimigos de classe”. Em dois anos, a mesma polícia responsável por purgar os campos de qualquer resquício alimentar prendeu quase 200 mil pessoas: toda uma geração de ucranianos com ensino superior, que fomentara a cultura ucraniana durante o quarto de século anterior.
Holodomor? Que Holodomor?
Até à queda da União Soviética pouco se sabia sobre as causas da fome. Aos relatos dos que escaparam faltavam os decretos, as cartas, as circulares internas, as ordens ao nível local e toda a comunicação entre Estaline e os seus principais obreiros. Durante os anos da fome, poucos jornalistas podiam entrar na URSS e os que lá trabalhavam seguiam a linha de Moscovo, como muitos admitiram mais tarde. Os censos de 1937 nunca foram publicados, os demógrafos e estatísticos que tinham trabalhado nessa recolha de dados foram executados. Estaline pediu novo levantamento, mas, mesmo antes de qualquer resultado, já anunciava que a população chegara aos 170 milhões (hoje sabe-se que a contagem esteve mais perto dos 162 milhões, pelo que cerca de oito milhões desapareceram dos registos). Com a publicação dos novos censos, em 1939, todas estas pessoas, as suas vidas e as suas mortes, deixaram de existir.
Por essa altura, contudo, a diáspora ucraniana já tinha voz, sobretudo na Polónia, Canadá e Estados Unidos. Foram os refugiados desta fome que começaram a relatar o que tinham vivido, e alguns jornalistas começaram a dar-lhes espaço para contarem as suas histórias.
Walter Duranty tentava fazer o contrário. Correspondente de 1932 a 1936 do todo-poderoso “The New York Times”, Duranty era idolatrado como o jornalista com mais acesso a Estaline (não uma, mas duas entrevistas concedidas). Nos jantares em que participava era sempre a estrela, mesmo naqueles onde também estava, por exemplo, o Presidente dos Estados Unidos. “Pode-se defender que dissecar um animal vivo é uma coisa triste e dolorosa, e é verdade que os kulaks e outros que se opuseram à experiência soviética não tiveram fim feliz, mas, em ambos os casos, o sofrimento inflingido tem um fim nobre”, escreveu o próprio, em 1935. Em 1932 venceu um prémio Pulitzer pelas reportagens sobre os Planos Quinquenais. Os jornalistas sabiam o que se passava, Duranty reconheceu-o. O correspondente da United Press, Eugene Lyons, também. Toda a gente sabia, mas ninguém podia escrever.
Até que um rapaz de 27 anos, do País de Gales, de seu nome Gareth Jones, cobrou dezenas de favores dos seus pais, ligados à diplomacia britânica, apanhou um comboio para Moscovo e, depois, outro para Kharkiv. Saiu antes de chegar à cidade, bem no meio das aldeias silenciadas de morte. Abandonou clandestinamente a Ucrânia e, em março de 1933, deu uma conferência de imprensa em Berlim: disse tudo o que viu, contou as histórias das pessoas, muitos jornais publicaram-nas, mas os seus colegas desmentiram, em coro, as suas reportagens.
Malcolm Muggeridge, na altura correspondente do “Manchester Guardian”, atual “The Guardian”, enviara três artigos sobre a fome por mala diplomática, mas os editores, no Reino Unido, cortaram partes do texto. Hitler estava a chegar ao poder, as críticas à URSS não estavam na agenda do dia. Lyons, da United Press, admitiu mais tarde o que se passou. Applebaum cita-o no seu livro: “Houve um desmentido. Admitimos o suficiente de forma a apaziguar as nossas consciências, mas usámos umas frases redondas que apenas serviram para condenar Jones como mentiroso. Lidámos com o assunto sujo e depois alguém pediu vodca e uns petiscos”.
Vinte anos depois da independência da Ucrânia (1991), a influência russa ainda continuava a lutar para que o Holodomor não fosse reconhecido com fome artificial. Viktor Yanukovych, eleito Presidente da Ucrânia em 2010, rejeitou em público a lei ucraniana que classifica o Holodomor como genocídio, uma conquista marcante do seu antecessor pró-ocidental , Viktor Yushchenko. Este argumentara que a fome fora uma campanha intencional das autoridades do Kremlin contra a classe camponesa ucraniana.
Na guerra que teve início no Donbas em 2014, monumentos que tinham sido erigidos em homenagem às vítimas do Holodomor foram retirados de locais públicos ou destruídos pelas forças pró-russas. Já durante a atual guerra, surgiram notícias de que outro objeto dedicado à memória dessa fome, em Mariupol, construído em frente ao teatro que foi fortemente bombardeado pelas forças russas no início do conflito, também fora retirado. Os materiais, disse então a administração imposta pelo Kremlin, iriam ser derretidos e usados para construção.
Memória, legado e discussão
O Expresso escreveu a dois dos mais conhecidos académicos com trabalho publicado sobre o Holodomor que não o reconhecem como genocídio: Archibald Getty e Michael Ellman. Nnenhum dos dois respondeu a pedidos de entrevista. Os seus pensamentos estão resumidos, no entanto, em artigos escritos pelos próprios ou inseridos noutros textos sobre o Holodomor.
Ellman, professor de economia, não nega que Estaline tenha cometido crimes contra a Humanidade. No seu livro “Stalin and the Soviet Famine of 1932–33: Revisited”, escreve que “o comportamento de Estaline entre 1930 e 1934 constitui claramente um crime contra a Humanidade (ou uma série de crimes contra a Humanidade), conforme definido no Estatuto de Roma de 1998 do Tribunal Penal Internacional, artigo 7, subsecções 1 (d) e (h). Estaline também foi culpado de genocídio? Isso depende de como se define ‘genocídio’”. Logo depois aprofunda, falando dos pressupostos que, neste caso, são usados pelos que defendem a tese de genocídio. “O primeiro elemento físico é a exportação de cereais durante a fome, o segundo elemento físico é a proibição da migração da Ucrânia e do norte do Cáucaso, o terceiro elemento físico é o facto de Estaline não ter feito nenhum esforço para obter assistência humanitária no exterior [...]. Ora, em primeiro lugar, os três elementos físicos do suposto crime podem receber interpretações não-genocidas. Em segundo lugar, a existências de suspeitas sobre as atividades de um grupo étnico pode, de facto, levar ao genocídio, mas por si só não é prova de genocídio. Portanto, parece que falta a prova necessária de intenção.” Outros nomes, Robert Davies (1925-2021) e Stephen Wheatcroft, ambos historiadores, defendem que, no decurso das suas investigações sobre o tema, não encontraram sinais de “qualquer tentativa consciente, por parte do Estado, de matar ucranianos em grande número”.
De certa forma, a palavra genocídio nasceu na Ucrânia, porque o homem que tipificou o crime, Raphael Lemkin, nasceu em Lviv, cidade ucraniana então parte da Polónia, e foi profundamente influenciado por toda a história da região. De início, a ideia de Lemkin era que o crime ficasse inscrito na Convenção das Nações Unidas para a Prevenção e Castigo do Crime de Genocídio de forma a que “grupos políticos” também pudessem ser vítimas de genoc´´ídio, mas a URSS opôs-se a esta definição mais abrangente e forçou uma associação do genocídio às ações diretas do nazi-fascismo alemão, e à eugenia. E assim está, até hoje. As Nações Unidas não reconhecem o Holodomor como genocídio porque a definição legal, influenciada pelo medo russo de que expandi-la pudesse acabar por fazer cair lá dentro as próprias ações dos governos soviéticos anteriores, não pode acomodá-lo como tal.
Para os ucranianos, a questão é muito mais clara, e a guerra atual só tem tornado mais urgente a discussão sobre o que se passou há 90 anos. “A memória do Holodomor é parte muito importante da nossa memória coletiva. Os crimes cometidos no início do século dão-nos força para lutar agora, porque sabemos como foi, e não queremos voltar a estar sob domínio soviético”, diz Ivan Petrenko, do Museu do Holodomor.
Como outros historiadores já referidos, Ivan Petrenko foca-se nos decretos circunscritos à Ucrânia para defender a tese de genocídio. “As leis que impediram os camponeses de manter qualquer resquício de comida em casa, seguidas por outras que proibiram que essas mesmas pessoas, roubadas de todo o sustento, procurassem comida fora das suas vilas, em cidades, onde pudessem pelo menos vender alguma coisa nos mercados ou trocá-lo por comida, são as maiores provas de uma ação de Estaline direcionada contra os ucranianos em particular. Lembremos que foram instalados checkpoints militares para não deixar as pessoas sair das aldeias à procura de comida. Para não deixar as pessoas comer. Lembremos.”
Créditos
Texto Ana França
Fotografias Arquivo da Diocese de Viena, Instituto de Investigação para a Ucrânia da Universidade de Harvard e Getty Images
Vídeo Rúben Tiago Pereira
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Direção João Vieira Pereira
Expresso 2022