
Um polícia recebeu ordens do comandante da PSP de Lisboa para registar a Revolução. As imagens nunca antes vistas agora reveladas mostram a queda do regime vista por quem perdeu. A enigmática história das fotografias sem cravos nem festa, mas com vinho e fogo
18 de abril de 2023
Numa garagem em São Pedro da Cadeira, Torres Vedras, grandes folhas de cartão com fotografias coladas contam uma parte da história de Portugal. Só que não, porque ninguém sabe que as fotografias lá estão. Imagens como a da camioneta de caixa aberta que transporta dez militares e quatro pipas de vinho. Ou do aglomerado de pessoas que cercam um automóvel e batem no tejadilho. Quase se ouve o som da ira contida na fotografia. Há retratos com chaimites, soldados, população civil, muitos jovens, mulheres, homens com grandes bigodes. Há turba, um carro de rodas para o ar, incinerado, e um homem que olha a destruição a sorrir. Uma Lisboa cheia de gente, excitação e espanto. Gente que olha, gente que grita. Um grupo de homens sobe a rua com garrafas de vinho nas mãos. Não há cravos, a festa não foi convidada para aquelas fotografias e, como se espera, nunca se vê o autor dos disparos, mas, pela distância com que este fixou a imagens, quase lhe sentimos o medo. Pedaços inéditos do dia 25 de abril de 1974.

Zacarias à conversa com o Expresso na garagem de casa, onde estão guardadas as fotografias
Zacarias à conversa com o Expresso na garagem de casa, onde estão guardadas as fotografias
A garagem que esconde essas fotografias é de Zacarias Duarte Ferreira, 87 anos, polícia aposentado, detentor do cartão vitalício com o número 115293. Na imagem congelada aparece fardado, mas Zacarias quase nunca vestiu o uniforme para trabalhar. Era polícia da PSP, usava a discrição como arma para cumprir a sua missão. Durante cerca de duas décadas foi fotógrafo do Comando Distrital de Lisboa, na Rua Capelo, Chiado. Longe de tudo explicar, Zacarias é uma caixa de surpresas, levanta mais questões do que as responde. Só conta o que quer e sempre com cautela, peso e medida. Muito continua por perceber.
A meada desta história começou a ser desenrolada quando, no início do outono do ano passado, um envelope e uma máquina fotográfica antiga foram entregues no edifício do Arquivo Nacional Torre do Tombo (ANTT). Em papel estavam imagens inéditas da ação policial que em 1972 reprimiu a tentativa de um grupo de jovens de levar em ombros até ao Cemitério da Ajuda a urna de José António Ribeiro dos Santos, estudante assassinado pela PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado, a polícia política do Estado Novo). Para assinalar a passagem em 2022 de 50 anos sobre o crime, o ANTT preparou uma conferência e, depois da inesperada oferta, também uma mostra documental, em que as fotografias inéditas eram o ponto alto. Expostas na entrada da Torre do Tombo, a poucos metros da Faculdade de Direito onde Ribeiro dos Santos estudou até ter sido morto, na sequência de uma rusga da polícia a uma reunião estudantil no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (atual ISEG). O autor das imagens tinha nome — Zacarias Duarte Ferreira —, mas não tinha história conhecida.
José António Ribeiro dos Santos foi assassinado pela PIDE em 1972
Uma ação policial reprimiu a tentativa de um grupo de jovens de levar em ombros até ao Cemitério da Ajuda a urna do estudante
Ribeiro dos Santos foi morto numa rusga da polícia a uma reunião estudantil no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (atual ISEG)
A exposição esteve patente entre 7 de outubro e 10 de janeiro e nunca foi prestada ao ANTT informação detalhada sobre o autor das fotografias, já muito reproduzidas na internet. Em sites como paginavermelha.net ou ribeirossantos.net, aparece a explicação possível: “Entregues por Alberto Silva, atendendo a que o autor, por razões de mobilidade, já não se poderia deslocar ao ANTT, totalizam 11 provas em papel fotográfico de gelatina sais de prata.” Era preciso saber mais sobre o autor das imagens. A equipa da Torre do Tombo pediu autorização para ceder o número de telefone de Zacarias Duarte Ferreira, que, contactado pelo Expresso, depois de alguma insistência, aceitou receber os jornalistas.
No primeiro encontro na sua casa em São Pedro da Cadeira, Zacarias não contou que era polícia. Nem deu essa informação ao ANTT quando pediu a um vizinho que entregasse as fotografias na Cidade Universitária. À espera do Expresso tinha apenas três páginas manuscritas, em que relatava uma versão higienizada de como as fotografias do transporte da urna de Ribeiro dos Santos tinham sido tiradas. Em tom de conclusão, escreveu: “O meu objetivo era apenas fotografar e, por sorte, o caso mais relevante deu-se mesmo em frente à casa onde estava.” Tudo fruto do acaso, mas não foi assim que se passou na realidade. Já na garagem, Zacarias cedeu. “Não era para contar e não pode escrever, o que lhe vou dizer, mas fui polícia e fotografei o funeral no meu horário de trabalho.” De repente, tudo muda. A ideia de que um cidadão, eventualmente até um apoiante da causa estudantil, quisera apenas registar a luta entre manifestantes e polícias ganha outra relevância. Abrem-se caminhos inesperados de interpretação. Afinal, quem era realmente Zacarias Duarte Ferreira e porque é que fotografou aquele evento?
O impasse só se resolveu com a intervenção do Ministério da Administração Interna, que confirmou a identidade de Zacarias e assegurou ao fotógrafo que não haveria nenhuma represália por ele contar a sua história na íntegra. “Eles podem vir atrás de mim”, dissera, sem conseguir concretizar quem eram “eles” ou o que lhe poderia acontecer por contar a verdade. Ultrapassado o obstáculo, é marcado um novo encontro na garagem em Torres Vedras. Desta vez, Zacarias está mais à vontade e conta uma versão aparentemente mais completa, embora nunca se saiba realmente se será a íntegra da sua história.
O início
Só andou na escola até à terceira classe, mas aos 18 anos comprou os livros da quarta classe, estudou-os sozinho e quando entrou para a vida militar prestou exame e foi aprovado. Entrou para o Serviço de Saúde e inaugurou o quartel da Escola Prática de Cavalaria, em Santarém. Quando voltou à vida civil, regressou às suas funções de pintor de obras. Três anos mais tarde, em 1961, entrou para a PSP e prestou serviço no posto de socorros. “Era maqueiro e passei a enfermeiro do Hospital Militar, na Estrela, depois de tirar o curso. Foi na altura em que ficámos sem Goa. Diziam que não havia enfermeiros.” Em 1956, tinha 21 anos e não era casado, tinha chegado a Lisboa. “Em 1961 fui para a Polícia, fiz as provas físicas, clínicas e escritas.”


A fotografia apareceu quando Zacarias foi morar para a Penha de França, onde era o Comando-Geral da PSP. “Conheci um jovem que era aprendiz de fotógrafo. Ele fotografava para a igreja e convidou-me para o ajudar. Eu disse que não percebia nada de fotografia mas tinha muito gosto em aprender. Comecei a fotografar com ele e comprei logo uma máquina. Foi uma zaragata com a minha mulher, que achou que estava a gastar muito dinheiro. Andei com ele três meses e meio e depois fiquei sozinho. Havia muito serviço. Muitos batizados. Mas ele não me pagava e queixei-me ao padre. Nós dávamos um tanto para as despesas da igreja. E o padre disse que passava a ser 15 dias um e 15 dias outro, até que eu fiquei sozinho.”
Durante a semana Zacarias trabalhava na Polícia como enfermeiro e aos fins de semana era fotógrafo. Foi ganhando fama: “Gosto muito das coisas difíceis, fazia muitas reproduções de fotografias antigas e passei a ser conhecido. As pessoas vinham dos arredores de Lisboa e pediam-me para reconstruir fotografias estragadas. Eu punha um casaco novo, uma gravata. Muitas vezes rejeitava trabalho, tanto que era. Ganhei algum dinheiro, mas cheguei a deitar-me às quatro da manhã para me levantar muito cedo no dia a seguir.”
No Comando, Zacarias continuava no Posto dos Socorros até que o comandante distrital Pedro Barcelos, colega de curso de António Spínola, o terá mandado chamar. “Estávamos em 1972. Eu já tinha um laboratório em casa, mas um dia estragaram-me um flash e eu disse que não levava mais material caro para o quartel e o comandante disse que eu visse o preço das coisas e mandou-me fotografar. A GNR tinha já um estúdio e fiz ver ao comandante que a PSP não era inferior”, recorda. Passou então a trabalhar como fotógrafo da PSP, subordinado ao Departamento de Relações Públicas e Planeamento, no Comando Distrital de Lisboa, atual Comando Metropolitano.


“O comandante foi muito simpático, disse que sabia que eu era um bom profissional e que queria que passasse a ser fotógrafo da PSP. Eu disse que tinha um horário de 24 horas, dia sim, dia não, e que de vez em quando fazia serviços por fora. E que queria manter o horário e ele respondeu que, desde que o serviço ficasse assegurado, podia folgar dois dias seguidos. No início éramos três, mas depois um saiu, não tinha vontade em aprender”, explica Zacarias Duarte Ferreira, passados 50 anos. Embora no Museu da PSP não tenham ainda sido encontrados registos que confirmem essa versão, a historiadora Maria Fernanda Rollo, que desde 2014 organiza o acervo patrimonial da Polícia de Segurança Pública, remete a criação deste departamento para um despacho de 1962. “Ainda não temos documentação que explique exatamente como funcionava”, afirma a professora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
A rotina daquele período pesava sobre as costas de Zacarias: “Todos os dias fotografava presos, às vezes eram mais de 30, e caía em mim a responsabilidade para que não acontecessem erros, como enganos nos nomes e registos. Lidei com toda a espécie de cadastrados, burlões, carteiristas, assaltantes, até falsos médicos ou engenheiros, anarquistas, pedófilos, sei lá mais o quê.” Todos os dias tinha de fotografar os presos do Governo Civil, e, recorda, às 10h as fotografias tinham de estar na Polícia Judiciária. Também fotografou os presos políticos? “Não, esses eram com a PIDE.” Mas havia mais motivos de registo: “Quando surgiam dizeres nas paredes perto da Feira da Ladra, nos caminhos para o lado poente, era muito chato. Um radiopatrulha passava e avisava-me onde tinha de ir com o meu carro, depois a pé, e muito rapidamente, fotografava os dizeres. Eram funções de responsabilidade.” Ao serviço da PSP fotografou também inaugurações, tomadas de posse, acidentes de viação, visitas de altas individualidades estrangeiras e acompanhava sempre as peregrinações ou excursões organizadas pela polícia. Diz que chegou a ir à Assembleia da República fazer o seu trabalho.
Só andou na escola até à terceira classe, mas aos 18 anos comprou os livros da quarta classe, estudou-os sozinho e quando entrou para a vida militar prestou exame e foi aprovado. Entrou para o Serviço de Saúde e inaugurou o quartel da Escola Prática de Cavalaria, em Santarém. Quando voltou à vida civil, regressou às suas funções de pintor de obras. Três anos mais tarde, em 1961, entrou para a PSP e prestou serviço no posto de socorros. “Era maqueiro e passei a enfermeiro do Hospital Militar, na Estrela, depois de tirar o curso. Foi na altura em que ficámos sem Goa. Diziam que não havia enfermeiros.” Em 1956, tinha 21 anos e não era casado, tinha chegado a Lisboa. “Em 1961 fui para a Polícia, fiz as provas físicas, clínicas e escritas.”
A fotografia apareceu quando Zacarias foi morar para a Penha de França, onde era o Comando-Geral da PSP. “Conheci um jovem que era aprendiz de fotógrafo. Ele fotografava para a igreja e convidou-me para o ajudar. Eu disse que não percebia nada de fotografia mas tinha muito gosto em aprender. Comecei a fotografar com ele e comprei logo uma máquina. Foi uma zaragata com a minha mulher, que achou que estava a gastar muito dinheiro. Andei com ele três meses e meio e depois fiquei sozinho. Havia muito serviço. Muitos batizados. Mas ele não me pagava e queixei-me ao padre. Nós dávamos um tanto para as despesas da igreja. E o padre disse que passava a ser 15 dias um e 15 dias outro, até que eu fiquei sozinho.”
Durante a semana Zacarias trabalhava na Polícia como enfermeiro e aos fins de semana era fotógrafo. Foi ganhando fama: “Gosto muito das coisas difíceis, fazia muitas reproduções de fotografias antigas e passei a ser conhecido. As pessoas vinham dos arredores de Lisboa e pediam-me para reconstruir fotografias estragadas. Eu punha um casaco novo, uma gravata. Muitas vezes rejeitava trabalho, tanto que era. Ganhei algum dinheiro, mas cheguei a deitar-me às quatro da manhã para me levantar muito cedo no dia a seguir.”
No Comando, Zacarias continuava no Posto dos Socorros até que o comandante distrital Pedro Barcelos, colega de curso de António Spínola, o terá mandado chamar. “Estávamos em 1972. Eu já tinha um laboratório em casa, mas um dia estragaram-me um flash e eu disse que não levava mais material caro para o quartel e o comandante disse que eu visse o preço das coisas e mandou-me fotografar. A GNR tinha já um estúdio e fiz ver ao comandante que a PSP não era inferior”, recorda. Passou então a trabalhar como fotógrafo da PSP, subordinado ao Departamento de Relações Públicas e Planeamento, no Comando Distrital de Lisboa, atual Comando Metropolitano.
“O comandante foi muito simpático, disse que sabia que eu era um bom profissional e que queria que passasse a ser fotógrafo da PSP. Eu disse que tinha um horário de 24 horas, dia sim, dia não, e que de vez em quando fazia serviços por fora. E que queria manter o horário e ele respondeu que, desde que o serviço ficasse assegurado, podia folgar dois dias seguidos. No início éramos três, mas depois um saiu, não tinha vontade em aprender”, explica Zacarias Duarte Ferreira, passados 50 anos. Embora no Museu da PSP não tenham ainda sido encontrados registos que confirmem essa versão, a historiadora Maria Fernanda Rollo, que desde 2014 organiza o acervo patrimonial da Polícia de Segurança Pública, remete a criação deste departamento para um despacho de 1962. “Ainda não temos documentação que explique exatamente como funcionava”, afirma a professora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.




A rotina daquele período pesava sobre as costas de Zacarias: “Todos os dias fotografava presos, às vezes eram mais de 30, e caía em mim a responsabilidade para que não acontecessem erros, como enganos nos nomes e registos. Lidei com toda a espécie de cadastrados, burlões, carteiristas, assaltantes, até falsos médicos ou engenheiros, anarquistas, pedófilos, sei lá mais o quê.” Todos os dias tinha de fotografar os presos do Governo Civil, e, recorda, às 10h as fotografias tinham de estar na Polícia Judiciária. Também fotografou os presos políticos? “Não, esses eram com a PIDE.” Mas havia mais motivos de registo: “Quando surgiam dizeres nas paredes perto da Feira da Ladra, nos caminhos para o lado poente, era muito chato. Um radiopatrulha passava e avisava-me onde tinha de ir com o meu carro, depois a pé, e muito rapidamente, fotografava os dizeres. Eram funções de responsabilidade.” Ao serviço da PSP fotografou também inaugurações, tomadas de posse, acidentes de viação, visitas de altas individualidades estrangeiras e acompanhava sempre as peregrinações ou excursões organizadas pela polícia. Diz que chegou a ir à Assembleia da República fazer o seu trabalho.
No caso do funeral de Ribeiro dos Santos, Zacarias teve mais tempo e maior preparação. “Fui chamado a assistir a uma reunião do Comando, explicaram-me que os estudantes diziam nos panfletos que iam percorrer a cidade e que era importante que ficasse nas fotografias.” Foi à civil, como sempre: “Eu não andava com uniforme porque tinha de andar escondido, se andasse fardado e soubessem que eu era polícia, davam cabo de mim.” E chama a si o protagonismo nas missões atribuídas pela chefia: “Era sempre eu que ia ao barulho. O comandante preferia que fosse eu. Ele decidia para onde eu ia. Houve uma situação no Campo Grande em que tivemos de fugir, porque levávamos da Polícia de Intervenção da Ajuda. Eram todos novos e não nos conheciam.”
Naquele outubro de 1972, Zacarias teria um papel determinante. O funeral de Ribeiro dos Santos transformara-se numa grande manifestação de protesto contra o regime e numa forte ação de resistência às forças policiais. Milhares de pessoas juntaram-se à porta da casa onde o jovem vivia, para lhe prestar homenagem. Panfletos foram espalhados pela cidade, anunciando a manifestação, mas a PIDE e a polícia de choque cercaram o local e apoderaram-se da urna, desencadeando uma reação violenta da multidão, que seguiu os operacionais até ao Cemitério da Ajuda, também cercado pela polícia. Apesar dos 87 anos, a memória de Zacarias ainda é aguda, recorda-se, por exemplo, que o funeral de Ribeiro dos Santos “foi numa quinta-feira”.
“Levei uma máquina de fole no bolso. As pessoas observavam tudo o que se passava do interior das casas. A certa altura, apoiei-me no parapeito de uma janela e simulei estar maldisposto. Fiz sinal a que me dessem água, um senhor com má cara fez-me um gesto para me dirigir à porta do lado, discretamente mostrei o meu cartão de polícia e ele convidou-me a entrar, dizendo logo que pertenciam à União Nacional [partido que apoiava o regime de Salazar]. Fiz as fotografias de lá, por trás do vidro da janela. Só depois de os estudantes irem embora é que saí. Revelei as fotografias na minha casa, porque ainda não havia laboratório no Comando.” E conta ainda mais: “Fiz duas cópias, uma entreguei e outra ficou comigo. Quis guardar porque sabia que não havia mais fotografias daquele acontecimento.”
As três folhas manuscritas que Zacarias tinha com o o relato dos acontecimentos quando se encontrou pela primeira vez com o Expresso



25 de Abril sempre
Outro momento alto foi o registo do 25 de Abril. Desde as seis da manhã daquele dia que a PSP se tinha colocado às ordens de Salgueiro Maia, mas, apesar das ordens rigorosas para os agentes não saírem dos seus locais de trabalho, Zacarias pediu ao comandante Pedro Barcelos para fotografar o que se passava nas ruas. “Ele disse: ‘Vá, vá, é até interessante.’ Só me disse para, de vez em quando, voltar ao Comando para lhe contar como estava a andar. Fui ao Quartel do Carmo, estava à civil, incógnito, e numa altura em que abriram um bocadinho da porta ouvi um oficial dizer que só havia 20 minutos para se renderem.” Diz que nem todas as imagens agora mostradas ao Expresso terão sido feitas por ele, que o genro de um subcomissário terá feito algumas, não sabe dizer quais são de quem.
Ele ficou com todas. “Fiz duas coleções e ele disse que eu podia ficar com uma para mim. Não sei se eles ainda são vivos, mas o genro era mais novo do que eu. Eu tive autorização para ficar com as fotografias. Ainda vi o Marcello Caetano a espreitar pelo vidro da chaimite que o transportou. Mas não pude fotografar.” Zacarias tinha medo da reação da população, diz ter usado uma máquina pequena, incapaz de fazer registos à distância e que as fotografias “ficaram tremidas”.
O polícia-fotógrafo não acabaria o dia sem uma aventura memorável. “Quando estava à entrada do Governo Civil a conversar com um amigo, ouvi um tiro que me passou ao lado. Tau! O tiro era para mim, acertou na perna de um colega meu, também polícia. Fiquei nervoso, fui rodeado pelos colegas. A PIDE já estava ocupada e no terraço do Comando ouviu-se outra vez. Tau, tau! Os tiros passaram ao lado da minha cabeça, devem ter vindo da PIDE. Eu estava a ser vigiado, eles conheciam-me. Um indivíduo de um partido da oposição morava no meu prédio e sabia quem eu era. Fui até ao Serviço de Morse [Código Morse], que era no terraço, de gatas. Fiquei sem fala, ouvi o ruído das balas passarem rentinho da minha cabeça. Estive ali um bocado, depois regressei ao meu serviço e contei a história.” Zacarias Duarte Ferreira diz que nunca foi convidado para integrar a PIDE e que, se fosse, não aceitaria. “Não gostava desta polícia, a PSP não se dava com eles, que se armavam em muito importantes. Nunca me pediram as fotografias. E mesmo que pedissem, não dava”, garante ao Expresso.
No dia a seguir ao 25 de Abril recorda-se de terem aparecido no Comando quatro fotojornalistas, porque queriam os rolos que lhes tinham sido apreendidos na véspera. “Eram fotografias de polícias em cima dos telhados, que me tinham mandado destruir, mas como sou muito prudente, guardei-os bem. Quando os jornalistas apareceram, fui buscar os rolos e devolvi-os aos jornalistas.” Diz não se recordar dos nomes dos fotojornalistas e não quer aprofundar o tema. Encerra a conversa.
No livro “Polícia(s) e Segurança Pública — História e Perspetivas Contemporâneas”, coordenado por Maria Fernanda Rollo, Pedro Marques Gomes e Adolfo Cueto-Rodríguez, fica evidente a forma como a generalidade da população olhava para as forças policiais. A primeira Companhia Móvel da Polícia foi criada pela PSP em 1960. Zacarias integrou este corpo um ano mais tarde. Quando a companhia surgiu veio “motorizada, treinada e equipada com modernos meios para eliminar as perturbações públicas que surgiam em qualquer ponto do país”, como se pode ler na obra citada. Onde pode ler-se ainda que a PSP era um “braço do Estado, um dos principais instrumentos de vigilância da população e responsável pela ordem pública nas zonas urbanas”, e que “chega a 1974 claramente associada à repressão e violência devido ao seu passado de estreita colaboração com a ditadura.” A edição de março/abril da revista interna da corporação, intitulada “Polícia Portuguesa”, refere mesmo que a PSP era “tida como força repressiva e fascista” e que aparecia com “uma imagem denegrida, por virtude de certos desvios e desmandos graves que se cometeram, desvirtuando a sua missão específica de força eminentemente cívica, em obediência a uma ordem político-jurídica instituída, que dela fez, como de outras forças, um instrumento da sua política.”
Após o 25 de Abril, Zacarias diz ter continuado a fazer o seu trabalho de fotógrafo da PSP, mesmo depois de Pedro Barcelos ter sido afastado do Comando Distrital, substituído por Casanova Ferreira, também ele substituído em 1975, na sequência do golpe do 11 de março, por José Aparício. Apesar da mudança política, os momentos mais difíceis para este agente não tinham ainda chegado ao fim. “Certa vez levei uma tareia nos Restauradores. Já tinha avisado o comandante de que as companhias móveis tinham de conhecer os fotógrafos ou ia haver chatices. Queriam sanear um major de um serviço qualquer com estrangeiros. Eu tinha duas objetivas, mas tive de me aproximar, e na altura em que esse major chegou, veio a polícia e deu-me uma tareia da meia-noite. Eu dizia que era colega, mas eles não ouviam nada e tive de ser suturado. A minha camisa branca ficou vermelha.”
Aposentado da PSP em 1984, Zacarias Duarte Ferreira abraçou então plenamente as funções de fotógrafo, agora no sector privado, dando impulso à loja que abrira na Penha de França, bairro onde viveu 41 anos. “Fui fotógrafo exclusivo das comunhões durante 31 anos em cinco igrejas: Sé, Santa Engrácia, São Vicente, Penha de França e Igreja de São Francisco. Os padres não queriam mais ninguém, porque eu sabia movimentar-me, não andava a estorvar. Cheguei a ter comunhões de 90 crianças”, conta com a saudade na voz. Mas, para alguém que mantém uma memória tão atenta, é surpreendente o que Zacarias diz sobre os negativos do seu trabalho: “Não tenho os negativos. Tinha outra casa, que vendi há uns oito anos, e coloquei cerca de 100 quilos de negativos no lixo. Separei os que interessavam numa caixa, mas a minha mulher trocou com a caixa dos que não interessavam e mandou tudo fora.”
Memória sem arquivo
A preservação da memória apresenta-se como o elemento mais frágil desta história. Quantas fotografias de momentos históricos relevantes do país permanecem inéditas em locais desconhecidos? “Apesar de todas as diligências, as condições de acesso, o conhecimento do material é escasso”, sublinha o historiador Miguel Jerónimo, que coordenou com a realizadora Joana Pontes a exposição fotográfica “Visões do Império” no Padrão dos Descobrimentos, em 2021. Mesmo o trabalho jornalístico enfrenta dificuldades em cumprir a regra do contraditório, não só devido à falta de provas documentais como ao desaparecimento de fontes primárias.
O comandante Pedro Barcelos já morreu, o comandante José Aparício, com 86 anos e contactado pelo Expresso, já não está em condições de prestar declarações. A história acaba por ficar refém do testemunho de uma pessoa.
Ficha profissional de Zacarias na PSP, cedida pela própria instituição


Para Miguel Jerónimo, o caso de Zacarias Duarte Ferreira é emblemático. O historiador vê nas imagens um 25 de Abril diferente do habitual e chama a atenção para a necessidade de se reconhecer “a diversidade de olhares, interesses, posições que foram marcando o período revolucionário e que, ainda por cima, não foram estanques”. Identifica nas fotografias momentos da Revolução e sublinha o que considera serem os diferentes pontos de vista que vê nas fotografias agora divulgadas, que, diz, “documentam os anos turbulentos da transição democrática, a partir das quais é preciso revisitar a história”. E questiona: “O que haverá por descobrir? Muito, como este caso mostra.” E a impossibilidade de se fazer “uma história do fim do regime e da democratização sem incluir os olhares de quem estava em situações de poder, de vigilância, de controlo, visando evitar o curso dos acontecimentos ou minimizar os seus efeitos”.
“Este é um caso extraordinário de uma informação histórica que é como se não existisse. É preciso pensar o 25 de Abril de forma diferente, com pontos de vista distintos.” Levanta a questão da utilização do trabalho de Zacarias, que afirma limitar-se a cumprir as missões que lhe eram destinadas, mas, posteriormente, não se sabe que uso era dado às suas fotografias. “Nada é dito sobre as intenções de quem o nomeou. Mesmo que as fotografias não fossem conscientemente ideológicas, há sempre um olhar ideologicamente vinculado.” Considera que algumas destas imagens têm como propósito a identificação e a vigilância de alguns indivíduos, outras são um registo informativo genérico, outras parecem ter uma preocupação estética. “São vários olhares, que parecem resultar de diferentes autores. O mais importante é que estas fotografias nos permitem ter acesso a como as forças do Antigo Regime olham para o 25 de Abril. É um olhar de quem está a ver a desintegração de um mundo de privilégio. Mas não é um olhar elitista, o que as torna mais relevantes, porque a nossa história tem sido feita a partir das elites.”
Aproveita para assegurar a necessidade de se aprofundar a investigação: “Esta história também levanta uma questão muito importante, relacionada com o cerimonial das comemorações em curso dos 50 anos do 25 de Abril. Sem sabermos os usos passados desta documentação visual, que riscos corremos nos seus usos presentes? Se não investigarmos mais os contextos de produção e uso destas imagens, que lugar têm elas no presente, na memória e nas comemorações? Saberemos o suficiente? Este caso mostra muito bem os limites deste conhecimento, pela escassez de informação, pelas reservas em partilhar o que se sabe, pelo silêncio em abordar certos problemas.” Também Silvestre Lacerda, diretor da Torre do Tombo, vê cenas do 25 de Abril nas fotografias de Zacarias, mas não se sente capaz de identificá-las plenamente, localizando-as na geografia do dia revolucionário.
Zacarias levanta a ponta do véu. Diz que não gostava do Antigo Regime e que ficou “feliz” com o 25 de Abril. “Eu não tinha partido político. No início dos anos 80 abri a loja de fotografia e na porta ao lado havia um sapateiro, que diziam que era uma sede do PCP. Eu pensei que eles não soubessem quem eu era, dizia-se que eles não podiam nem um bocadinho com a Polícia. Eu dizia bom dia e ninguém respondia. Certa vez, um disse que se mandasse, pegava uma metralhadora e matava os polícias todos, mas eu não respondi. Ao fim de um tempo, eram os melhores amigos que tinha. Eles viram que eu não me exaltava nem me enervava. Depois de tantos anos, convidaram-me para tomar um café, depois uma cerveja, nunca me deixaram pagar. Um dia vieram-me avisar que tinham rasgado os toldos da loja, mas não acredito que tenha sido por eu ser polícia ou pensarem que eu era da PIDE. Nunca fui informador. Era apenas um polícia que fazia o seu trabalho.” No ANTT, depois de uma pesquisa solicitada pelo Expresso, não foi encontrada nenhuma referência que indicasse que Zacarias Duarte Ferreira tivesse colaborado com a polícia política.
O polícia-fotógrafo passou à reserva com 48 anos, em 1984, desligando-se da corporação aos 65 anos, quando saiu para se dedicar totalmente à loja. Vendeu-a em 2002 e desde então tem-se dedicado a fazer quadros com “pedrinhas do mar e vidros”, atividade que aprendeu com a neta. Escreveu um livro em edição de autor — “No Caminho Que Tomei, Com Gosto Não Me Cansei” — em que revela algumas das imagens aqui referidas. Termina a autobiografia com um poema, em que resume o seu percurso. “Fotografei sem ter vontade para isso/ E não me esquecerei mais/ Para não faltar ao compromisso/ Fotografei no dia do funeral do meu pai” é uma das estrofes. As fotografias de Zacarias registam pedaços da História do país, revelam perceções da Revolução até agora desconhecidas. Numa imagem, um homem passa de costas no sentido contrário da turba. De casaco branco, com um capuz puxado pela cabeça, poderia ser qualquer um de nós, viajantes do tempo, dependentes do olhar do polícia que ‘disparou’ sobre o 25 de Abril
NOTA: Apesar das nossas diligências, não foi possível identificar a autoria da totalidade das fotografias do 25 de Abril. O Expresso está disponível para o fazer, assim que surja alguém capaz de comprovar a autoria das mesmas.
Créditos
Texto Christiana Martins
Fotografias atuais e vídeo Tiago Miranda
Edição vídeo José Cedovim Pinto
Webdesign Tiago Pereira Santos
Apoio web João Melancia
Arquivo Direitos Reservados imagens cedidas por Zacarias Duarte Ferreira
Coordenação Joana Beleza e Marta Gonçalves
Direção João Vieira Pereira
Expresso 2023