“Na guerra alguém vai morrer e alguém vai viver”, dirá o homem responsável por mandar os outros homens para a linha de fogo. “A manutenção de paz aqui está mais próxima de um ato de guerra. Estamos a ver crianças e mulheres a serem mortas: devemos continuar a aplicar as regras administrativas ou devemos tomar a nossa responsabilidade e salvar o maior número de vidas possível?”

Estamos num dos países mais perigosos do mundo, onde os grupos armados ditam a lei e agem com total impunidade. Há mulheres que foram violadas e viram os maridos serem mortos à sua frente. Crianças órfãs que agora vagueiam sem destino. E famílias inteiras confinadas a campos dos quais nunca podem sair, com medo de serem assassinadas. “Não tenho outra imagem do mundo que não seja este sítio. Penso que o mundo acabou e que, do mundo, só resta este lugar.”

O fim do mundo é também o fim de uma longa viagem de dois anos. E da história de um grupo de jovens que entrou um dia no Exército com o objetivo de partir numa missão. “Sabemos que não vamos mudar o mundo aqui. Mas nem que seja a mais pequena diferença que possamos fazer, nós vamos fazê-la.”

“É para matar?”

“É para matar”, responde-lhe o superior, apontando para um retrato preso com um clip no canto superior esquerdo do mapa da cidade.

A fotografia foi sendo substituída ao longo das últimas semanas. O rosto mudou pelo menos quatro vezes. Já foi mais novo, depois mais velho. Já teve pera, depois a cara lisa. Agora estavam finalmente confiantes de que a última versão seria verdadeiramente o retrato derradeiro daquele homem que tinha chegado à cidade havia já uns meses. Veio de mota e chegou a trabalhar como moto-taxista. Esteve apenas uns dias em Bangassou, no sudeste da República Centro-Africana, já perto da fronteira com a República Democrática do Congo. O suficiente para fazer alguns contactos e conhecer mulheres. Várias. Foi-se embora sozinho mas, passado algum tempo, quando voltou, já veio acompanhado de vários homens para formar o seu próprio grupo armado. E provocar o terror.

O homem da fotografia chama-se Crépin Wekanam, mas por estas paragens é mais conhecido pela alcunha “Pino-Pino”. É um fora-da-lei que entrou no mundo do crime em Damala, uns poucos quilómetros a norte da capital, Bangui, e tem vindo a fazer o seu caminho para leste. Agora era já um dos principais líderes armados da cidade. Um sanguinário. Suspeita-se que terá tido ligações ao massacre de mais de uma centena de muçulmanos há uns meses e a um ataque que resultou na morte de oito soldados ao serviço das Nações Unidas.

É preciso pará-lo, custe o que custar.

19h40. Noite cerrada nos arredores de Bangassou. Estamos num campo militar que fica no meio de uma floresta. Um grupo de homens está reunido debaixo de um toldo azul, à volta de uma mesa improvisada com um caixote assente na terra, em cima do qual está o mapa com a tal fotografia em anexo. Cada um usa uma pequena lanterna de cabeça. Um deles vai explicando as movimentações que estão a ser planeadas para a manhã seguinte e, com ajuda de um marcador preto, vai assinalando os percursos por cima do mapa. O primeiro alvo é um bar situado mesmo ao lado do mercado da cidade. O segundo uma casa não muito distante. Se o líder do grupo e os seus homens se colocarem em fuga não vão conseguir escapar a uma outra rede de emboscadas que está montada mais a norte, com o objetivo de os surpreender.

“Olhem bem para a cara dele”, avisa o segundo-comandante. O mesmo que dá a luz verde para eliminarem o alvo, caso a situação chegue a esse ponto. Matar é sempre um último recurso. Mas pode ser inevitável perante um homem considerado extremamente perigoso, que deverá estar bem armado e constituir uma ameaça à vida dos militares que o encontrarem.

Em Bangui, a cerca de 700 quilómetros de distância dali, o general que comanda as forças que estão ao serviço das Nações Unidas, Balla Keita, vai estar a acompanhar a operação no fortificado complexo que serve de quartel-general à Força de Estabilização da ONU no país, na avenida Barthelemy Boganda. Keita não teve dúvidas a partir do momento em que as coisas começaram a complicar-se em Bangassou: só os portugueses podiam resolver aquela situação. Estão no país como Força de Reação Rápida, o que quer dizer que podem ser empregues a qualquer altura para resolver qualquer tipo de problema.

Mas iria ser tudo menos fácil. Como diria um velho habitante de Bangassou a quem foi mostrada aquela mesma fotografia no meio de uma das ruas da cidade, com a ação para apanhar o alvo já em curso:

“Esqueçam esse homem. Ele é invisível”.

Um assassino romântico

“O planeamento é a primeira baixa em combate.”

Esta é uma das principais lições que se aprendem durante os três meses que dura um curso de Comandos, em especial nas duas últimas semanas de formação, nas quais os militares são postos à prova em exercícios destinados a simular a realidade do combate. E aprende-se quase sempre da pior maneira. Na maior parte dos casos são surpreendidos no terreno por situações que não estavam à espera e têm de adaptar aquilo que tinham planeado à realidade que vão encontrando. Ao longo da vida vão recordar muitas vezes que o “planeamento é a primeira baixa em combate”. Ivan Mariani, 21 anos, diz mais ou menos o mesmo mas por outras palavras: “Tudo é imprevisível no real”.

Esta missão na República Centro-Africana é a primeira da sua vida.  “Há dois anos nunca pensei estar aqui, num país como este, a fazer o que estou a fazer.” Faz parte do conjunto de 23 militares que conseguiram terminar o 127º curso de Comandos, no final de novembro de 2016. E integra um grupo ainda mais restrito de 11 jovens que o Expresso acompanhou desde o primeiro dia em que entraram no Exército, em abril de 2016, para dar início à recruta. Dois anos depois, estamos com eles em África.

Mariani e os outros sabem que a capacidade de adaptação não é válida apenas em combate mas em tudo o resto num teatro de operações. Quando, no final de novembro de 2017, o general que comanda as forças da ONU decidiu enviar os portugueses para Bangassou, eles já sabiam que muito provavelmente teriam de pô-la em prática. E muito antes de conseguirem chegar ao destino.

Entre Bangui, a capital do país - onde a Força portuguesa tem o seu aquartelamento permanente -, e Bangassou distam pouco mais de 700 quilómetros para leste. Mas é uma distância que pode demorar vários dias a percorrer - os caminhos são de terra, cravados de pedras e buracos. Neste caso a viagem levou sete dias e algumas das viaturas pesadas do apoio logístico tiveram mesmo de ficar a meio do caminho e voltar para trás, por não conseguirem passar. Entre elas a que permitia aos portugueses serem autónomos no que toca ao tratamento e abastecimento de água. Teriam de encontrar uma alternativa à chegada. Avarias nos Humvees blindados nos quais se deslocam foram incontáveis. Um deles chegou ao destino com quilos de fita-cola a segurar literalmente uma das molas da suspensão da viatura, que se tinha partido a meio da viagem. Uma vez mais, adaptar para sobreviver.

Os Comandos levavam dois objetivos para esta missão de um mês. “Primeiro, criar condições para acabar com a insegurança e ataques no caminho até Bangassou, em especial no troço entre Kembé e Bangassou, onde se tinham registado nos últimos meses vários ataques contra colunas de militares ao serviço da ONU. Segundo, desorganizar a rede de grupos armados na região, o que passaria por ‘neutralizar’ vários alvos”, explica o tenente-coronel Duarte Varino, comandante da 2ª Força Nacional destacada no país. E ‘neutralizar’ significaria prendê-los ou, em último caso, matá-los.

Apesar de, na prática, o planeamento ser muitas vezes o primeiro a cair, estes militares sabem que, quanto mais robusto for, maior é também a probabilidade de sucesso de uma ação. Mas, neste caso, há um problema acrescido: como se apanha um “fantasma”, um homem “invisível”, como Pino-Pino?

Quatro nomes.

Quando chegaram a Bangassou pouco mais tinham do que quatro nomes. Quatro líderes de fações armadas, quatro alvos a capturar ou a abater. Não havia qualquer informação sobre os locais mais prováveis onde pudessem estar, como se movimentavam ou com quem se relacionavam. Em alguns casos nem sequer sabiam bem como era a cara deles.

As primeiras semanas foram dedicadas a obter informações. Recolheram várias imagens da cidade a partir do ar, com recurso a um drone. Fizeram patrulhas conjuntas com a polícia local e outras forças, como os marroquinos, para que se pensasse que estavam ali apenas para manter a segurança e não numa “caça ao homem”. Aproveitaram esses momentos para ir às compras e ao mesmo tempo fazer contactos. O primeiro informador foi um muçulmano, dono de um pequeno comércio local.  

Mas algo inesperado acabaria por acontecer. Os alvos não só foram diminuindo, como isso ainda aconteceu ao melhor estilo do enredo de uma novela venezuelana. Pouco depois de chegarem à cidade, o líder de uma das facções armadas, Beri Beri, tornou-se cooperante com as autoridades. Mais tarde, um outro - Ngado - foi assassinado numa verdadeira luta fratricida pelo poder, ao que tudo indica por Pino-Pino ou a seu mando. Um quarto líder fugiu, atravessando a fronteira ali tão perto para a República Democrática do Congo, e acabou detido pelas autoridades congolesas. Dos quatro sobrava apenas um e era esse que os Comandos portugueses precisavam agora de apanhar.

Um homem, entretanto detido - que terá ajudado Pino-Pino a assassinar o seu rival -, e um miúdo de 16 anos que tinha feito parte da rede do grupo armado completam a lista dos informadores. As informações vão mudando, muitas das hipóteses acabariam mais tarde por ser descartadas. Mas permitem perceber um primeiro possível ponto fraco do alvo: o coração. Pino-Pino é um “pinga-amor”, tem várias namoradas espalhadas pela cidade. Todas as noites dorme numa casa diferente. A mais segura, com quem passará mais tempo, é Viviave, também conhecida como “Bibi”. Atacar a sua casa de noite seria, à partida, uma boa opção, dada a vantagem tecnológica conferida pelos óculos de visão noturna usados pela Força portuguesa e o facto de, a essas horas, terem menos civis inocentes pelo caminho. Mas apresentava um problema: o homem tanto podia estar lá como não estar. E, caso falhasse, a operação iria afugentá-lo.

O ataque teria de ser feito não de noite mas de dia. E não naquele local.

O alvo passa a ter um nome de código.

É preciso apanhar o “Podre”.

A lotaria

“Isto hoje até há bolachas… Os homens que vão morrer têm direito a tudo!”

Pouco passa das sete da manhã mas já é de dia há quase duas horas. O humor negro de Miranda serve para sacudir ligeiramente a pressão e o nervosismo. Agora está a comer bolachas e cereais com leite dentro da típica marmita de aço inoxidável que o Exército dá a cada um dos homens. Daqui a pouco mais de uma hora pode estar a enfrentar um grupo armado que conta com cerca de 80 homens nas suas fileiras. E qualquer um deles vai querer acabar com a sua vida.

O pequeno-almoço está disponível numa mesa abrigada por um toldo junto a um pré-fabricado, onde está também instalada a cozinha de campanha durante o mês em que os portugueses estão em Bangassou. Além das bolachas, cereais e leite, há café, chocolate em pó e hoje até existem iogurtes, ainda meio congelados (a única forma de os conservar num país onde a temperatura chega facilmente aos 40 graus).

A cerca de dez metros do local do pequeno-almoço há uma mesa improvisada no meio do acampamento. São quatro troncos redondos de madeira a fazer de pernas, tábuas para o tampo e algumas cordas a segurar toda a estrutura. Em cima da mesa estão vários documentos, nomeadamente mapas. E uma faca de mato com uma lâmina de mais de 10 centímetros.

Miranda e os outros homens, já equipados de camuflado, colocam-se agora em círculo à volta da mesa enquanto “Rocky”, o comandante de um dos três grupos de combate que constituem a companhia de Comandos, vai explicando o que é necessário fazer. Há uma tensão no ar, marcada nos rostos, enquanto ouvem as instruções.

Um primeiro grupo vai atacar um bar ao lado do mercado de Malikou, onde se suspeita que membros do grupo armado possam reunir. O segundo abordará minutos depois um conjunto de casas suspeitas que ficam situadas uns 200 metros mais à frente. Se os elementos hostis fugirem só o podem fazer para norte, onde terão à espera uma rede de emboscadas que será montada por um terceiro grupo de homens. Se estiverem naquela zona, não terão como escapar.

“Rocky” usa a faca como uma espécie de apontador para ir indicando no mapa as movimentações. Assim que o bar for “limpo” pelo outro grupo, começam eles a avançar para as casas. Pede atenção às ameaças. “Uma ameaça significa qualquer pessoa, de qualquer idade, que tenha uma arma ou um objeto cortante, que possa ferir ou matar um militar nosso: uma catana, uma faca, um pau afiado.” O armamento deste género de grupos será na maioria rudimentar mas também haverá metralhadoras automáticas AK-47. O alerta terá de ser máximo.

“Olhem bem para esta cara”, pede-lhes Rocky. E mostra-lhes outra vez a fotografia.

Noutro ponto do acampamento, um outro grupo de Comandos que terá uma função distinta dentro da ação tem a mesma fotografia e mapas da cidade. E faz igualmente planos para apanhar o alvo.

As viaturas blindadas da Força Portuguesa estão estacionadas lado a lado, prontas a saírem do campo. São brancas, com a sigla das Nações Unidas inscrita a negro em cada uma das portas, mas por esta altura já estão cobertas do pó avermelhado, resultado da terra ressequida que se levanta constantemente no ar a cada deslocação no terreno.

Ouve-se o tilintar do metal das munições. Preparam-se os cintos de balas que alimentam as MG4, as metralhadoras pesadas que seguem na “torre” de cada uma dos Humvees. A “torre” é uma abertura para o exterior onde vai o homem que tem como função estar atento a eventuais ameaças. Será também o primeiro a reagir caso a coluna seja atacada.

Fuma-se o último cigarro. Coloca-se o colete balístico ao peito, com os carregadores cheios nos bolsos da frente. Nos camuflados que envergam, o dístico dos Comandos surge por baixo da bandeira de Portugal, no braço superior esquerdo. No braço direito está o símbolo das Nações Unidas.  Os motores dos Humvees começam a roncar.

Há tempo para uma última palavra do comandante de grupo: “Pestana aberta, não vamos facilitar. Em caso de dúvida, a nossa segurança está em primeiro lugar”.  

Aproximam-se uns dos outros e colocam-se em roda, mãos direitas em cima umas das outras, formando uma torre de mãos. “Vamos a eles, vamos com tudo.” Um dos elementos do grupo inicia o conhecido grito de guerra dos Comandos, uma frase no dialecto bantu emprestada de uma tribo em Angola há meio século e que significa em português “aqui estamos, prontos para o sacrifício”.  Os outros seguem-no, gritando em uníssono. Repetem o ritual três vezes, o grito sai tão alto que se sobrepõe ao barulho dos motores.

“Mama Sumae!”

“Mama Sumae!”

“Mama Sumae!”

Dispersam a roda e dirigem-se para os blindados. Colocam os passamontanhas no rosto, apenas os olhos ficam visíveis. Em seguida os capacetes, cobertos com uma protecção azul-clara e a identificação da ONU.

Um deles desabafa:

“Vamos para a lotaria, pá!”.

“Isso é certo…”, responde-lhe o outro.

Por muito que tudo tenha sido planeado nas últimas semanas, aquela frase está-lhes sempre na cabeça: “Na realidade, tudo é imprevisível”. Nesta lotaria em particular, é a vida de cada um que pode estar em jogo nos próximos minutos. E esse risco era algo que já estava presente no momento de partida para África.

Nem convém falar muito

“Parecia que tinha vindo da guerra.”

Filipe ainda se lembra do dia em que regressou a casa, depois de “aquilo” acontecer. Durante várias horas não se sabia quem tinha sido. Todos os pais dos militares que lá estavam passaram por momentos de angústia e aflição. “Durante o curso, quando aquilo aconteceu, o meu pai, que já é uma pessoa nervosa, andava a arrancar os poucos cabelos que ainda tem.” Por isso, no dia em que Filipe lhe apareceu à porta de casa são e salvo, abraçou-o como se tivesse voltado da guerra.

“Aquilo” foi a morte do 2º furriel Hugo Abreu logo no primeiro dia do 127º curso de Comandos, na chamada “Prova Zero”. Um acontecimento que marcaria para sempre os militares que fizeram o curso. Alguns dias depois, um outro instruendo, Dylan da Silva, morreria numa cama no hospital. Ambos foram vítimas de um golpe de calor, num dia em que os termómetros passaram os 42º.

O pai nunca quis que Filipe tentasse entrar para os Comandos. Quando soube da decisão do filho, questionou-o. E, de início, tentou demovê-lo.

“Tenho de ir pai, é o meu sonho”, respondeu-lhe.

Agora estava a ver o filho partir para África, mas ainda nem queria acreditar.

“O meu pai perguntou-me há pouco tempo:

‘Mas vais mesmo?’.

“‘Vou!’”

Estávamos a 4 de setembro de 2017. E a história tem destas coincidências: no dia em que passava exatamente um ano da morte de Hugo Abreu, os militares que conseguiram chegar ao fim desse fatídico curso preparavam-se para partir em direção a África para a primeira missão real das suas vidas, depois de vários meses em aprontamento.

Já passa das 23h. Na sala de espera do Aeroporto Militar de Figo Maduro, em Lisboa, as tradicionais boinas vermelhas dos Comandos foram já substituídas pelas azuis-bebé das Nações Unidas. Há mães a chorar agarradas aos filhos, namoradas abraçadas aos namorados ou mulheres no ombro de maridos que só voltarão a ver daqui a meio ano.

Eles sabem que, apesar de oficialmente se tratar de uma missão de “manutenção de paz”, o cenário é de risco extremamente elevado. “Está lá a palavra ‘paz’ mas sabemos que isto não tem nada que ver com paz”, admite Daniel Miranda. “A minha família pensa que é só manter a calma e isso ajuda. Nem convém falar muito lá em casa sobre o que é que eu vou fazer…”

Esconder a realidade. Foi isso que Miranda fez naquela noite, bem como quase todos os outros.

Os militares são chamados pelo nome, um a um, para recolherem o passaporte e o respetivo bilhete de avião. Vão falando em pequenos grupos. Apresentam os familiares ou os amigos uns aos outros. Trocam palavras de ocasião, algumas piadas, mas não conseguem disfarçar o nervosismo.

“Muito ansioso…”, admite Rúben Ribeiro. “Mas eu acho que não faz sentido uma pessoa fazer um curso como este e não ir para um teatro de operações real. Sinto que estou treinado, preparado. Venha o que vier.”

Dentro de pouco mais de um mês, ele e os outros vão estar intensamente armados para libertar uma cidade centro-africana do domínio de um grupo armado.

A adrenalina do primeiro ataque

Como é que quatro ou cinco homens altos e encorpados podem começar a ganhar uma batalha contra um grupo armado de 150 elementos indo apenas fazer compras ao minimercado local? Com a psicologia.

Um dos grandes princípios do ilusionismo é distrair. Fazer as pessoas olhar para um lado enquanto as coisas estão a acontecer verdadeiramente noutro. Além disso, o ser humano é facilmente sugestionável e acredita frequentemente na primeira coisa que vê à frente dos seus olhos. E, mais ainda, tem tendência a generalizar.

Os “mind games” também fazem parte do teatro de operações militares. As guerras podem ganhar-se com soldados altamente treinados e armamento sofisticado, é certo. Mas uma boa parte da vitória também é feita com a psicologia. Mexer com o moral do inimigo e ao mesmo tempo manter ou elevar o moral dos próprios soldados. E desde a formação que estes homens aprendem que a ação psicológica é uma componente decisiva.

Naquele dia, os militares mais altos e fortes da Força foram escolhidos para integrar a patrulha que foi às compras nos arredores de Bocaranga. A escolha não foi inocente. O objetivo é que fossem vistos e que a mensagem passasse. A ideia era que o inimigo ficasse a pensar que a Força portuguesa era inteiramente constituída por calmeirões de quase dois metros de altura. Pode parecer simples e básico, mas o certo é que a perceção é mais uma arma.

Bocaranga é uma cidade no noroeste da República Centro-Africana e, ainda antes de Bangassou e da tentativa de eliminar Pino-Pino, foi a primeira missão da 2ª Força Nacional destacada no país, em outubro de 2017. A cidade estava há semanas ocupada por um grupo armado muçulmano autodenominado 3R (que significa “Retorno, Reclamação e Reabilitação”), liderado por um homem que se intitulava “general Sidiki”. A população, maioritariamente cristã, tinha abandonado as casas e concentrava-se num campo de deslocados junto a uma posição de uma força do Bangladesh. Tirando os membros do grupo armado - avaliado em 150 homens - a cidade estava completamente deserta. Os habitantes levaram o pouco que tinham consigo. Houve várias conversações entre o líder do grupo, representantes do governo e das Nações Unidas, mas foram sempre infrutíferas. O uso da força era o único recurso.

Faltam poucos segundos para entrar em ação. “O coração está sempre a bater… Adrenalina, medo… Sente-se uma mistura de tudo.” Para os 22 militares que há menos de um ano acabaram o 127º curso de Comandos, esta é a primeira missão real em que participam. “Praticámos no curso, mas isto é a realidade…. Aqui estou mesmo a dar a vida”, afirma David Rodrigues.

Naqueles minutos antes de tudo começar surgem as recordações: “Começamos a pensar na família, na responsabilidade que temos, na necessidade de fazermos um bom trabalho”, explica Wilson Monteiro. Uma máquina de guerra pode ser uma máquina de guerra mas não deixa de ser uma pessoa.

Os primeiros a avançar são dois helicópteros MI-35 do Senegal, que se aproximam rapidamente e abrem fogo sobre alvos estratégicos na cidade. Lá de cima 20 a 30 elementos do grupo armado são avistados a fugir em direção à igreja. Daqui para a frente os “helis” vão funcionar sempre como os olhos da Força portuguesa no céu. Chegava a vez de os Comandos entrarem por terra.

A “operação Damakongo” - como foi denominada pelo comando da missão da ONU - não deixa de ser também um caso de estudo. O grupo inimigo estava inicialmente avaliado entre 100 a 150 homens. Normalmente a infantaria prefere atacar pela certa, ou seja, com uma proporção de 3 para 1. Isso quer dizer que os portugueses deviam ter 300 homens. Mas, na verdade, não chegavam a 90.

Filipe Dias nunca se esquecerá do que sentiu naqueles instantes. “Era a nossa primeira ação. Saber que íamos entrar ali para os apanhar, pensar que podemos ter um azar de levar um tiro que possa não nos fazer regressar a casa… “

É durante o curso que se aprende a lidar com o medo. Perante o medo há três reações possíveis: uma é ficar paralisado, outra é recuar. Os Comandos são treinados para a terceira: avançar.

E avançaram.

Bocaranga é uma cidade ainda com alguma dimensão no contexto do país, tem cerca de três quilómetros de extensão. Os militares portugueses tiveram de fazer uma busca casa a casa. Os elementos do grupo armado foram fugindo à medida que sentiram o avanço do inimigo. Em certos momentos foi necessário abrir fogo. Duas pessoas foram resgatadas. Uma estava presa num anexo da igreja, os portugueses tiveram de arrombar a porta para salvá-la. Outra era deficiente e tinha sido abandonada numa casa mas não estava aprisionada.

O grupo armado deixou mais de 10 motas para trás (um bem precioso num país onde as estradas ou são péssimas ou inexistentes). Foi apreendido armamento, munições, material informático, telefones. A operação foi extenuante: demorou cerca de sete horas até considerarem que a cidade estava livre de elementos do grupo armado.

O comandante da 2ª Força Nacional destacada na República Centro-Africana, tenente-coronel Duarte-Varino, destaca o carácter inédito da acção: “Foi uma operação ofensiva. Foi a primeira vez que aconteceu na República Centro-Africana uma operação genuinamente ofensiva por parte da MINUSCA (Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas) para resolver um problema. As outras têm sido mais operações de reação a uma determinada postura dos grupos armados”.

A “operação Damakongo” envolveu ainda a localidade de Bang, uma vila mais pequena situada já mesmo na fronteira com o Chade e os Camarões, que estava ocupada por um outro grupo, o MPC, liderado pelo general Bahar. O grupo ocupou este posto fronteiriço e cobrava entrada de bens e pessoas que vinham do Chade e dos Camarões. O ataque demorou menos tempo, apenas quatro horas, mas a operação foi igualmente bem-sucedida.

Não foi feito nenhum prisioneiro de guerra em Bocaranga, mas a operação resultou na morte de três membros do grupo inimigo.

Faz parte. Desde o treino que estes homens tiveram de aprender a matar.  

A coluna militar segue na estrada que dá acesso a Bang quando encontra dezenas de pessoas em romaria na berma. Começam a bater palmas e a saudar efusivamente os portugueses à passagem dos blindados. Eram os habitantes de Bocaranga, que finalmente podiam regressar às suas casas, depois de os militares terem expulsado o grupo armado da cidade. Pela primeira vez, os novos Comandos formados no curso 127 sentiram o que é fazer a diferença.

Aramis Tavares garante que aquela é uma imagem que lhe vai ficar para sempre na memória. “De certeza que nunca na vida vou voltar a sentir isso. Foi orgulho e um arrepio, uma sensação que não tem explicação. Só mesmo passando por aquilo é que uma pessoa percebe - sentir que se pode ter o poder de mudar a vida de alguém...”

Filipe Dias recorda uma outra história: “O que tirei de mais gratificante dessa ação foi depois a população ter escrito um papel a dizer em francês ‘obrigado por terem libertado a cidade’. Cada vez que passávamos acenavam, batiam palmas... Éramos uma espécie de heróis para eles. Acho que isso para mim vale mais que o dinheiro, ver que fizemos o bem às pessoas e que, pelo menos naqueles dias em que ali estivemos, os fizemos sorrir”.

Dois anos depois de entrarem no Exército, Filipe e os restantes mostram agora uma maturidade bem distante da que apresentavam no primeiro dia de recruta.

“Sabemos que não vamos mudar o mundo aqui. Mas nem que seja a mais pequena diferença que possamos fazer, nós vamos fazê-la.”

"Se fôssemos treinados de forma
diferente não aguentávamos
a pressão psicológica. Não é
a ser treinado como uma
florzinha que aguentamos
aquilo que já tivemos de
ver aqui"

Filipe Dias

A caça ao homem “invisível”

Visto de fora parece apenas um pré-fabricado, igual a tantos outros que estão posicionados lado a lado.

Quando se passa a porta de entrada temos acesso a uma pequena sala, com uma mesa logo do lado direito que suporta um enorme rádio. Há mapas nas paredes, tanto do país como da região de Bangassou em pormenor, e diversas informações escritas com um marcador preto. Do lado esquerdo da entrada principal uma outra porta dá acesso a uma segunda sala pequena, mais reservada. É aqui que se fazem habitualmente as reuniões de planeamento das operações.

Estamos no COT, uma sigla para “Centro Operacional Táctico”. Mas, em jargão militar, é conhecido como o “Covil” - uma espécie de cérebro de toda a operação. É por aqui que vão passar todas as comunicações e a coordenação com forças de outros países que estejam envolvidas (neste caso em particular o Senegal, que iria contribuir com um helicóptero).

8h30. Ouve-se pelo rádio que a primeira metade da coluna de blindados abandona o campo da MINUSCA. O objetivo é que pareça uma patrulha normal, igual a tantas outras que os portugueses já tinham feito por Bangassou nos dias anteriores. Se o inimigo tiver vigias no mato, espera-se que seja isso que informem: será só mais uma patrulha. Na verdade está em curso a operação para tentar apanhar Crépin Wekanam, ou “Pino-Pino”, como é conhecido entre os seus apoiantes, o líder do grupo armado que tem aterrorizado a população da cidade durante os últimos meses. Ou o “Podre”, nome de código do alvo para esta operação. Ou o “homem invisível”, como diria um dos habitantes da cidade.

O primeiro alvo é um bar ao lado do mercado de Bangassou, onde se suspeita que Pino-Pino e outros elementos do grupo possam reunir-se. Os blindados que seguem na frente da coluna passam ao lado do barracão e não param, vão posicionar-se adiante. Mais uma vez, uma estratégia de diversão.

Será uma ação de choque. A partir do momento em que as portas dos veículos abrirem, os militares têm poucos segundos para percorrer rapidamente os cerca de 20 metros que separam a berma da estrada da entrada do bar e atacar em força. A ideia é lançar um ataque rápido e de surpresa para que, caso estejam elementos hostis no interior, não tenham tempo de fugir.

Tudo é imprevisível a partir desse momento. Podem estar cinco homens armados dentro do barracão que serve de bar, podem estar quarenta ou até nenhum. Mas o pior são os civis que podem aparecer pelo meio. A zona é sensível, o mercado está mesmo ao lado e apinhado de gente e é necessário afastar as pessoas do caminho. A área está repleta de mulheres e crianças. Mas entre os inocentes podem estar homens armados.

No momento em que abrem a porta para sair do blindado não sabem o que é que vão encontrar.

Finalizado o ataque ao bar, o segundo alvo é uma outra casa não muito longe, igualmente dada como suspeita. São agora 9h52. “Thunder”, nome de código do comandante da Força, informa o “Covil” que vão avançar. Um segundo grupo de Comandos progride lentamente em direção a um conjunto de casas, formando uma linha, com alguns metros de espaço entre uns e outros. Como que uma rede para apanhar a presa.

A ideia é que o inimigo, caso esteja no local, se aperceba do que está a acontecer e fuja para norte, a única escapatória possível. Mas, se o fizer, vai ser surpreendido por uma “rede de emboscadas” que tinha sido aí previamente montada, com três equipas fixas - de cinco homens cada uma - e duas equipas mais móveis, de carro, para cobrir qualquer eventualidade.

Várias pessoas fogem de facto nessa direcção, mas são civis indefesos. Uma terceira casa suspeita é atacada com recurso a uma granada de gás lacrimogéneo, com o objetivo de fazer sair para o exterior elementos do grupo armado que estejam lá dentro. Estava afinal também vazia, tal como o bar inicialmente atacado.

A operação chega ao fim. “Não há qualquer tipo de baixa, nem na nossa força nem na força inimiga”, ouve-se o comandante dizer pelo grande rádio colocado no “Centro Operacional Táctico”. Também não foram feitos prisioneiros de guerra. Mas alguma documentação encontrada atesta que estes seriam locais onde se encontram regularmente membros do grupo. Eram os sítios certos mas à hora errada.

Apesar de o principal alvo não ter sido capturado ou morto, outros objetivos da missão da Força Portuguesa acabaram por ser cumpridos, explica o comandante: “Com a nossa presença aqui, a segurança na cidade estabilizou. As outras duas finalidades, restringir liberdade de movimentos do grupo antibalaka e sua capacidade de comando e controlo, foram atingidas.”

Pino-Pino voltou novamente a escapar mas foi fortemente pressionado naquele dia. Tanto que os seus crimes não iriam passar impunes por muito mais tempo. Crépin Wekanam acabaria detido várias semanas depois ao ter passado a fronteira para a República Democrática do Congo, juntamente com mais 33 membros da sua milícia, entre eles duas mulheres e seis menores. Foram entretanto extraditados para Bangui, a 27 de junho deste ano, onde vão agora ser julgados por crimes de guerra.

Finda a ação no centro de Bangassou, a coluna de veículos regressa ao acampamento onde os portugueses vivem durante um mês.

Sejam bem-vindos ao "paraíso".

Acordamos cedo. Não passa muito das 06h mas o sol já nasceu há quase uma hora e a claridade torna quase impossível dormir, por muito que tentemos fechar os olhos ou esconder a cabeça dentro do saco-cama. Na verdade também nos deitamos cedo, porque pouco depois das 18h a noite já caiu.

No “paraíso” dormimos acampados em campo aberto, mas não propriamente em tendas. Há uns toldos azuis que são pendurados com a ajuda de uma estacas altas de madeira. Não tanto para proteger da chuva, porque esta não é a época das chuvas, mas mais para abrigar do sol abrasador. Pouco depois das 06h já estão 22 graus e hoje a temperatura deve chegar aos 40. Não dormimos no chão mas numas camas com uns ferros que se desdobram numa estrutura que sobe e suporta uma lona. Quem passou pelo Exército sabe-lhe o nome, quem não passou pode achar estranho. Chamam-lhes “burros do mato”. Por cima deles monta-se uma rede esverdeada para impedir durante a noite as mordidelas dos mosquitos.

Levantamo-nos e vamos lavar a cara com recurso a um jerricã que temos de tombar, porque a água já está a chegar ao fim. No “paraíso” a água é um bem escasso e não é o único, como veremos. A casa de banho não passa de um buraco no chão dentro de um barraco de madeira, com uma pequena porta que se fecha para se ter alguma privacidade. Não há autoclismo, a única solução é levar uma garrafa de água de litro e meio cheia.

“Aqui cada um carrega o seu próprio autoclismo”, brinca um dos habitantes do “paraíso”.

O pequeno-almoço normalmente acontece por volta das 07h, e a comida está numa mesa por baixo de mais um toldo azul montado ao lado de um prefabricado. Há pão feito com farinha de mandioca - três pequenos pães redondos por cada homem - que é comprado diariamente a um padeiro local. Há leite e cereais. Há manteiga, mel e até Nutella. Há quase sempre música a tocar ao pequeno-almoço ou à hora das outras refeições. Esta manhã é Phil Collins que sai das colunas.

He walks on, doesn't look back
He pretends he can't hear her
Starts to whistle as he crosses the street
Seems embarrased to be there

Oh, think twice
Cuz it's another day for you and me in paradise
Oh, think twice
Cuz it's another day for you
You and me in paradise

Think about it

Há quem não goste da escolha musical. “É pá, esta música está muito calma. Tem de ser uma música mais agressiva!”

O certo é que haverá também por aqui quem goste, porque Phil Collins passaria mais uma ou duas vezes durante estes dias e a frase ficou-me na cabeça: “Another Day in Paradise”. E assim, a cada manhã que acordava, sempre cedo, sempre com o raiar do sol, comecei a cumprimentar quase toda a gente da mesma forma irónica:

“Bom dia. Mais um dia no paraíso!”.

É claro que este sítio onde estamos é tudo menos o paraíso. Os dois, um jornalista e um repórter fotográfico, passámos uma semana a viver com a 2ª Força Nacional destacada na República Centro-Africana, na parte final da projeção de um mês em Bangassou, no sudeste do país. Nos tempos modernos dir-se-ia “embedded”, que na verdade é um estrangeirismo para se dizer que fizemos o que eles fizeram, comemos o que eles comeram, dormimos onde eles dormiram, passámos o que eles passaram. E pode dizer-se desde já que não foi fácil.

Este “paraíso” fica num campo das Nações Unidas no meio de uma floresta, com paredes de terra que se erguem a alguns metros de altura e arame farpado no topo. Ao lado do acampamento dos toldos azuis há um monte de sucata, carcaças de camiões com o metal das portas cravado de tiros de balas, marcas ainda visíveis dos ataques lançados constantemente contra os capacetes azuis ao serviço das Nações Unidas. Por perto há um grande buraco na terra para onde se atira o lixo, que é queimado no final de cada tarde e que as galinhas se entretêm a remexer ao longo do dia. Uns metros ali ao lado jaz o corpo de um helicóptero que se despenhou em ação.

A terra é seca e avermelhada e levanta constantemente um pó no ar que se entranha na pele, na cara, nas mãos, nas pernas e em todos os utensílios do dia a dia, na roupa, nos talheres e pratos de aço inoxidável da marmita que se usa para comer. Tem-se a sensação de que se está permanentemente sujo de manhã à noite, agravada pelo suor que ao longo do dia se vai misturando com o pó vermelho que se cola ainda mais à pele.

Não há chuveiros. Os banhos são tomados com recurso à água de um camião cisterna estacionado ali por perto. É operado por uma pequena força do Camboja que todos os dias vai abastecer-se no rio Mbomou, que traça a linha de fronteira a sul com a República Democrática do Congo. Água fria, claro está. Mas que sabe bem num sítio onde é fácil os termómetros passarem os 40 graus e onde chegamos ao final do dia cobertos de pó. O gargalo de uma garrafa de plástico colocado na saída de água do camião serve de doseador improvisado. Abre-se ou fecha-se a tampinha azul consoante houver necessidade. A água escorre para dentro de um alguidar de metal, a partir do qual é tirada depois com um pequeno balde. Aqui no “paraíso” o champô é um bem “premium”. Tem de ser muito bem racionado e quando acaba - e vai acabar, essa é uma certeza - toma-se banho só com sabão azul, o mesmo que se usa para lavar a roupa.

Quando a Força está projetada em qualquer ponto do país, as condições de vida não são tão boas como em Bangui, a capital, onde os portugueses têm o seu quartel-general. Mas não é nada que incomode os militares, como Rui Santos, que fez o curso de comandos nº 127. “Sei que aqui posso não ter muitas regalias, mas que para lá destas quatro paredes as pessoas têm muito menos do que eu… Eu estou aqui para ajudar, não estou aqui para passar férias, e não preciso de grandes coisas para estar bem.”

Neste acampamento, como em tudo o resto, os Comandos organizam-se por equipas, habitualmente de cinco elementos. Os membros de cada equipa posicionam as camas lado a lado, em círculo, por baixo dos toldos azuis. São como pequenas famílias. Encontro-me naquela onde estão o comandante e o segundo-comandante da Força. E, na cama mesmo em frente, está o único elemento do grupo que não é português. Chama-se Ben mas, por aqui, tratam-no por “Fifty”, numa alusão ao rapper norte-americano “Fifty Cent”, provavelmente por causa das parecenças físicas. “Fifty” é um centro-africano de vinte e poucos anos que serve como intérprete para o comandante da Força, um elemento essencial em qualquer ação desenvolvida no terreno. Conta-nos que estudou economia e gestão no Gana, mas quando voltou para cá não encontrou trabalho e por isso candidatou-se a uma vaga para intérprete junto da MINUSCA. É a primeira vez que sai de Bangui com os portugueses.

Da cama onde nos deitamos agora para descansar uns minutos não é raro avistarem-se ratos a passar sorrateiramente de um lado para o outro. Vêm provavelmente atraídos pela comida que há no acampamento e infiltram-se por todo o lado. Um deles fez casa no Humvee blindado do segundo-comandante.

“O sacana no outro dia até andava ali a passear no tabliê! Antes de irmos embora daqui temos de o apanhar, não pode andar a fazer a viagem connosco.”

Não se pode dizer que estejamos no meio da guerra, porque aqui não há uma guerra declarada, e apesar de existirem vários grupos armados no país esta também não é uma guerra civil convencional. Mas, para o caso, usemos a expressão para que percebam melhor: há uma parte da “guerra”, e não é uma parte nada pequena, que é feita só de estar à espera. Ou seja, entre cada ação que é lançada para o terreno há horas e horas de tempos mortos. Algum do tempo é ocupado em planeamento, em especial pelos membros do comando da Força, mas muito do restante é simplesmente tempo livre. E é assim que, no “paraíso”, é preciso arranjar diversas formas de passar as horas.

Uma delas é manter a forma, com recurso a um ginásio improvisado ao ar livre. Há até uma barra de ferro estrategicamente colocada entre dois camiões no meio da sucata, para que os membros da Força possam fazer elevações. O jogo de voleibol ao fim do dia é um clássico, numa rede colocada no campo especialmente para o efeito. E há até uma Playstation empoeirada, herança ainda da 1º Força portuguesa destacada no país, ligada a uma pequena televisão empoeirada, onde só se joga PES - um simulador de futebol. E depois também há tipos como o Kevin, que dorme na cama ao lado da minha, que prefere ocupar quase todo o tempo livre a aprender inglês por ele próprio. Quando voltar a Lisboa há de ir para as aulas e já vai chegar lá preparado.

Mas, num cenário de guerra e destruição, há também um passatempo que podia ser à partida inesperado.

“Se tocou com o dedo numa peça é considerada peça jogada, não pode jogar outra!”

A regra foi instituída pelo segundo-comandante, um dos mais acérrimos defensores do xadrez. O jogo é provavelmente o passatempo que mais discussões e debates acesos provoca no acampamento. E também a maior fonte de rivalidades. Ninguém quer perder e as tentativas de desforra são constantes.

Monteiro e Camara estão frente a frente no tabuleiro. Camara avança uma peça que surpreende o adversário. “Rede de emboscadas, isto não falha!” Wilson Monteiro procura reagir à adversidade. Antes de vir para África nunca se tinha interessado pelo xadrez. Aprendeu a jogar já em Bangui e o vício foi-se entranhando aos poucos.

Monteiro compara mesmo a estratégia do xadrez aos movimentos que tem de fazer numa ação real de combate.

Talvez não fosse amor

Antigamente, nos tempos de guerra, escreviam-se cartas de amor às mulheres e namoradas, que podiam demorar semanas a chegar ao destino, quando não se perdiam mesmo pelo caminho. Hoje em dia enviam-se mensagens pelo WhatsApp e em segundos as setinhas azuis indicam que a pessoa já as leu. Por isso, nos assuntos do coração, tudo é mais imediato. Até mesmo as desilusões.

Mesmo estando acampada numa zona remota de África, a logística da Força portuguesa consegue que os militares tenham acesso à internet, ainda que limitado. É pelo menos o suficiente para ir descansando família e amigos em Portugal. Ainda que, muitas vezes, prefiram contar o menos possível.

“Não conto muito o que se passa aqui”, admite Aramis Tavares. “Prefiro não contar. Para mim fica aqui, é o nosso trabalho. Mesmo quando estava em Bangui e tinha a possibilidade de comunicar todos os dias, só falava aos domingos. É para habituar [a família] que nem sempre há possibilidade de comunicação, assim é melhor.” Já Rui Santos admite que “para eles [família] é mais complicado do que para mim, sofrem sempre mais”. “Com internet sempre se pode dizer que está tudo bem, para não se preocuparem, que daqui a nada já estamos de regresso.”

A internet é também usada para manter contacto com as namoradas - ou pretendentes. E dá origem a histórias mais ou menos rocambolescas. Um dos membros mais jovens da Força estava a trocar mensagens apaixonadas com uma rapariga em Portugal para mais tarde descobrir que, afinal, ela estava também a trocar juras de amor com mais dois ou três militares que estavam naquele mesmo acampamento.

Se se descontar estas comunicações, estes homens passam seis meses em missão num país estrangeiro em que praticamente só convivem entre si. No caso da 2ª Força Nacional destacada na República Centro-Africana, por exemplo, tiveram de passar o último Natal e Ano Novo acampados em Bangassou. Mas, durante o curso de Comandos, e apesar de estarem muito mais perto de casa, conseguem estar ainda mais isolados: o telemóvel é-lhes retirado e não podem ter qualquer comunicação com o exterior. Mesmo dentro do Regimento só estão autorizados a falar entre si.

Agora em missão em África, os militares que terminaram o curso de comandos nº127 percebem melhor o porquê dessas regras. “Isso acontece para nos habituarmos a estar juntos, a apoiarmo-nos uns aos outros”, explica Benvindo Rocha. “Uma pessoa tem um problema e em vez de estar na net ou outras coisas fala com o camarada ao lado. Passa-se isto e aquilo, o camarada ao lado apoia sempre.” Há um sentimento de familiaridade que é criado desde a formação. Muitos deles referem-se mesmo ao batalhão como uma “família” e aos outros militares como “irmãos”.

Partida para Bangui

O dia amanhece novamente com uma coluna de fumo no horizonte, vindo do entulho queimado.

Hoje deveria ser o dia da partida de Bangassou, mas foi atrasada porque as viaturas blindadas não estão todas intervencionadas e prontas para aguentar uma deslocação que se prevê dura e desgastante.

O acampamento começa a ser desmontado a partir do meio da tarde. Primeiro baixam-se os grandes toldos azuis, depois desmontam-se as redes mosquiteiras, as camas de campanha e arrumam-se as mochilas. Mete-se a roupa toda dentro de um saco de plástico preto gigante e só depois se coloca então esse saco dentro da mochila. É um truque usado para preservar a roupa durante a viagem, para que apanhe o mínimo de pó vermelho possível durante o caminho. E não será pouco.

A Força partirá na madrugada seguinte, ainda noite, para Bangui, onde tem o seu aquartelamento permanente. A viagem será desgastante - e mesmo perigosa. A coluna militar terá de atravessar territórios que estão sob domínio de diferentes grupos armados, um dos quais esteve a combater em Bangassou.

A retaliação ou uma emboscada pelo caminho são possibilidades reais.

Neutralizar ameaças é apenas uma das faces do trabalho que os militares portugueses fazem todos os dias na República Centro-Africana. Eles estão ali também, e principalmente, para salvar vidas.

Como a vida de Djamal.

Cinco minutos antes, ele tinha-lhe dito para não sair dali. Agora, o pai estava morto.

A bala perfurou-lhe o torso por um lado, saiu pelo outro. Caiu de imediato para a frente. O corpo ficou prostrado no chão, a uns 10 metros de distância. Ele olhava para o corpo inanimado do pai ali estendido e não podia fazer nada. A mesquita estava cercada, havia atiradores furtivos escondidos à espreita por todos os lados. Se saísse de onde estava, o próximo a morrer era ele. E foi assim que Djamal viu o pai morrer diante dos seus olhos.

Era o imã da mesquita. Dezenas de muçulmanos estavam cercados no interior.

Horas antes, Djamal acordou a meio da noite com o barulho de munições de calibre pesado. Grupos armados estavam a atacar o campo da ONU, não muito longe dali. O objetivo era impedir os capacetes azuis de saírem e fazerem o seu trabalho de proteger as populações. Naquela semana, outros cinco militares ao serviço das Nações Unidas já tinham morrido num ataque numa outra povoação a cerca de 20 quilómetros de Bangassou.

Eram 04h. Levantou-se para lavar a cara e foi nesse momento que percebeu que os tiros soavam agora mais perto. Aqueles homens estavam a entrar em Tokoyo, o bairro muçulmano de Bangassou. Djamal só teve tempo de agarrar nos pais e correr até à mesquita, onde pensou que todos ficariam em segurança. Tinha reencontrado o pai e mãe pouco tempo antes, depois de oito anos de afastamento. Em 2008 saiu do país e partiu rumo ao Benim, para poder prosseguir os estudos. Pelo meio, em 2013, viu do exterior como o seu próprio país viveu um golpe de estado sangrento. Temeu pela vida dos pais e do irmão mais novo. Sobreviveram e tinha-os encontrado com saúde há poucos meses quando conseguiu finalmente regressar a casa.

Mas tudo mudou nessa noite de 13 de maio de 2017. Na vida de Djamal e da cidade. O ataque lançado por grupos antibalaka contra a comunidade muçulmana resultou na morte de mais de 100 pessoas e 12 capacetes azuis das Nações Unidas.

Mais uma vez, os portugueses foram chamados a intervir. Neste caso foi a 1ª Força Nacional destacada na República Centro-Africana (que esteve no país entre fevereiro e agosto de 2016) e que também era assegurada por uma companhia de Comandos. A ação foi decisiva e permitiu salvar vidas. Escoltaram os muçulmanos que estavam refugiados na mesquita para um terreno seguro situado dentro da Missão Católica de Bangassou.

O corpo do pai de Djamal acabaria recolhido do chão pelos militares. O irmão - que tinha reencontrado depois de anos de afastamento - morreria também durante o ataque. Quanto a ele, garante que se não fossem os portugueses também estaria hoje morto.

Djamal diz que não sabe o que aconteceu a muitos dos amigos que terão morrido naquele dia. Não sabe sequer onde podem estar enterrados os seus corpos.

O que se passou em Bangassou naquele mês de maio de 2017 foi apenas um de muitos episódios de terror e violência desde a história recente (e não só) do país, quando há cinco anos uma coligação de grupos rebeldes avançou para a capital e tomou o poder.

Do “Império” aos grupos armados

A maioria das pessoas não imaginará mas Bangui já foi a capital de um império. Ou, pelo menos, uma espécie de império. Aconteceu a meio da década de 70 quando Jean-Bedel Bokassa, um antigo comandante do Exército convertido em presidente depois de um golpe de estado sangrento, decidiu proclamar-se a ele próprio “Imperador”, seguindo o exemplo de Napoleão. E mudou o nome do país para “Império Centro-Africano”. Alguns anos antes, Bokassa já se tinha declarado “presidente vitalício”. Mas, mesmo sendo para toda a vida, o cargo pareceu-lhe demasiado terreno.

O “império” não chegaria a durar mais de três anos. Em 1979, o “Imperador Bokassa” caía às mãos de um golpe apoiado por forças francesas e liderado por David Dacko, nada mais nada menos que o mesmo homem que Bokassa tinha deposto no início da década de 60 no seu caminho para o poder.

Como tantos outros países no continente, a história da República Centro-Africana - uma nação rica em ouro, diamantes e outros minérios mas pobre em democracia - também é marcada por uma sucessão de ditadores e golpes de estado sangrentos. Mas o que aconteceu há cinco anos trouxe um elemento novo que iria fraturar o país até hoje.

Durante décadas, as comunidades cristãs (que estão em maioria, representando cerca de 80% da população) e muçulmana conviveram pacificamente. Até que, no final de 2012, uma coligação de grupos armados muçulmanos autodenominada Seleka (uma palavra que significa “Aliança” em Sango, uma língua nativa) marchou até à capital, deixando pelo caminho morte e terror nas várias aldeias, e derrubou o então presidente François Bozizé, num golpe de Estado que foi condenado internacionalmente.

Em reação aos grupos muçulmanos despontam várias milícias cristãs denominadas “antibalaka”, que dizem ter como missão proteger a população cristã da violência religiosa. Em 2014, a MINUSCA começa a operar no país, onde já se encontrava uma força francesa (antiga potência colonizadora, da qual o país se tornou independente no início da década de 60). No presente, as Nações Unidas têm perto de 14 mil militares no terreno.

Atualmente há pelo menos 14 grupos que controlam diferentes pontos do território. A República Centro-Africana é neste momento um país sem Estado. O poder político só exerce autoridade em Bangui. Fora da capital, os grupos agem com total impunidade.

O conflito desafia, no entanto, as definições tradicionais de uma guerra civil: estes grupos não pretendem derrubar o poder instituído - querem controlar os territórios ricos em ouro e diamantes ou apenas as rotas da pastagem de gado, para que possam cobrar taxas avultadas à população. A diferença religiosa entre cristãos e muçulmanos é também apenas um pretexto. A provar isso está o facto de, em determinados lugares, grupos “ex-seleka” e “antibalaka” terem deixado de lado as suas diferenças religiosas ou ideológicas para formarem alianças inesperadas e protegerem os seus recursos. O poder político e a religião pouco importam. A única coisa que conta é o dinheiro. Nem que para isso tenham de massacrar a população, explica Parfait Onanga-Anyanga, o representante especial da ONU para a República Centro-Africana.

A presença das forças das Nações Unidas - na qual os Comandos portugueses colaboram - está longe de ser consensual. Há quem diga que a estabilização da capital - onde a MINUSCA concentrou 40% dos seus meios para permitir a formação de um governo e a estabilidade das instituições - foi feita à custa do deteriorar da situação no resto do país. Os capacetes azuis são um alvo frequente das críticas da população, que os acusa de ficarem passivamente dentro dos seus campos instalados em cima de uma logística que custa milhões enquanto há pessoas a morrer lá fora.

O quartel-general da MINUSCA fica situado numa das artérias principais de Bangui, a Avenida Bhartelemy Boganda, uma reta de vários quilómetros de comprimento que vai desembocar no PK0 (que significa literalmente “Ponto Quilométrico Zero”), o centro da cidade de onde partem todas as artérias principais. É um complexo de edifícios altamente fortificado para prevenir eventuais ataques de grupos armados. E é aqui que está o homem responsável por enviar os Comandos portugueses para Bangassou e Bocaranga, bem como por todas as outras forças que se encontram ao serviço da ONU.

Balla Keita, o “force commander” da MINUSCA, não hesita em afirmar que esta está muito longe de ser uma missão de manutenção de paz convencional e que é preciso ter uma postura mais ofensiva se se quiser trazer mais estabilidade ao país. “A manutenção de paz aqui está mais perto da guerra. E temos de adotar as regras da guerra. Estes tipos vão continuar a matar. Se queremos salvar as vidas dos civis e as nossas vidas, então temos de os neutralizar.” A ideia é igualmente pressionar os grupos para que abdiquem da violência e venham até à mesa das negociações.

Desde que as Nações Unidas entraram no país, em 2014, os ataques de grupos armados já provocaram a morte de 73 capacetes azuis. As agências humanitárias, que são muitas vezes o único garante de sobrevivência de grande parte da população, também não escapam. Só em 2018 já se registaram pelo menos 63 ataques contra trabalhadores de ONG. A insegurança faz com que, em muitos casos, as organizações humanitárias não consigam fazer chegar a ajuda às populações ou tenham mesmo de abandonar os territórios onde operam.

Balla Keita é um general pragmático, direto e frontal. Nota-se que não está ali para ser mais um político ou diplomata a atenuar a realidade. E, sem rodeios, colocou as coisas bem claras no dia em que deu uma entrevista ao Expresso no seu escritório em Bangui, com um retrato do português António Guterres, o secretário-geral das Nações Unidas, por cima da sua secretária: os portugueses estão no terreno a pôr diariamente a vida em jogo.

Os Comandos portugueses estiveram na República Centro-Africana a atuar como uma Força de Reação Rápida da MINUSCA. Isso significa que tinham de estar prontos a serem chamados a atuar em qualquer altura, em qualquer situação e em qualquer ponto do território. “Estes homens, para onde quer que vão, vão lá para salvar vidas. Este é o significado: vão onde os civis estão a ser mortos e têm de ir lá salvar vidas - parar as mortes ou prevenir as mortes. É assim que os usamos”, diz Balla Keita.

O general não poupa ainda elogios à atuação da Força portuguesa. “Portugal preparou-se bem para trazer os melhores. Não trouxeram quaisquer soldados, trouxeram os melhores. Em Bangassou e Bocaranga cumpriram a sua missão de forma altamente profissional. No espaço de uma semana, a área estava livre de grupos armados e por isso mereceram uma carta de elogio por parte das Nações Unidas.”

Vinte minutos com o presidente - e nem um a mais

Albert Mokpeme. O nome foi-nos dado por um assessor da ONU. Mokpeme é o porta-voz do presidente da República Centro-Africana e qualquer tentativa de entrar no palácio presidencial e chegar à fala com o chefe de Estado tem necessariamente de passar por ele primeiro.

O contacto inicial é feito a 4 de janeiro de 2018, um dia depois de termos aterrado pela primeira vez em Bangui. A ideia era marcar encontro para daqui a semana e meia. Albert não faz promessas, a agenda do presidente é extremamente apertada. No dia seguinte, apanhamos um voo das Nações Unidas para Bangassou - onde os Comandos portugueses estavam em missão - e estamos dez dias sem qualquer notícia da presidência.

Voltamos a insistir no regresso a Bangui, já com o tempo contado antes de partir para Lisboa. O porta-voz diz que sim, que é possível, e marca o encontro para as 10h do dia seguinte. Somos escoltados até ao palácio presidencial por uma equipa de Comandos, num jipe militar. A situação na cidade é demasiado insegura, é impossível andar livremente nas ruas sem correr demasiados riscos. Conta-se a história de uma jornalista estrangeira que foi fazer uma entrevista ao Campo M’Poko, o campo militar situado junto ao aeroporto onde a força portuguesa está instalada: decidiu sair pelo seu próprio pé da zona fortificada, não chegou a andar 300 metros antes de ser assaltada e perder todo o material de reportagem que levava consigo. Escapou com vida.

O palácio presidencial é um complexo de edifícios situado no centro de Bangui, perto do Ponto Quilométrico Zero, na intersecção entre a Avenida do Presidente Mobutu e a Rue Joseph. Um dos militares portugueses é destacado para acompanhar todos os nossos passos, mesmo no interior do palácio, mas ao apertarmos finalmente a mão a Albert Mokpeme vê-se de imediato que esse pormenor o incomoda. “Aqui dentro estão seguros, não há necessidade dessas coisas.” O comando acabou por sair da sala.

Entramos no gabinete e não demora muito para percebermos que não estamos ali para entrevistar o presidente. Estamos ali para sermos entrevistados. Albert quer saber tudo: quem somos? O que é que andamos a fazer no país? Qual é o objetivo do nosso trabalho? O Expresso é mesmo o maior jornal em Portugal? Faz-nos preencher um impresso com um requisito formal de entrevista ao presidente. E, depois de 40 minutos de interrogatório, tira-nos a esperança. “Sabe, o professor Touadéra é uma pessoa muito ocupada e há pedidos de outros órgãos de comunicação em espera. Não lhe posso prometer o que for e na verdade posso mesmo dizer-lhe que será quase impossível.” Com um voo marcado para as 07h do dia seguinte, voltamos para o Campo M’Poko sem grande esperança.

A chamada surgiu por volta da hora do almoço. “Pode estar aqui às 15h? Arranjei-lhe 20 minutos com o presidente.” Voltamos a fazer o percurso para o centro da cidade em coluna militar. Passamos o portão principal do palácio presidencial, mas desta vez dirigimo-nos para um edifício que está do lado oposto da praça ao do gabinete do porta-voz Mokpeme. Subimos as escadinhas e vamos dar a um pequeno corredor de paredes brancas que logo à entrada tem dois militares armados com uma máquina semelhante àquela que encontramos nos controlos de segurança dos aeroportos. Somos obrigados a abrir a mochila e cada item do material de reportagem - câmara, objetivas, microfones, tripés - é inspecionado minuciosamente. Querem que levemos connosco o mínimo de coisas necessárias.

Mokpeme conduz-nos depois para uma pequena sala de espera e desaparece. Não o voltaremos a ver tão cedo. As cadeiras estão ocupadas por outros fotógrafos, um repórter de imagem, um jornalista. A primeira impressão é que estarão todos ali à espera para entrevistar também o presidente Touadéra. Passa meia hora, ninguém diz nada. Talvez o presidente esteja lá dentro a ser entrevistado por outro órgão? Passam 40 minutos. Uma hora. Nada, não há qualquer explicação de ninguém. E Mokpeme nunca mais voltaria a aparecer.

Quando finalmente aparece é para nos dizer que o presidente pode finalmente receber-nos. “Mas cuidado, você só tem mesmo 20 minutos, ok? E veja lá se não passa o tempo”, avisa-nos. As equipas de filmagem e os fotógrafos que esperavam também na pequena sala seguem atrás de nós e apercebemo-nos que eles não estão ali para entrevistar o presidente - eles estão ali para fazer a cobertura da nossa entrevista ao presidente.

Faustin Archange Touadéra recebe-nos de forma amigável e calorosa. O gabinete é amplo, com as paredes forradas em madeira, aqui e ali pequenos toques de dourado nas cadeiras e nas mesas. E um pormenor curioso: uma árvore de Natal que ainda resiste, apesar de o Natal já ter passado há muito.

Touadéra, 61 anos, é um antigo professor universitário de matemática educado em França e ex-reitor da Universidade de Bangui. Iniciou a carreira política em 2008 e logo como primeiro-ministro, a convite do então presidente François Bozizé. Em março de 2016 tomou posse como presidente, ao vencer as primeiras eleições livres após o golpe de Estado que trouxe instabilidade à nação em 2013. Nessa altura prometeu “a paz e o desenvolvimento”, mas até hoje o país ainda não os alcançou. Admite que ainda não foi possível recuperar a República Centro-Africana de uma crise profunda e pede um reforço da ajuda internacional.

O país onde os portugueses estão em missão ocupa atualmente o último lugar (188º posição) no índice de desenvolvimento humano das Nações Unidas. A maioria da população, que vive da agricultura familiar, perdeu o seu meio de subsistência ao fugir da violência dos grupos armados para se refugiar noutros pontos do território ou mesmo para fora do país. Se não fosse a ajuda diária das agências humanitárias, não conseguiriam sobreviver.

O antigo académico Touadéra pode até ser um homem bem-intencionado. Mas os desafios que tem à sua frente são colossais.

O medo, tudo o que resta do mundo deles

Medo.

Os olhos de Jean-Marie não mentem. E é uma das piores imagens do mundo, a de ver o medo nos olhos de um homem.

“Estamos fatigados, não sabemos quem mais nos poderá vir ajudar.”

O abade Jean-Marie Moddue é o diretor do “Centro Justiça e Paz” de Bangassou. Recebe os militares portugueses no centro diocesano e organiza um pequeno encontro com outros missionários que trabalham na missão católica.

Depois de nos sentarmos, Jean-Marie faz-nos a pergunta que realmente quer ver respondida:

“Quanto tempo vai ficar aqui a Força portuguesa? Como vai ser o futuro?”.

Temos capacetes azuis na cabeça e coletes balísticos ao peito mas somos apenas jornalistas, tentamos explicar-lhe. Infelizmente não podemos - e, de resto, não sabemos - responder a isso. E somos repentinamente tomados pela angústia de não conseguir responder a um homem com medo nos olhos.

Em maio de 2017, a missão católica deu abrigo à comunidade muçulmana que foi alvo de um ataque sangrento em Bangassou. Mais de 2700 pessoas refugiaram-se nos terrenos adjacentes ao seminário. Hoje em dia, os padres católicos estão numa situação complicada e veem-se no meio do fogo cruzado. São mal vistos pelos muçulmanos deslocados, que os consideram cúmplices dos grupos “antibalaka”, que se dizem cristãos. Já os “antibalaka” olham-nos como traidores por albergarem e protegerem muçulmanos nos seus terrenos. “É uma lástima… Bangassou era uma vila modelo, um exemplo de coesão social. Cristãos e muçulmanos conviviam alegremente. Nunca mais foi assim”, lamenta Jean-Marie.

O abade não esquece o primeiro contingente português que passou pelo país e que foi fundamental para travar o massacre em Bangassou. “Eles foram eficazes, mas quando partiram recomeçámos do zero. E agora que vimos os vossos carros militares a passar novamente, pensamos: ‘Eles vieram para nos dar um pouco de esperança’. Será que o podem fazer por nós, para que nos ajudem a dormir bem? Porque nós já nem conseguimos dormir…”

A menos de quinhentos metros da catedral de Bangassou erguem-se várias tendas improvisadas. Há crianças que correm e brincam de um lado para o outro, enquanto as mães vão fazendo fogueiras com pedaços de madeira no chão e cozinhando em tachos enferrujados a pouca comida que têm. “Aqui encontra muitas mulheres que são viúvas, muitas crianças órfãs. É traumatizante. O que aconteceu foi uma verdadeira carnificina contra a nossa comunidade, algo como nunca se tinha visto antes”, explica-nos Ali Idriss.

Idriss é o líder e porta-voz da comunidade muçulmana que se refugiou naqueles terrenos, depois do ataque de maio de 2017 e do cerco da mesquita. Dos mais de 2700 muçulmanos que se dirigiram para ali, cerca de 1700 ainda permanecem no local. “Não éramos mais do que agricultores ou comerciantes pacíficos. Fomos abandonados à nossa própria sorte na mesquita e muitos dos nossos irmãos foram mortos. Depois de três dias, pela graça de Deus, um contingente português veio trazer-nos da mesquita até aqui à Igreja católica. E estamos aqui até agora. Perdemos tudo: os nossos bens, as nossas casas, os nossos carros. Viemos para aqui e salvámos a nossa vida. Mas vivemos uma existência quase sem nada.”

Há tendas em que famílias inteiras dormem no chão. Se não fosse a ajuda do Programa Alimentar Mundial não teriam nada para comer. Djamal, que perdeu o pai e o irmão nesse ataque, está confinado há mais de um ano no campo, sem possibilidade de sair. Corre o perigo de ser morto. “Estou numa prisão como nunca tinha vivido… Não tenho outra imagem do mundo que não seja este sítio. Penso que o mundo acabou e que, do mundo, só sobrou este lugar.”

O campo de deslocados é alvo constante de ataques por parte das milícias antibalaka. Ainda há poucos meses a Missão Católica de Bangassou foi cercada por vários homens armados. Um muçulmano que tentou sair do perímetro do campo para buscar comida foi apanhado e executado no local. Os antibalaka tentaram mesmo entrar e acabaram mesmo por se envolver em confrontos com alguns muçulmanos que estavam armados. Como retaliação, foi-lhes bloqueado o acesso à alimentação e aos medicamentos. Se não fosse a intervenção pronta de um outro contingente das Nações Unidas, desta vez dos Camarões, a situação podia ter sido muito pior.

Os padres católicos pedem constantemente à ONU e às forças governamentais para recolocar os muçulmanos, com medo de um banho de sangue em Bangassou. Por causa da situação de insegurança, a catedral esteve fechada durante meses e acabou reaberta no final do ano passado. Mas quando o abade Jean-Marie celebra a missa ao domingo, aparecem não mais de 10 a 15 pessoas. As outras têm medo de sair de casa. Apenas duas das oito paróquias da diocese ainda funcionam. Todos os padres estão a viver no edifício do seminário, por razões de segurança.

As escolas católicas tiveram de ser encerradas em Bangassou. De resto, 20% das escolas do país estão fechadas por causa da situação de insegurança e há ainda o problema da falta de professores. A UNICEF arranjou espaços de ensino temporário para 55 mil crianças em 2017 e espera fazer o mesmo para 85 mil em 2018. A organização também apoia crianças que saíram de grupos armados na sua reintegração na sociedade.

Mas, mesmo em Bangassou, há ainda quem resista.

A escola de Sayo

“Quero ser primeiro-ministro.”

Xeleri tem oito anos. Está sentado numa carteira de madeira na sala de aula, já velha e gasta, enquanto lá fora os outros miúdos correm como loucos de um lado para o outro com a camisola de Ronaldo, Messi ou Lewandowski. Mas ele não quer ser futebolista como os outros.

– Porque é que queres seres primeiro-ministro quando fores grande, Xeleri?

– Quero construir escolas para que todas as pessoas possam estudar. Isso pode mudar o país.

Aos oito anos, Xeleri tem mais sabedoria do que muitos adultos que mandam em Bangui.

Estamos na escola mista de Sayo, em Bangassou. Aqui estudam mais de duas mil crianças, entre rapazes e raparigas. A situação acalmou com a presença do contingente português na cidade, mas Motebo Jonathan-Stanislas, professor dos rapazes, garante que a paz aparente é algo que pode mudar muito depressa. “A situação de segurança melhora e piora à vez. Hoje as coisas podem estar bem e amanhã podem descarrilar… Ainda há crianças que não podem vir à escola por causa dos grupos armados. Esta crise afeta os menores por todo o lado e impede muitos pais de deixarem os filhos ir à escola.”

A loucura instala-se no largo pátio de terra junto à escola quando se apercebem da chegada da coluna de militares portugueses. Centenas de crianças, vindas de todos os lados, rodeiam de imediato os veículos blindados aos gritos. Um dos mais velhos, com o equipamento alternativo de Ronaldo ainda do tempo do Real Madrid, procura colocar ordem, por vezes de forma violenta, na confusão. Alguns dos mais novos começam a chorar.

Os militares portugueses vieram a esta escola para uma ação de solidariedade e apoio humanitário. Numa parceria com a Federação Portuguesa de Futebol, trouxeram camisolas da seleção nacional e bolas. “É algo que nos alegra”, diz o professor Motebo. “Eles adoram futebol. E nós não temos material desportivo.”

O respeito entre as comunidades que durante anos existiu em Bangassou está longe de acontecer hoje em dia e essa situação tem reflexo também na escola de Sayo. “A coesão social ainda não está normalizada. Aqui vê apenas crianças cristãs. Os muçulmanos estão concentrados no campo de deslocados, não podem sequer vir à escola”, explica-nos o professor Motebo. E, mesmo entre aqueles que conseguem vir, “muitas são crianças que andam desacompanhadas, que foram abandonadas à sua própria sorte”.

As camisolas e bolas esgotam-se num ápice, estão muito longe de poder chegar para todos. Além dos equipamentos, neste dia a Força portuguesa entregou ainda vários brinquedos que foram recolhidos através de uma campanha de pessoas amigas que se solidarizaram em Portugal.

A ação teve dois objetivos: “Por um lado ajudar estas crianças e a população que sofre muito. Por outro, e porque os militares portugueses lançaram ontem uma operação na cidade, mostrar às pessoas que elas não são o alvo. Os alvos estão muito bem identificados, são determinados indivíduos que são criminosos procurados, não é esta população inocente” esclarece o comandante da Força, tenente-coronel Duarte Varino.

Rui Santos, um dos militares da Força que terminou o curso 127 e que o Expresso acompanhou desde o primeiro dia no Exército, levou uma boneca que a namorada lhe deu ainda em Portugal. “Para nós, uma boneca pode parecer algo muito normal, mas só de ver o sorriso naquela criança… Se calhar é algo que nunca viram, ao qual nunca tiveram acesso.”

A rondar a casa dos 20 anos, estes militares estão a contactar pela primeira vez com este tipo de realidade. “A preocupação das pessoas é totalmente diferente da nossa lá. A preocupação aqui é sobreviver. A nossa é pagar contas, com o emprego, tudo e mais alguma coisa. Aqui é sobreviver e arrecadar tudo o que conseguem no dia a dia para dar aos seus filhos ou às suas famílias e manterem-se vivos.”

Já Ricardo Batista admite que esta é uma experiência que “vai ficar para a vida”. “É outra realidade a que estamos a viver aqui. Em Portugal aquilo que consideramos pouco aqui consideram muito. É um país miserável. Muita pobreza... Não há condições para viver: faltam mesmo as coisas essenciais - saneamento, eletricidade, água canalizada.”

É a realidade em Bangassou e é a realidade no resto do país, que a Força portuguesa terá agora de atravessar de um lado ao outro para regressar à capital e à sua base.

"Esta viagem já marcou.
Veem-se aqui muitas coisas
que nunca pensei que
acontecessem no mundo"

Daniel Miranda

É um dos momentos sempre mais temidos pelos militares em missão na República Centro-Africana. E já tinha fama mesmo antes de chegarem a África, explica Filipe Dias, um dos membros da Força portuguesa: “Antes de virmos para a missão, o pessoal perguntava aos membros da 1ª Força o que é que custava mais. Todos diziam que eram os deslocamentos. E depois diziam: podemos estar aqui a falar muito, mas depois quando estiveres lá vais perceber o porquê. Agora percebemos… Uma ida de Lisboa ao Porto demora duas a três horas. Aqui, para fazermos 100 quilómetros, demoramos oito horas, ou se correr mal 10, 13 horas. Estar só a ver mato, árvores a passar, aqueles caminhos de terra, poeira, sol e mais sol, aqueles buracos em que as viaturas passam, parece que vão desaparecer lá dentro...”

E desta vez é necessário percorrer os mais de 700 quilómetros que separam Bangassou de Bangui.

Cercados e inquietos

“Isto aqui ainda é autoestrada”, diz o comandante da Força portuguesa, de forma irónica.

O blindado já vai aos solavancos, mas garantem-nos que “isto ainda não é nada”. São 5h30. A coluna militar havia deixado há cerca de meia hora o acampamento de Bangassou. Está dividida em dois: metade dos veículos segue à frente, escoltando o segundo-comandante. Alguns minutos depois vem uma segunda coluna, que protege o comandante da Força. É uma estratégia. Os homens do comando seguem separados para, em caso de algum ataque ou emboscada, não serem apanhados os dois.

Os primeiros raios de sol começam a aparecer. É manhã cedo, mas do outro lado do vidro do blindado já se avistam pessoas que vão acendendo fogueiras em frente às suas palhotas para o começo de um novo dia. Olham de forma curiosa para os capacetes azuis portugueses, alguns acenam mesmo à sua passagem. À beira da estrada até as folhas verdes das plantas estão avermelhadas, por causa do pó que é constantemente levantado pelos carros.

Apesar de estarem em viagem, os Comandos levam duas ações em mente que tinham sido previamente planeadas. Todo o eixo até Kembé faz ainda parte da área operacional da Força portuguesa. Isto quer dizer que, até esse ponto, ainda podem lançar ações ofensivas. Depois desse limite podem apenas reagir a eventuais ataques que lhes sejam lançados.

A primeira coluna de blindados trava repentinamente. Estamos em Gambo, uma localidade onde tem havido informação de atividades suspeitas por parte de grupos armados antibalaka. O carro do segundo- comandante é o quarto a contar do início. O tenente-coronel Sousa Pinto sai e pede para falar com o chefe da aldeia. "Fifty", o intérprete, dá uma ajuda.

O ancião aparece finalmente. O militar português começa por lhe dizer que têm acontecido ataques contra militares da MINUSCA naquela estrada, interroga-o se sabe o que está a acontecer. O chefe da aldeia garante-lhe que ali não existem antibalakas escondidos. Mas, poucos segundos depois, a realidade irá comprovar algo bem diferente.

“Você diz que não há, mas os ataques estão a acontecer... E se isto continuar vamos ter de vir cá de noite e isso não vai ser nada bom para vocês...”

De repente, o segundo-comandante começa a ouvir pelo rádio:

“Há contacto do lado esquerdo! Foram avistados dois ou três elementos armados!”.

E, de imediato, interroga o chefe da aldeia.

“Está a dizer-me que não há aqui homens escondidos, mas nós já estamos a começar a apanhá-los!”

Tem início uma perseguição. Há homens que estão a ser perseguidos do lado esquerdo da estrada quando três ou quatro são avistados a passar para o lado direito. O “modus operandi” destes grupos é chamar a atenção dos soldados da ONU num sítio e depois atacá-los por outro. Surpreender.

O segundo-comandante regressa à sua viatura e fala pelo rádio com o comandante que segue na outra coluna de blindados mais atrás, entretanto também já parada na estrada. Reporta que há tiros a acontecer.

Os indivíduos acabam por fugir para dentro do mato. Os portugueses ainda se afastam 200 metros, mas depois têm ordens para não seguir mais em frente. Se o fizessem estariam a cair na ratoeira do inimigo, que tinha como objetivo atraí-los para um território mais favorável, para depois poder emboscá-los facilmente.

Quando a perseguição acaba, os Comandos portugueses fazem uma revista a várias casas da aldeia. O objetivo é fazer uma pequena demonstração de força. Apreendem algumas espingardas de fabrico artesanal, que são habitualmente usadas por estes grupos, bem como catanas. Encontram ainda vários “gri-gris”, amuletos tribais que estes homens colocam ao peito, colares que estes homens acreditam que os tornam invencíveis em combate, forças que os protegem das balas do inimigo.

Desta vez não foi o caso, mas não é raro nas buscas a casas usadas por estes grupos encontrarem-se várias drogas e medicamentos. A maioria dos membros dos grupos armados é composta por jovens que muitas vezes combatem num estado alterado, sob influência de substâncias.

A coluna segue viagem e chega ao destino já perto das três da tarde, dez horas depois da partida. Distância total percorrida no primeiro dia: apenas 126 quilómetros.

As viaturas chegam a Kembé e dispõem-se imediatamente em círculo, com os carros do comandante e do segundo-comandante ao centro. É uma estratégia que permite duas coisas: por um lado, defenderem-se e responderem melhor em caso de ataque; por outro, permitir uma mobilização mais ágil das viaturas caso seja necessário fazer uma saída à pressa.

Quando estão em deslocamento pelo país, os portugueses procuram, sempre que possível, ficar acampados em campos militares das Nações Unidas, por razões de segurança. Não é o caso em Kembé e a zona escolhida para montar acampamento fica junto à escola da aldeia.

Esta noite dormirão ao ar livre, sem os toldos. Há que voltar a montar as camas e as redes mosquiteiras, num ritual que se repetirá todos os dias até chegarem finalmente a Bangui. Aproveitam para recuperar as forças. Comem o resto do jantar de ontem - massa com carne - e há quem lhe dê um toque de criatividade culinária, misturando feijão frade e uma lata de atum. Outros abrem o saco da ração de combate e comem uma jardineira de vaca liofilizada.

A presença dos portugueses desperta curiosidade na população da aldeia, que começa a concentrar-se do outro lado da estrada para observar cada movimento. Em especial as crianças. Mas não serão os únicos a reparar na chegada dos Comandos. Toda a zona é controlada pelo UPC, um grupo armado muçulmano. Ao contrário dos antibalaka (que são milícias cristãs), estes grupos são conhecidos por serem mais militarizados, com cadeias de comando mais organizadas e muito melhor equipados a nível de armamento.

Há um homem armado que passa a pé na estrada e que chama a atenção dos portugueses. Não passarão muitos minutos até que uma carrinha de caixa aberta passe por ali também, com seis ou sete homens armados no interior.

“É uma demonstração de força”, exclama um dos militares portugueses.

O certo é que a situação coloca o acampamento em alerta. Sente-se uma tensão no ar. Muitos dos militares vão buscar a pistola Valter e colocam-na desde logo à cintura. Cerca de 20 minutos depois, é um camião carregado de homens armados que cruza a estrada principal a grande velocidade.

Alguém atira em voz alta: “São mais que as mães!”

Até o comandante da Força parece agora preocupado:

“Viste aquele reforço que veio? Um camião cheio!”

Os militares vão cozinhando o jantar, seja com pequenos fogões a gás ou com fogueiras entretanto acesas no chão, mas são as conversas sobre os guerrilheiros do UPC que vão dominando o acampamento. A situação é volátil. Não há registo de ataques lançados contra capacetes azuis nesta zona e em princípio o grupo armado não se atreveria a atacar, mas nunca se sabe. Começa a escurecer rapidamente. Aqui anoitece cedo e às 18h já não se vê nada.

A MG4, a metralhadora pesada que habitualmente segue na torre de cada viatura, é colocada em cima dos capôs dos blindados, caso seja necessário usá-la de repente.

“Em caso de necessidade, é só puxar isto para trás e disparar”, explica aos jornalistas um dos homens.

São dadas indicações para se reforçar a segurança no acampamento.

O comandante da Força pega no telefone satélite e fala com alguém em inglês. Minutos depois garante que tem informações que a UPC estará apenas a fazer uma transferência de homens de local, não se tratará da preparação de qualquer ataque contra a Força portuguesa.

Ainda assim, todo o cuidado é pouco. Um homem de cada equipa vai estar permanentemente de vigia na torre da viatura. Os óculos de visão noturna permitem perceber que não muito longe, do outro lado do mato, elementos do grupo armado também vigiam os nossos movimentos, por precaução.

O sono não será descansado por hoje, nem será muito. Às 02h já estarão a arrumar tudo de novo para se fazerem à estrada. Pode não haver ameaças concretas, mas é melhor não abusar da sorte. E há que seguir viagem para aquele que será um dos dias mais árduos desta aventura.

O dia mais longo

“Aqueles ali daquela povoação é que estavam a pedir ferro!”

“Moka”, um dos responsáveis pelos três grupos de Comandos em que a Força portuguesa se divide, solta o desabafo durante a paragem da coluna a meio do caminho para esticar um pouco as pernas. Minutos antes tinham passado por uma aldeia onde tinham avistado vários homens armados à beira da estrada, alguns com metralhadoras AK-47. Tinham uma postura suspeita e ameaçadora, mas a coluna de veículos acaba por passar sem incidentes.

O eixo entre Kembé e Bambari é um exemplo em pequena escala daquilo em que a República Centro-Africana está transformada. É uma sucessão de territórios dominados por diferentes grupos armados, muitos dos quais combatem entre si. À entrada e saída de cada aldeia há por isso vários postos de controlo.

A equipa que segue na frente da coluna tem como missão comunicar, via rádio, tudo o que vai avistando pelo caminho. E usa um código de cores para que as restantes viaturas estejam permanentemente atentas às eventuais ameaças. Vai do “verde”, que significa que estamos perante uma criança ou um adulto indefeso, até ao “vermelho”, um inimigo armado e com claras intenções de disparar. E que, por isso, se torna um alvo a abater.

Estão perto de 40 graus. Muitos dos blindados não têm ar condicionado e tornam-se autênticos fornos. A agravar o desconforto está o facto de, mesmo no interior, termos de levar o colete antibala vestido, o que nos faz transpirar ainda mais. Não se pode abrir a janela do blindado, por razões de segurança. Mas como no tejadilho da viatura há uma abertura circular para a “torre”, onde um homem segue em pé com uma metralhadora pesada para qualquer eventualidade, o pó entra constantemente por todo o lado.

Durante um deslocamento, quem vai na torre é habitualmente o homem que passa pior. A meio do caminho, um dos militares sente-se mal com o sol e a coluna tem mesmo de parar. Além disso, são sempre os elementos mais expostos à eventualidade de um ataque e ao fogo inimigo. É o caso de Filipe Dias: “Quando há um problema, o primeiro a dar logo mal é para mim! Por isso, se acontecer alguma coisa, um gajo tem de estar sempre atento. Todas as posições são cruciais na equipa, mas o “apontador” tem de estar lá em cima com a cabecinha de fora, qualquer coisa que dá mal um gajo vai sem cabeça para Portugal e isso um gajo não quer… Ainda tenho muito para viver!”

Num deslocamento destas características, a água potável é um bem escasso que deve ser poupado. Apesar do calor intenso, cada homem pode beber no máximo três garrafas de água por dia. As pequenas paragens de alguns minutos pelo caminho são um alívio, em especial para os elementos mais altos da Força. Os solavancos e o espaço exíguo no interior da viatura fazem com que, ao fim de algumas horas, as dores nos joelhos comecem a tornar-se insuportáveis.

Ao fim de 16 horas de viagem, a coluna chega finalmente a Bambari, onde vai passar a noite. Foi o dia mais longo e extenuante. Dão entrada no campo da ONU já depois das 19h. A noite caiu e, apesar do cansaço extremo, há ainda que montar o acampamento no meio da escuridão.

“Foi muita horinha ali dentro daquela viatura”, diz Daniel Miranda, 20 anos, um dos Comandos que terminou o curso 127. Outro, Ivan Mariani, tem a cara completamente vermelha do pó que foi apanhando no rosto ao longo da viagem.

“O pó é mesmo o mais complicado. Mas agora há que descansar e preparar para um novo dia.”

O ataque de Ronaldo e "Kazilas"

O rato está morto.

O miúdo segura-o pela cauda com a mão direita, com cara de mau. Na esquerda tem uma garrafa de plástico de água vazia. O rato foi tirado de uma sacola a tiracolo, dentro da qual estão outros ratos mortos. E foi o miúdo, que teria uns 12 ou 13 anos, que os apanhou.

“Isto é para comer. Agora vou chegar a casa e prepará-lo!”

Estamos à saída de Bambari, onde os portugueses passaram a noite, num posto de abastecimento da ONU onde se atestam as viaturas antes do início de mais um dia de viagem. Dezenas de miúdos rodeiam de imediato os blindados mal se apercebem da chegada dos Comandos portugueses. Num país louco pelo futebol, muitos deles envergam as camisolas dos seus ídolos preferidos. Muitas delas improvisadas. Um deles escreveu a preto, numa t-shirt amarela, “Ronaldo, 7”. Outro, com mais tendência para as balizas, tentou colocar o nome do guarda-redes do Futebol Clube do Porto. “Kazilas”, lê-se a cor-de-rosa.

Os miúdos cercam rapidamente os portugueses. Vieram pedir comida. A maioria foi deslocada com as famílias, vítimas dos combates entre os diferentes grupos armados. E num país onde a esmagadora maioria das pessoas vive da agricultura familiar, isso significa ficar sem o principal meio de subsistência. Os Comandos portugueses procuram ajudar como podem, entregam-lhes o que resta das suas próprias rações de combate: bolachas, enlatados ou mesmo rebuçados. A maioria destas crianças não tem qualquer perspetiva de futuro. E a dura realidade é que muitas delas vão ser em breve recrutadas para combaterem em grupos armados, aliciadas pela promessa de uma vida melhor.

Findo o abastecimento, a coluna militar faz-se de novo à estrada. Depois de um dia altamente desgastante, a etapa de hoje é a mais curta: 79 quilómetros entre Bambari e Grimari, que vão demorar “apenas” cinco ou seis horas a fazer. O blindado treme por todos os lados, de vez em quando dá um solavanco mais forte quando apanha um buraco maior.

“E isto é uma via principal, uma espécie de A1 em Portugal”, brinca Moka, o comandante deste grupo.

Numa viagem tão dura, há várias formas de tentar fazer o tempo passar mais depressa. Uma delas é a música.

Chouriços e cerveja

Uma cerveja quente pode ser a coisa mais incrível do mundo.

Em qualquer outro momento, uma cerveja quente é uma cerveja quente e isso é terrível. Ninguém a quer beber. Mas ao fim de três dias de uma viagem extenuante, com a roupa suada colada ao corpo e os braços e o rosto vermelhos do pó, uma cerveja quente que nos passam para a mão de repente fica fresca na nossa cabeça. E, ainda que por uns segundos, faz-nos abstrair da dura realidade disto tudo.

Estamos em Grimari, num campo das Nações Unidas administrado por uma Força do Burundi, e é aqui que os portugueses vão acampar no penúltimo dia de viagem. Há um bar de onde vêm as cervejas quentes de meio litro e no qual foi instalado um televisor. Militares de vários países seguem atentamente as incidências de um Real Madrid-Villareal.

Final de tarde. Há quem prefira estar já a preparar o jantar do que a ver a bola. Apercebendo-se da chegada dos portugueses, dezenas de pessoas acorrem ao outro lado da rede que traça a fronteira do campo para tentar vender fruta, cana de açúcar ou mesmo garrafas de Coca-Cola. Um pequeno fogareiro foi aceso ao lado de um dos blindados. Hoje o jantar será massa com milho e atum.

Durante o curso, estes militares são treinados para comer ração de combate. Trata-se de um kit que vem dentro de um saco de plástico castanho claro selado, com a alimentação necessária para um dia, no que toca às calorias, e que consiste em refeições de conserva, bolachas, sumos e alguns chocolates. “Começa a cansar, já nem se pode. Foi no curso, depois do curso é aqui. Tentamos sempre fugir, arranjar outros meios”, confessa um dos militares. Por isso, sempre que podem, mandam vir outras coisas de Portugal pelas famílias. Desde massas a chouriços.

Bangui à vista

“Cuidado que do lado direito é ravina!”

“Psycho” vai ao volante. “Atenção aí ao buraco!”, vai-lhe avisando o “Caçador”, que segue em pé na torre da viatura e tem uma visão mais abrangente do caminho. “Acertaste mesmo no buraco…”

“Psycho” e “Caçador” são os nomes operacionais, ou “cod oper”, de Francisco e Daniel, dois dos militares que completaram o 127º curso de Comandos. São os nomes de código pelos quais são chamados em contexto operacional e durante as ações desenvolvidas no terreno.

O comandante da equipa que segue nesta viatura é o primeiro-sargento Arnaldo Capelo. Hoje em dia estes são os homens com os quais tem de contar em combate, mas há dois anos eram apenas jovens recrutas que davam entrada para o seu primeiro dia no Exército. E, nesse dia, o sargento Capelo estava lá para os receber. “Vi a cara de nervosismo, insegurança, inquietude que tinham. E vê-los hoje e o nível de profissionalismo com que desempenham as suas funções todos os dias e todas as noites, tenho de me sentir orgulhoso. A maioria destes rapazes há dois anos tinha cerca de 18 anos. A maior parte nunca tinha saído da asa protetora dos pais. E hoje estão aqui homens feitos.”

Há dois anos eram apenas uns miúdos. Hoje são homens nos quais o sargento Capelo confia a vida.

Estamos já no último dia de viagem para Bangui e, de repente, algo estranho acontece.

“O que é que se passa? Isto não treme, nem nada?”, ouve-se o condutor questionar.

Chegámos a Sibut e os últimos 120 quilómetros até à capital trazem-nos o único troço de estrada alcatroada do país. Depois de dias de caminhos de terra acidentados, com buracos em que os blindados da frente chegam a entrar lá dentro e desaparecem da linha de vista, o asfalto não deixa de ser uma sensação incrível mas ao mesmo tempo estranha. “Parece que é como andar em cima de veludo”, dirá alguém.

Mas os problemas não acabam por aqui. Os termómetros passam os 40 graus. O alcatrão ferve. A temperatura e o desgaste da viagem fazem com que dois pneus rebentem e atrasem ainda mais a caravana.

Depois de quatro longos dias de viagem, entrar em Bangui é como entrar noutra realidade, com as suas ruas movimentadas, os mercados ao ar livre à beira da estrada com a carne viva que se vende ali mesmo em cima de uma mesa de madeira a apanhar com o pó das viaturas e também o olhar desconfiado das populações, que na capital tem muitas vezes uma postura de maior animosidade face aos capacetes azuis das Nações Unidas. Bangui viveu de resto este ano um aumento da violência. Registaram-se pelo menos 30 mortes desde o princípio de abril, entre elas a de um soldado ao serviço da MINUSCA.

A coluna de blindados cruza finalmente a entrada altamente guardada do Campo M’Poko, o campo militar junto ao aeroporto onde os portugueses têm o seu aquartelamento permanente.

Após um mês de dura missão em Bangassou, é tempo de um reencontro emotivo com os camaradas que ficaram em Bangui.

Um documento visual histórico: a grande transformação

4 de abril de 2016. É o “momento zero” de todo o projeto. Nesse dia, o Expresso entrevistou um grupo de 67 jovens que deu entrada no Regimento de Comandos da Carregueira, na Amadora, para iniciar a recruta. Todos tinham como objetivo entrar ainda nesse ano no curso de Comandos. Mas apenas 11 deles chegariam ao fim.

Agora em África, para a primeira missão das suas vidas, ganharam uma nova identidade em combate. Nesta "família", cada um tem um nome diferente. Um código operacional, ou "cod oper".

Houve um dia em que o “Drácula”, o “Psycho” ou o “Caçador” eram apenas o Rui, o Francisco e o Daniel e não passavam de um grupo de miúdos amedrontados que estava prestes a rapar o cabelo e a dar entrada no seu primeiro dia no Exército.

Nesse dia nós estávamos lá, tal como estivemos em muitos outros dias ao longo dos últimos dois anos, numa viagem que lhes mudou os rostos e as vidas.