São uma classe invisível na sociedade. Pessoas sem folgas nem férias, que prescindem da sua vida para assegurar que outra pessoa continue a viver. São pais, filhos, irmãos, netos, amigos, vizinhos. São pelo menos centenas de milhares, não se sabe ao certo quantos. Já são reconhecidos por lei. Mas falta tudo o resto

ReportagemTiago SoarescomRuben Tiago PereiraeNuno Botelho
Reportagem
Tiago SoarescomRuben Tiago PereiraeNuno Botelho

Fevereiro 2020

I“Um médico disse-me que um dia íamos desejar que ele tivesse morrido. Mas não, não desejamos”

Carla morde o filho por amor. É a melhor maneira de acalmar os espasmos. Aprendeu a fazê-lo sozinha: todos os dias aprende um pouco mais sobre como cuidar de Marcos, o filho de nove anos nascido com paralisia cerebral. O ato é carregado de carinho e funciona imediatamente. Marcos acalma-se, esboça um sorriso, afunda-se no conforto do sofá. Depois de Carla dar à luz, os médicos disseram-lhe que o filho iria morrer. E, se não morresse, ela iria desejar que tal acontecesse. “Podiam ter-me poupado a muito sofrimento”, desabafou Carla ainda antes da entrevista, e fica a incerteza sobre se ela se refere ao nascimento do filho, aos atrasos hospitalares nas horas críticas logo a seguir ao parto, ou ao aborto que teve há cinco anos - descolamento da placenta, na mesma altura em que lhe diagnosticaram trombofilia, uma condição que torna o sangue demasiado espesso para correr nas veias. Entre tudo isto, Carla faz contas de cabeça: “Vou fazer 44 anos no dia 27 de janeiro, o Marcos vai fazer dez no dia 28. Se soubesse o que sei hoje, tinha feito tudo para que ele tivesse nascido no meu aniversário. Dois dias tinham feito a diferença...” Dois dias há dez anos que teriam mudado a vida da sua família, e ainda assim zero arrependimentos. “Nunca escondi a ninguém ter um filho nestas condições.”

Depois de cinco anos como mãe a tempo inteiro, Carla teve de procurar trabalho. Primeiro num restaurante, depois num hospital, outro restaurante, e a enumeração perde-se por aí. Foram demasiados trabalhos, demasiados sítios, parece impossível nomeá-los um a um com exatidão, e apesar de tudo todos têm um denominador comum. Carla fez sempre o horário noturno, saía de casa quando os outros se preparavam para dormir, de dia tinha de cuidar do filho, nunca houve margem de manobra para trocas de turnos. Hoje trabalha à noite num hospital em Portimão, ganha o salário mínimo, e continua a fazer contas. Ao salário junta os 108 euros que recebe todos os meses da Segurança Social, o valor do subsídio de assistência a terceira pessoa, mais o abono do filho. “Não dá nem para as fraldas”.

Além disso, está frio. Tanto a sua casa como a da mãe são pequenas, mas o espaço vence os dois aquecedores elétricos nunca desligados. “A casa da minha mãe também precisa de algumas obras, mas nada de muito urgente”, diz Carla com tranquilidade aparente. Em último recurso, junta-se a outras mães que conheceu através de um grupo de Facebook - “Mães e cuidadoras informais” - e juntas arranjam forma de ganhar dinheiro. Em 2019 fizeram calendários e venderam para todo o país através da rede social. Com esse dinheiro, comprou uma cadeira de transporte para o Marcos. Já este ano, para pagar a fisioterapia, editou um CD com as outras mães. No final de 2019 apresentou o requerimento para receber o PSI - Prestação Social para a Inclusão - e está à espera de resposta.

A rotina diária de Carla Caixinha e do filho Marcos é sempre feita devagar, com toda a calma e carinho do mundo

Só deixa a matemática de lado para se concentrar no momento. Estamos a meio da tarde, Marcos já chegou à casa da avó, impõe-se a rotina diária. O ambiente parece improvisado. Não é. Carla está com o filho em casa da mãe e orienta-se com rapidez e precisão por todas as coisas precisas, sendo que a primeira é sentar o filho no sofá. Enquanto o som da rádio vai intercalando com o tique-taque do relógio na parede, Carla vai à cozinha fazer o lanche e explica que Marcos “só come alimentos passados.” Marcos fica na sala, sentado com as pernas à chinês. Carla é rápida e nunca deixa de dar atenção ao filho, apesar de ele não precisar. Está ainda mais bem disposto do que a mãe, mantém o sorriso no rosto e uma paciência genuína, é o melhor anfitrião que alguém podia pedir. E hoje está sem fome. “Depende da agitação e do cansaço”, explica Carla. “Hoje está calmo. Normalmente adormece logo, talvez por causa dos estímulos dos outros miúdos.”

Marcos está na quarta classe. Todos os dias tem dez a quinze minutos de contacto com os restantes colegas. É impossível alguma vez vir a estar completamente integrado, e Carla é a primeira a dizê-lo. Sem paninhos quentes, sem eufemismos hesitantes, encarando a realidade de frente. “O ano em que ele está não corresponde ao ensino dos outros meninos, mas ele gosta da escola e é bem acompanhado pelas auxiliares de lá. Tive muita sorte com a escola.” Marcos regressa da escola ao início da tarde, e é só a partir daí que o dia de Carla começa, a maior parte na casa da mãe. Daniel, o irmão de 20 anos, entra na sala e Marcos reage de imediato, aceitando o seu colo por momentos. Carla explica que “ele deu um pulo enorme nos últimos anos”, e também por isso tem sido complicado conseguir comprar o material necessário para o dia-a-dia, como a cadeira do banho. No entanto, apesar de ter nascido com 100% de incapacidade, “é um miúdo saudável e só vai uma ou duas vezes por ano ao hospital.” O que não significa que a paralisia cerebral não exija medicação diária. Enquanto se prepara para rumar a sua casa, Carla vai buscar algo a uma mesa num canto da sala. Em cima está uma caixa com todos os medicamentos de Marcos. “Toma cinco comprimidos de manhã, um à tarde, e quatro à noite”, explica.

O Largo dos Cooperantes é uma ilha de prédios com vista de 360º para a cidade de Portimão. O dia de sol é suplantado pelo vento agressivo. Carla mora a menos de 200 metros da casa da mãe, mas a viagem é morosa, complexa, lenta. Angustiante. Carla pega no filho ao colo, sai de casa, deixa o aviso: o percurso tem sempre de ser feito de carro. Coloca o filho no banco de trás, demora até deixá-lo confortável, aperta-lhe o cinto, verifica se está tudo bem. Não tem pressa. A lentidão é boa e necessária. Os 200 metros são longos, e o carro avança devagar. Quando por fim estaciona em frente a casa, o processo inverso de trazer o filho para dentro é interrompido pelo barulho de uma mota. Alberto, o marido, acabou de chegar do trabalho. Tem algumas horas de descanso até começar o turno noturno. É ele que sobe as escadas até casa com o filho ao colo.

Apesar dos horários por turnos imprevisíveis, Alberto faz tudo para estar presente no dia-a-dia de Marcos

Alberto tem 49 anos, é GNR há 29 anos, está na esquadra de Loulé há 16. Fala em voz baixa, como se não quisesse roubar as atenções ao filho. “É uma criança muito bem disposta, super sorridente, não tem mau acordar.” Ressente-se dos horários difíceis, mas sabe que “há falta de pessoal” e, para já, não há muito que possa fazer. Faltam seis anos para se poder reformar. Está à entrada da sala de estar a contemplar o filho a brincar com o seu novo amigo. O papagaio chama-se Nico e dá-se às mil maravilhas com Marcos. Foi-lhe oferecido há poucas semanas, mas parecem conhecer-se há mais tempo. Marco mostra que é capaz de abrir ainda mais o sorriso, que esmorece assim que Carla anuncia a hora do banho. Está na altura de voltar a casa da avó.

A viagem de regresso é mais fácil graças a Alberto. A preparação para o banho, no entanto, torna-se complicada devido à falta de espaço. A casa é pequena, a casa-de-banho apertada. Os pais dividem tarefas, não param um segundo de cuidar do filho, fazem-no bem. Alberto dá banho à criança, Carla seca-o e veste-o no fim. “Quem pensa que é fácil…” diz Carla, e as reticências ficam a pairar sobre a sala como o vapor que ainda sai da casa de banho, apenas os disparos da máquina fotográfica perturbando o momento. Não é fácil. Marcos não é como qualquer outro rapaz de nove anos. O cuidado exigido é maior, acidentes acontecem com mais facilidade, é preciso decidir rápido. Felizmente Marcos teve sorte nos pais que lhe calharam. “O cheiro não passa nas câmaras. Fica só para nós. É um segredo só nosso”, ri-se Carla, e Marcos oferece um sorriso verdadeiro, mesmo quando o frio aperta depois do banho. Frio não é com ele.” “Mas está a sorrir”, contrapõe Alberto. E tem razão. A verdade é que as horas passam, a agitação causada pelas visitas tarda a diminuir, e mesmo assim Marcos raramente pára de sorrir. Ao fim da tarde, Marcos já tem o pijama azul vestido e parece lutar contra o cansaço por simpatia para com a família. Janta sempre por volta das 19h, hora a que a avó regressa do trabalho. Depois, vai dormir junto dela, libertando Carla para descansar um pouco antes do serviço noite dentro. Estão os três cansados, mas nunca perdem a simpatia hospitaleira e acedem a um retrato de família. Preparam-se, aconchegam-se no sofá, a rádio é desligada. Ouve-se apenas o barulho dos beijos dos pais ao filho. Estão a ser fotografados, mas os beijos não são para a fotografia.

Policromógrafo hoje
A boa disposição de Marcos Fanico no final de um dia cansativo faz com que os pais esqueçam o próprio cansaço

Carla e Alberto têm todas as razões para se sentirem sós. No entanto, a cada passo fazem referência a um “nós”. Não se referem apenas à família, à avó de Marcos, ao irmão de Marcos, ao papagaio que oferece movimento à casa. O “nós” são todas as outras pessoas que conhecem em situações similares, todos os pais, mães, avós, vizinhos que todos os dias cuidam de quem lhes está próximo e se juntam entre eles para o continuarem a fazer. É esse nós que Carla usa para explicar como pôs mãos à obra para conseguir uma nova cadeira para o filho, juntamente com outras mães. E é nesse “nós” que cabe a luta impossível de um cuidador informal, e é nesse nós que essa luta se eleva e se torna possível. Carla Caixinha é a sócia número 84 da Associação Nacional de Cuidadores Informais (ANCI). A sua sede é longe de Portimão, mas felizmente cresceu nos últimos anos e chega hoje a vários pontos do país, mesmo que nunca consiga ser um escudo completo contra as dificuldades dos dias, sempre diferentes ao longo do tempo. Neste momento, diz Carla, o filho precisa de duas cadeiras. Uma de passeio, porque a que tem já não lhe serve e seria impensável privá-lo da rua, e outra de alimentação, para que comer não se torne uma tarefa impossível para si e para os pais. As dificuldades não são novas - sobretudo com os atrasos da Segurança Social na entrega de material ao filho - mas Carla está habituada a fazer o dinheiro esticar, entre pedidos de empréstimos e ajudas da sociedade, fazendo escolhas e tentando comprar aquilo que Marcos precisa com mais urgência. É uma luta inglória: no caso da sua família, tal como em milhares de casos espalhados pelo país, tudo é urgente.

II“Passo 24 horas por dia nesta casa com a minha mãe”

Maria dos Anjos começou a perceber a dimensão do problema em 2008 quando a irmã foi diagnosticada com Alzheimer. Tinha 48 anos, era publicitária, tinha dois filhos de 14. Morreu seis anos depois, e durante esse tempo coube a Maria tomar conta dela e ajudar a criar os sobrinhos. A falta de apoio foi enorme, e parecia multiplicar-se. Maria foi conhecendo casos e mais casos idênticos. “Eu trabalhava numa pequena empresa de seguros e tinha de faltar assiduamente e gastar as férias todas para estar com a minha irmã, levá-la ao médico, ajudá-la.” Os seis anos foram mais que suficientes para entender que “não havia legislação que me protegesse.” Acabou por sair da empresa, ir para o fundo de desemprego, pediu a reforma mal pôde - e viu-a ser diminuída em metade.

Maria juntou-se a outros cidadãos que tinham começado a fazer perguntas, bater a portas, pedir audiências. Em 2015, já a associação Cuidadores Portugal - parte da rede europeia de cuidadores informais, a Eurocarers - sublinhava a importância de um estatuto do cuidador, entrando em contacto directo com o governo - um trabalho conjunto que hoje se mantém. O debate em torno dos cuidadores informais saía aos poucos da obscuridade, dava os primeiros passos na sociedade civil. Em setembro de 2016 chega uma petição à Assembleia da República pela criação do Estatuto do Cuidador Informal - um documento que reconhecesse a existência destes milhares de cidadãos desprotegidos. A petição necessitava de 4 mil assinaturas para ser contemplada pelos deputados, teve 14 mil. O grupo cresceu, continuou a mobilizar-se, e dois anos depois nasceu a ANCI - Associação Nacional de Cuidadores informais, da qual Maria é hoje vice-presidente.

E continua a ser cuidadora. “Tomo conta da minha mãe 24h por dia, sete dias por semana”. Apesar de tudo, aponta que a sua situação atual não é das mais graves. Maria Antónia tem 90 anos e é cega, mas está completamente lúcida, conhece a sua casa no Barreiro como a palma da mão, caminha em passo miúdo tateando as paredes num ritmo enérgico. Mesmo assim, Maria raramente arreda pé, também mora no Barreiro, as duas casas são a poucos minutos a pé uma da outra, nunca tem folgas ou férias, a sua vida é toda feita ali. O trabalho da associação é quase sempre feito nos tempos mortos em casa da mãe. Luta por algo que já não lhe mudará a vida. A ferida causada pela doença da irmã começou a sarar, mas não esquece os seis anos que passou ao lado dela: “Já estive exausta, zangada, desiludida. Agora estou só cansada.”

Maria dos Anjos nunca passa muito tempo a falar de si. A rede de contactos da ANCI é enorme, mas ainda assim insuficiente. Maria conhece Carla e Marcos e a sua situação em Portimão, ou o caso de Natália e António Formiga, isolados no Monte dos Sapos, em Mértola. Mas fala destas vidas quando poderia falar de outras, de norte a sul do país. Contar outras histórias, conhecidas ou não da associação, levantar outros problemas, deixar mais questões no ar.

Confinadas a uma pequena casa no Barreiro, mãe e filha fazem pelo menos uma caminhada por dia à volta do quarteirão

Poderia contar a história de Albérico Ferreira, de Chaves, que aos 84 anos cuida sozinho da mulher, com Alzheimer desde 2014. Têm um filho desempregado e Albérico foi forçado a vender o café que geria, para pagar as despesas médicas da mulher. Um homem já sem forças, que admite sem vergonha que “passam semanas em que só saio para ir às compras. Estou a ficar como ela.”

Poderia contar a história de Delfim Dias, de Rompecilha, São Pedro do Sul, Viseu, que está há dez anos a tomar conta da mãe, também com Alzheimer. São 24 horas por dia, todos os dias. A dedicação custou-lhe o casamento, e em troca recebe uma pensão de “pouco mais de 100 euros.” Já perdeu a conta ao número de vezes que tentou marcar uma junta médica que verificasse o estado da mãe. “Aqui no interior as coisas são diferentes. É tudo mais lento.”

Poderia contar a história de Rosa Oliveira, 34 anos, de Vieira do Minho, que teve de deixar de trabalhar depois do marido ter ficado tetraplégico há dois anos, após cair de uma árvore enquanto trabalhava. Tem 40 anos e está reformado por invalidez, tem uma filha de nove, está à espera do complemento por dependência. Além de cuidar do marido, Rosa cuida também da mãe da patroa, acamada.

Ou poderia contar a história de Esperança Romeira, de Vila Real de Santo António, que cuida há 42 anos da filha com paralisia cerebral, é viúva há seis anos, está sozinha no fim do Algarve e queixa-se da falta de serviços e de apoios. Algo que não a impediu de levar várias vezes a filha a Cuba para tratamentos. Sempre pôs a filha em primeiro lugar. Há um ano teve um derrame às quatro da manhã e recusou ir de ambulância para o hospital, “porque não tinha ninguém com quem deixar a menina.” Está a cegar, mas lembra-se bem do dia 25 de setembro de 2019. “Fui até Loulé, a um comício de campanha do Partido Socialista. Consegui falar com o Primeiro Ministro e contei-lhe a minha história. Ele pediu a um dos homens que estava com ele para apontar os meus dados, mas ainda estou à espera de resposta.” Agora está a considerar ir a Lisboa, à Assembleia da República.

Poderia contar muitas outras histórias.

Os dados sobre Cuidadores Informais

Não existem números exactos, muito menos oficiais. Existem estimativas. Um relatório da Comissão Europeia intitulado “Informal Care in Europe”, publicado em 2018, destaca números do mais recente inquérito sobre a qualidade de vida dos europeus (EQLS). Em Portugal, 13% da população total é cuidadora informal, uma percentagem que é de 10% nas pessoas com mais de 65 anos. Um Inquérito Nacional de Saúde mais antigo (2014) estimava existirem mais de 1,1 milhões de cidadãos com mais de 15 anos a prestar cuidados informais de saúde a terceiros. Estes terceiros são crianças e adultos, incapacitados, que requerem apoio por doenças crónicas, raras, deficiências, ou simplesmente velhice. Destes, cerca de 470 mil fazem-no mais de dez horas por semana. Dados que, juntamente com outras projeções em termos absolutos, apontam para a existência de 800 mil cuidadores informais portugueses, 200 mil dos quais a tempo inteiro. O ECI designa estes últimos por cuidadores informais principais. Ou seja, que tratam de forma “permanente”, ao contrário do “não-principal”, que cuida de forma “regular”, mas não permanente. Segundo dados avançados pela associação Cuidadores Portugal, este trabalho invisível tem um valor económico de 333 milhões de euros por mês - 4 mil milhões de euros por ano. A Eurocarers, “a voz europeia dos cuidadores informais” estima que o valor ande à volta dos 340 mil milhões de euros por ano nos vários países europeus, tendo em conta as horas despendidas por esta parte da população, e quanto esse trabalho custaria caso fosse remunerado.

Depois da petição ter chegado ao parlamento, todos os partidos políticos da anterior legislatura apresentaram projetos-lei e, após debate e negociações parlamentares, todos retiraram as suas iniciativas a favor de um texto único. A 5 de julho de 2019, o Estatuto do Cuidador Informal (ECI) foi aprovado no parlamento por unanimidade. Para Maria dos Anjos, a aprovação foi um “passo gigante”. Assegura que tal só aconteceu devido aos esforços da ANCI, que foi progressivamente ganhando força, reclamando cada vez mais atenção para o problema, pressionando os decisores políticos a atuarem. “Numa fase inicial, sobretudo depois de surgir algum interesse da comunicação social, a verdade é que sentimos abertura por parte da classe política.” O texto aprovado registava as linhas mestras do estatuto, mas remetia a sua regulamentação específica - a cargo do Governo - para dali a 120 dias.

Cuidadores informais na União Europeia
Em 2015

Cuidadores Informais na União Europeia em 2015
Fonte: EQLS 2016

O prazo dos 120 dias terminou a 6 de janeiro de 2020, dia em que Ana Mendes Godinho, Ministra do Trabalho e da Segurança Social, foi ouvida no parlamento para apresentar o Orçamento de Estado de 2020. No mesmo dia, a ministra assinou a primeira portaria - de um total de três - que visa avançar com a regulamentação do ECI. Nesse documento estão definidas as regras para que os cidadãos possam ser reconhecidos como cuidadores informais, e o prazo a partir do qual podem fazê-lo - 1 de julho de 2020.

Maria dos Anjos é clara: o Governo “está a protelar os prazos” e a “empurrar o problema com a barriga”, adiando todas as respostas outra vez, desta feita para 1 de julho. A segunda portaria - que visará regulamentar os projetos piloto experimentais - está prevista ser assinada durante o mês de janeiro, sendo que a última portaria só verá a luz do dia depois dos pilotos estarem concluídos, significando que uma aplicação universal do estatuto poderá só arrancar em 2021. Por responder ficam, para já, questões como o “reforço da proteção laboral” dos cuidadores (o governo ainda está a “proceder à identificação” de tais medidas legislativas), o direito ao descanso e o acesso à Rede Nacional de Cuidados Continuados, e as verbas que estarão de facto disponíveis, além do número real de pessoas que poderão ser abrangidas pelo estatuto (a portaria refere-se apenas aos cidadãos que já recebem subsídios por dependência e apoio a terceira pessoa). Numa tomada de posição oficial e respetivo caderno reivindicativo, entregue no dia 13 de janeiro ao Presidente da República e aos ministros e secretários de estado do Trabalho, Segurança Social e Saúde, a ANCI lembra que uma “autêntica mudança de paradigma” nesta matéria envolverá um investimento na contratação de mais profissionais para apoio à pessoa cuidada e ao cuidador, bem como nas respostas sociais de suporte”, hoje “manifestamente insuficientes.”

Ao Expresso, a Ministra do Trabalho e da Segurança Social (MTSS) diz que os projetos-piloto experimentais (PPE) para os cuidadores informais consistirão num subsídio “acumulativo” aos já existentes. No entanto, Ana Mendes Godinho não adianta o valor a que cada participante terá direito, nem o número de pessoas que serão abrangidas. A lista dos 30 concelhos também não foi avançada, tendo a ministra dado o exemplo dos concelhos de Évora e Viana do Castelo como alguns que farão parte da iniciativa. O objetivo é os PPE estarem presentes em todos os distritos, para que a amostra possa ter em conta as “diferentes realidades” do país. O novo subsídio não é uma medida definitiva, e a sua existência será revista uma vez terminados os PPE, que vão durar 12 meses.

Em relação à verba presente no Orçamento de Estado para os cuidadores informais (30 milhões de euros), a ministra esclarece que esta diz respeito apenas à soma das prestações sociais a que os cuidadores terão direito durante os PPE. O governo teve em conta critérios como o número “potencial” de cuidadores informais nas zonas, a existência de três técnicos superiores para acompanhamento, ou a existência de lares de idosos com acordos de cooperação com o Estado, bem como o número de camas.

Questionada se o governo já entrou em contacto com esses lares, a ministra diz que a adenda de cooperação com os mesmos para o ano de 2020 está a ser negociada, um processo que o executivo “espera concluir até final de fevereiro.” Só depois o Estado entrará em contacto com os representantes do terceiro sector e da economia social, necessários para a implementação da medida. Para já, o governo está só a trabalhar na teoria: ou seja, nas regras dos PPE, em articulação com o Ministério da Saúde e o Ministério das Finanças, e a “capacitar os serviços da Segurança Social (SS) para garantir que essas regras são idênticas em todo o país. O MTSS diz que o objetivo é a regulamentação ser publicada ainda no mês de janeiro, na 2ª de três portarias adjacentes ao ECI. Os PPE “terão início a seguir à entrada em vigor da portaria”, diz a ministra, e não vão esperar pelo arranque do processo de reconhecimento dos cuidadores. A ANCI fala num “experimentalismo restrito”, pois a esmagadora maioria dos cuidadores informais “terão de esperar até ao término da avaliação dos PPE” para terem os direitos consagrados no ECI.

Sobre o porquê do governo só começar o reconhecimento dos cuidadores a partir de 1 de julho, tendo em conta que o ECI foi já aprovado em setembro de 2019, a ministra lembra que poderia ter escolhido iniciar o reconhecimento só depois de concluídos os PPE, mas que o objectivo foi “dar capacidade de concretização” ao problema, até porque “a legislação deve ter impacto no início de semestres.” Também sobre o reconhecimento do estatuto de cuidador, a ANCI avisa que a lei do governo exige que, para pedir o estatuto, a pessoa cuidada tem de estar a receber o complemento por dependência de 1º grau (caso esteja temporariamente acamada), ou de 2º grau. Isto deixará de fora todos os cuidadores informais de quem o Estado não tem conhecimento. Nesta fase, garante a ministra, é importante “a maior participação possível” da sociedade civil. Um caderno de encargos da ANCI, entregue a 13 de janeiro ao MTSS, ainda não obteve resposta.

Modelo Insustentável

Alexandra Lopes, socióloga e investigadora na Universidade do Porto, concorda com Maria dos Anjos. “O estatuto já deveria ser mais claro em relação a temas que foram empurrados para as portarias, como a relação entre o cuidador e o cuidado, ou as prestações sociais.” Na sua opinião, “não tem havido uma vontade política alargada e genuína para tornar isto uma realidade.” Ainda para mais tratando-se de um “assunto inevitável” para o futuro, tendo em conta o envelhecimento da população e o aumento da esperança média de vida. A OCDE prevê que Portugal será um dos países a envelhecer a um ritmo mais intenso até 2060, projetando que 40% da população portuguesa terá mais de 65 anos em 2050.

Cuidadores informais na Europa por idade
Em 2017

Cuidadores Informais na Europa por Idade
Fonte: “Who Cares?”, COFACE Families Europe, 2017

“Internacionalmente a pressão é forte. Todas as diretrizes europeias defendem um modelo comunitário, com uma estrutura de prestação de cuidados assentes no domicílio a cargo de equipas profissionais”, explica Alexandra Lopes. Tal cenário traz ainda outra vantagem: “Para os estados é mais sustentável financeiramente, porque institucionalizar uma pessoa é mais caro do que mantê-la em casa.” Apesar de criticar as hesitações governativas, Alexandra Lopes aponta que “não é consensual na comunidade científica o que é um cuidador”, e que por isso é necessário um processo de reconhecimento bem estruturado e com verificações. Mas avisa: se este processo (a começar dia 1 de julho) significar mais um serviço centralizado na já pesada máquina da Segurança Social, a aplicação do estatuto irá sofrer. “É nos centros de saúde locais e juntas de freguesia que os profissionais conhecem melhor a realidade de cada caso - as características do agregado familiar, as condições financeiras e socioeconómicas, a habitação… Há uma maior proximidade.” Sobre a existência dos projetos piloto, Alexandra Lopes é perentória: “Parecem-me apenas uma estratégia para ir faseando as medidas com uma preocupação financeira. E isto não é matéria para experiências.” Isso não significa que as soluções tenham de ser iguais para todos, porque cada caso é um caso. O valor do subsídio de apoio, exemplifica, não tem de ser uniforme.

Sobrecarga, depressão e ansiedade

Maria dos Anjos sabe o país em que vive. A mãe espera que a filha tome conta dela. Uma inevitabilidade tão natural quanto o ciclo da vida, algo que toda a gente deve e tem de fazer. “É uma questão cultural, tipicamente portuguesa. Vivemos com a obrigação de tomar conta da família, ponto.” Lisneti Castro conhece esta pressão de perto. É psicóloga, investigadora na Universidade de Aveiro, e trabalha diariamente com famílias para quem o peso da dependência diária é impossível de aguentar. A investigação que começou para o seu doutoramento levou-a a criar a APACID - Associação de Apoio a Cuidadores de Pessoas Dependentes, localizada em Aveiro, mas aponta a uma abrangência nacional.

“Há um padrão de sobrecarga, depressão e ansiedade, a que se junta a responsabilidade e o compromisso para com a pessoa a receber cuidados”, explica. O resultado é a vulnerabilidade de toda a família, com o ressurgimento de conflitos familiares antigos, que ficaram mal resolvidos. “O cuidador ressente-se da pessoa que depende de si, e culpa-se por esse sentimento. É uma eterna dualidade difícil de ultrapassar. Preciso de fazer isto, mas estou magoado.” Assim, Lisneti Castro e a sua equipa de psicólogos atuam diariamente para ajudar o cuidador a perceber que “essa mágoa é normal”, tentando minimizar ou evitar consequências para a saúde da pessoa - consequências que ela própria sentiu na pele, sublinha, ao ter de cuidar do próprio marido nos últimos anos de vida, antes de este morrer com problemas cardíacos.

Horas de cuidados semanais por país
Em 2017

Horas de Cuidados Semanais por País, 2017
Fonte: “Who Cares?”, COFACE Families Europe, 2017

Num estudo da EUROFAMCARE, um projecto destinado a investigar a saúde e a assistência social a idosos (e onde Portugal está representado), concluiu-se que 57% dos cuidadores admitem ligações emotivas - amor e afeição - como o principal motivo para dedicarem a vida a ajudar o outro; 15% sublinha um “sentido de dever”para o fazer, e 13% admite ser uma obrigação. Só 3% dos cuidadores apontam que adotaram esse papel por não terem qualquer alternativa. “Prefiro prescindir da minha vida pela minha mãe. É tão simples quanto isso. É assim na maioria dos casos que passam pela associação. As pessoas colocam a sua vida em segundo plano, seja pelos pais, pelos filhos, e até vizinhos”, diz Maria dos Anjos.

Manuela Martins identificou o mesmo sentimento a corroer dezenas de famílias. Quis combatê-lo. Investigadora no Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde (CINTESIS) e professora coordenadora da Escola Superior de Enfermagem do Porto, criou juntamente com uma colega um jogo de tabuleiro. Chama-se “Dar Voz aos Cuidadores” e pode ser jogado por famílias e profissionais de saúde. O objectivo é permitir que cuidadores e dependentes se possam exprimir livremente e “exteriorizar os problemas” do dia-a-dia através de perguntas simples e desafios familiares. “No fundo, é uma terapia familiar em forma de jogo, com sessões de 15 a 30 minutos, num formato não digital exatamente para fazer a família sentar-se à volta de uma mesa e conversar”.

CINTESIS

Maria dos Anjos enaltece que o fim precoce da sua carreira profissional não foi um processo violento, mas o seu caso é a exceção que confirma a regra. “As empresas não são sensíveis às constantes faltas e atrasos. Através da ANCI conhecemos inúmeros casos de bullying no trabalho e despedimentos, inclusive de mães com filhos pequenos que pura e simplesmente deixaram de trabalhar.” Os últimos cinco anos de Carla Caixinha são um bom exemplo disso. Os horários dos trabalhos não eram compatíveis com as necessidades do filho, e por isso Carla foi sempre forçada a sair e a arranjar o próximo, e o próximo, e o próximo. O que tem agora, como funcionária de um hospital à noite, é o mais estável que já teve. No texto do ECI ficaram previstas mexidas na legislação laboral no sentido de dar mais proteção a cuidadores mas, terminado o prazo dos 120 dias, estas ainda não foram avançadas pelo Governo. Ao mesmo tempo, uma diretiva europeia - que estabelece a criação de uma licença para cuidadores - foi aprovada pelo Parlamento Europeu em abril do ano passado, mas ainda não foi transposta em Portugal.

Situação laboral dos cuidadores informais por país
Em 2017

Situação Laboral dos Cuidadores Informais por País, 2017
Fonte: “Who Cares?”, COFACE Families Europe, 2017

Baseando-se na sua investigação e trabalho no terreno, Lisneti Castro alerta que “as pessoas que se tornam cuidadores - sobretudo na faixa dos 40 / 50 anos - já não retornam ao mercado trabalho. Estão a abrir mão da vida laboral”, o que tem consequências terríveis para o bem estar da pessoa e do seu seio familiar, além de sufocar ainda mais a condição económica já por si precária. No sentido de ajudar nesse contexto, Lisneti pretende estabelecer no futuro uma parceria entre a APACID e o Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP).

Desigualdade de género

É outro dado inultrapassável: a esmagadora maioria dos cuidadores são mulheres. É assim em Portugal e é assim um pouco por toda a Europa: dois terços dos cuidadores em contexto familiar são mulheres, e a sua prevalência é ainda mais elevada em situações de cuidados mais intensivos e desgastantes. Este ponto é destacado por Miriam Rocha, investigadora em Direito na Universidade do Minho, que estuda a problemática do estatuto jurídico do cuidador informal desde 2014. “O direito à protecção da saúde do próprio cuidador é inegável”, explica. É por isso importante “vigiar a aplicação prática do estatuto, para que este não substitua cuidados de saúde pelo trabalho dos cuidadores informais.”

Cuidadores informais na Europa, por género e idade
Em 2017

Cuidadores Informais na Europa, por género e idade, 2017
Fonte: “Who Cares?”, COFACE Families Europe, 2017

Por género e país
Em 2017

Cuidadores Informais por Género e País, 2017
Fonte: “Who Cares?”, COFACE Families Europe, 2017

Estando este trabalho “ainda muito associado às mulheres, ao melhorar as condições de vida dos cuidadores estaremos também a melhorar a qualidade de vida de muitas mulheres”, e isso é central para uma maior igualdade de género. Lisneti Castro acrescenta que por norma os homens desenvolvem menos competências de cuidado ao longo da vida, e quando o fazem na hora de cuidar sofrem menos psicologicamente, pois “conseguem exteriorizar e arranjar escapes mais facilmente que as mulheres.” No entanto, um estudo da OCDE (“Help Wanted? - Providing and Paying for Long-Term Care”) assinala que há mais homens a cuidar em idades avançadas (a partir dos 75 anos), um dado comprovado pelo estudo da COFACE Families Europe.

Responsabilidade de todos

“A sociedade está hoje mais preparada para debater esta questão, mas ainda há muito por fazer”, diz Maria dos Anjos. Continua cansada. Manuela Martins criou um jogo de tabuleiro que está neste momento a aproximar famílias, mas sabe que só isso não chega. “Ainda há muito caminho até termos algo objetivo e que proteja estas pessoas. Há muitas famílias com pressa. Além disso creio que o debate sobre o estatuto está muito focado no financiamento e pouco no acompanhamento psicológico.”

Não se sabe ao certo quantos portugueses serão cuidadores informais. O número é 800 000, mas serão certamente mais. Fazem um trabalho invisível, que aprenderam sozinhos ou com pouca formação, não são recompensados por isso. Colocam a vida que tinham em suspenso, e a cada dia vão reduzindo as probabilidades de a recuperarem. Alexandra Lopes sublinha que é necessário reforçar a mensagem: “O apoio é um direito e não um favor. Quem presta cuidados está a assumir uma responsabilidade que é de toda a sociedade, e a dar cabo da sua própria saúde no processo. Na minha opinião, o mínimo que o Estado pode fazer é apoiar essas pessoas, dar-lhes condições para descansarem. O reconhecimento foi um primeiro passo, mas é um passo pequeno.” Maria dos Anjos finaliza: “Sim, foi um passo importante mas que não chega. Ainda antes da associação nascer que estamos a lutar por pessoas espalhadas por Portugal inteiro, muitas delas isoladas e sem voz. Temos de continuar.”

III“Eu e o meu marido não vivemos. Estamos aqui todos os dias sozinhos. Isto é viver?”

António sonhou com a Casa Formiga durante anos. Quando a crise lhe asfixiou o negócio e sustento, ele e a mulher decidiram que era altura de concretizar esse sonho. Venderam a casa em Portalegre, pagaram as dívidas a toda a gente, mudaram-se para o Monte dos Sapos. Estavam a poucos quilómetros do concelho de Mértola, com nenhuma razão para se sentirem sozinhos. A construção da casa significava a reforma merecida depois de 40 anos de trabalho, e um início de casamento interrompido durante três anos pela guerra do ultramar. Era também o futuro da família que tinham construído, o futuro das filhas e dos netos, as férias de verão, o Natal, a Páscoa. Era um plano perfeito com vista para o coração do Alentejo.

No dia em que António teve o AVC, o médico disse a Natália que era capaz de ter salvo a vida do marido. Foi há três anos, e desde então o sossego da reforma cedeu perante uma solidão partilhada que Natália não consegue ultrapassar - ela que ultrapassou um acidente de carro que lhe destruiu a coluna, ela que ultrapassou a morte da mãe depois de cuidar dela durante dez anos. Agora, aos 71 anos e com o marido totalmente incapacitado, “já não aguento mais.” E mesmo assim continua a tomar conta dele todos dias. “Deixei de viver. Eu e o meu marido não vivemos. Estamos aqui todos os dias sozinhos. Isto é viver?...”

Os efeitos do AVC estão espelhados um pouco por toda a casa. São visíveis na rampa que dá acesso à sala de estar, no jardim tratado mas sem brio, na piscina inacabada, adiada, enterrada em cimento. Estão também espelhados no cansaço pesado com que Natália anda para trás e para a frente, a antecipar o que o marido irá precisar a seguir. É um desporto impossível. Natália não tem força para pegar em António, e mesmo assim consegue fazê-lo, uma e outra vez.

Maria dos Anjos, a vice-presidente da ANCI, conhece o caso de António e Natália mas nunca os conheceu pessoalmente. “Do que já falei com ela dá para ver que é uma senhora que tem muita raiva do que lhe aconteceu.” Maria dos Anjos está certa apenas parcialmente. Sim, o olhar de Natália é agitado e triste, mesmo quando sorri - e fá-lo com frequência. Mas quando está com o marido não se lhe vê nenhum traço de cólera. A raiva só surge quando o assunto é a redundância da burocracia, os pedidos infinitos, as informações dadas três e quatro vezes, as viagens desnecessárias que teve de fazer sozinha - a conduzir - aos serviços do Estado. Diz que nunca mais vai esquecer a primeira junta médica após o AVC de António, e a consulta de um minuto a que o seu marido teve direito. Mais do que isso, vai ficar para sempre com a pergunta do médico gravada na memória - a única que fez a Natália: “Ele fala?”. Segundo ela, o médico “nem olhou para ele, não olhou para os relatórios médicos, mal olhou para mim... Se tivesse lido os relatórios médicos sabia que ele não conseguia falar.” O novelo burocrático ainda não viu o fim. Natália continua a reclamar os valores retroativos do complemento por dependência que durante um ano foi mal atribuído a António, o que lhe valeu um telefonema da funcionária da Segurança Social de Beja responsável pela verificação de incapacidades. “A senhora ligou-me do seu número particular e ameaçou-me que ou parava de reclamar ou tirava-me o subsídio que já tinha. E pode pôr esta parte à vontade, porque se for preciso digo isto à frente dela.” Ao Expresso, o Instituto de Segurança Social diz que "desconhece o seu teor [do telefonema] pelo que não irá fazer qualquer comentário sobre o assunto."

Para resolver a disputa chegou a escrever ao Ministro do Trabalho e da Segurança Social, Vieira da Silva, à Secretária de Estado da Inclusão das Pessoas com Deficiência, Ana Sofia Antunes, e ao Presidente da República. Só o gabinete de Ana Sofia Antunes lhe respondeu, indicando-lhe que o caso do marido era da competência do ministério. Este Natal, que a família Formiga passou toda junta no Monte dos Sapos, Marcelo Rebelo de Sousa sublinhou durante a mensagem presidencial que “o estatuto do cuidador informal tem de passar da lei aos factos.”

Sem acesso a fisioterapia e terapia da fala, António só tem a ajuda da mulher para exercitar o corpo e a mente

Natália guarda todas as cartas, e-mails e faxes que tem trocado ao longo destes anos com a Segurança Social, sempre auxiliada pelas filhas. Explica com fluidez cada fase do processo, cada pedido e reclamação. “Antes, não sabia os direitos que as pessoas têm.” Agora Natália é uma cidadã informada. Vai ao detalhe para explicar porque é que algo não está bem e não é justo. “O PSI [Prestação Social para a Inclusão], por exemplo, está mal feito. O que é aquilo? Tem lá uma alínea em que diz que só são ajudadas as pessoas que ficaram deficientes com menos de 55 anos. Então a partir dos 55 anos o Estado lava as mãos e os cidadãos ficam por sua conta?” Natália ironiza, e a dor é percetível. Se o marido queria ajuda do Estado devia ter tido o AVC antes dos 55 anos. Logo a seguir, compõe o desabafo: “Não estou contra quem beneficia... Não acho é que isto faça sentido e sinceramente não sei o que é que este país quer mais das pessoas.”

Passaram três anos e, mais do que dinheiro, Natália quer ajuda. “Ele está comigo cá em casa há nove meses. Em nove meses, teve fisioterapia em 15 dias. Isto não é uma brincadeira? Eu não tenho formação para o ajudar...” Garante que se o marido tivesse acesso frequente a fisioterapia e terapia da fala, a sua recuperação estaria muito mais avançada. Hoje António já fala. Não esbanja palavras. Fala apenas com a mulher, responde-lhe só a ela, ainda hesita em perguntas que antes sabia, leva o seu tempo a escolher o que quer dizer e como dizê-lo, e irrita-se quando os seus esforços falham. Mas fala. Natália garante que ele está muito melhor do que antes, e que as melhorias devem-se a estar ali, na casa que construiu para a sua família. “Da última vez que esteve num lar, emagreceu 18 kg em 3 meses”, diz, já depois de lhe preparar o lanche e alinhar alguns dos 15 comprimidos que o marido tem de tomar diariamente.

A casa do Monte dos Sapos é terapêutica. António detém-se a olhar o jardim que antes tratava, e Natália conta que numa tarde normal é capaz de ficar por lá, na companhia das flores e das plantas, ensaiando e testando os nomes delas outra vez, tentando aprender tudo de novo. Já reconhece a planta Bela-luísa (limonete), o chá preferido de ambos. Dentro de casa é atraído pelo canto da sala onde estão as fotografias da família, e não se enerva quando não consegue dizer à primeira os nomes das filhas e das netas. António ainda tem vida dentro de si, e parece sabê-lo. Reage ao que o rodeia, mostra carinho pela mulher. Se lhe pedem para ficar quieto para as fotografias, eleva-se a custo da cadeira de rodas e beija-a na boca. Natália disfarça a vergonha, corresponde ao beijo, afaga-lhe o cabelo.

António e Natália Formiga de costas voltadas para a vista com que sempre sonharam, no Monte dos Sapos
António e Natália Formiga de costas voltadas para a vista com que sempre sonharam, no Monte dos Sapos

A rotina noturna de Natália aproxima-se. Vai acender a lareira, adiantar o jantar, prepara-se para dar banho a António. Antes, o marido passa alguns minutos na casa de banho e depois no quarto. Sozinho. São os únicos minutos do dia em que Natália não está com ele. “Ele gosta de ter a sua privacidade. Não lhe posso tirar isso.” António permanece em silêncio, controla a impaciência. Quando chegar a hora de se despedir, irá agradecer com um sorriso e um movimento respeitoso de cabeça. Depois de comerem, quando o céu alentejano escurecer, vai dormir na casa com que sonhou, a mesma casa onde passou este natal com todas as filhas e os netos - tradição que Natália garante que irá continuar, porque o futuro da família ainda vive ali no Monte dos Sapos, apesar do desastre.

Quando António adormecer, Natália terá alguns minutos para respirar. Mostra o caderno onde escreve todas as noites um bocadinho. “Faço isto para manter a sanidade mental.” Encarar a raiva aflita e exprimir o orgulho silencioso. Vai continuar a escrever a história da sua família. “A minha neta teve a ideia de fazermos um livro juntas. Está a tentar convencer-me...”

O livro ainda não existe, mas pela voz de Natália já é uma realidade. Uma ideia materializada, um projeto desenhado a cada momento que passa a cuidar de António, palavras não escritas mas que estão lá. É como se o futuro livro de Natália fosse o oposto do Estatuto do Cuidador Informal, para já apenas palavras escritas com o peso da lei mas vazias de conteúdo e valor concreto. Palavras irreais para pessoas reais. Centenas de milhares de pessoas que todos os dias dão a sua vida pelos outros, sem saberem se algum dia uma pequena parte dessa vida lhes será devolvida.


TextoTiago Soares
VídeoRúben Tiago Pereira
FotografiaNuno Botelho
Web DesignTiago Pereira Santos
Web DeveloperMaria Romero
Coordenação editorialJoana Beleza
DireçãoJoão Vieira Pereira
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