Todos os dias, às cinco da tarde, o pastor de Zeebrugge, Fernand Márechal, prepara uma sopa de peixe e serve-a aos refugiados. “Faço isto há seis anos, nunca sei quantos vêm. Uns dias aparecem seis, outros dias 15, às vezes são 30.” O padre reparou que, à medida que o Brexit se aproximava, iam aparecendo mais bocas com fome. Foi ali que conhecemos Rachid.
“Estes homens chegam aqui numa condição psicológica aflitiva”, diz o pároco. “O que eles passaram até aqui chegar é absolutamente desumano.” Márechal tem dificuldades em perceber a Bélgica, que precisa de trabalhadores mas não dá uma oportunidade aos homens que atravessam a Europa à procura de uma vida melhor. “Há muita gente que diz que eles nos querem roubar os trabalhos. Mas quando olhamos para os trabalhos de menor condição, vemos que nenhum belga os ocupa. Então eles ficam sem ninguém. E estes rapazes ficam de pernas e mãos atados, resta-lhes arriscar a vida e tentar chegar a Inglaterra.”
Não é só a fome e a loucura de tudo o que passaram, na viagem até Zeebrugge, estes homens também acumulam mazelas. Em 2016, os Médicos do Mundo abriram aqui uma delegação para atender os migrantes. Todas as segundas-feiras, dois médicos e quatro enfermeiras dão consultas gratuitas a estes homens. “Muitos pedem-nos ansiolíticos, antidepressivos, mas isso recusamos. O tratamento psiquiátrico requer um acompanhamento que aqui é impossível funcionar”, admite Luc Foucart, o clínico de serviço.
“Mas isso não quer dizer que eles não cheguem aqui em farrapos. Vêm com os sonhos perdidos, quando chegam a Zeebrugge percebem que tudo aquilo que imaginaram se tornou um pesadelo”, conta o doutor Foucart. Dá um exemplo que o comove. “Às vezes vejo-os a fotografarem-se junto de carros de grande cilindrada e a mandarem essas fotos às famílias. Preocupam-se em lavar-se e ter um ar arranjado antes de fazer as imagens. Querem dizer a quem ficou lá atrás que estão bem, que estão a correr atrás de tudo o que sonharam. E emociono-me quando vejo que não é nada assim.”
Rachid veio à consulta, tem febre e dores no corpo, o médico diagnostica-lhe uma amigdalite. “A maior parte dos casos que tratamos são traumas, que fazem quando caem dos camiões, ou cortes, porque a rede das vedações é demasiado afiada.” A hipotermia é uma preocupação constante, não falta quem chegue ali e lhe desmaie de fome. “Aquela sopa que o padre Márechal lhes dá é muitas vezes a única coisa que comem numa semana. É tão desumano, isso.”
A refeição quente é no entanto polémica. As manifestações da extrema-direita acontecem todas à porta de casa do pároco, um líder do Vlaams Belang acusou-o de ser um traidor da Bélgica. Do alto dos seus 71 anos, Fernand Márechal tem a resposta preparada. “Sabe o que fiz quando ouvi isso? Instalei dentro da Igreja uma estátua e um quadro sobre os refugiados. Chama-se ‘Import-Export’ e retrata como a Bélgica exporta bombas para estes países para depois importar refugiados.”
Nas traseiras de casa tem uma arrecadação cuja porta está sempre aberta, há homens que vêm e vão e vão deixando os seus pertences para trás, que depois outros migrantes aproveitam, até conseguirem dar o salto.
“Eu nunca sei quando eles desaparecem. Calculo que os que não voltam são os que conseguem chegar a Inglaterra”, diz o padre. Às vezes a polícia detém um ou outro homem por uma noite – depois disso, são sempre soltos. Outras vezes os que não conseguem passar a vedação voltam uma noite, e outra noite, e depois outra, até não voltarem mais. E o pároco de Zeebrugge até já se tinha afeiçoado a Rachid, Said e Mustafa, que voltaram muitas vezes. Jantou com eles no domingo, e na segunda-feira, e novamente na terça. Mas nessa noite eles encontraram uma brecha na vedação, contornaram o arame pelas águas frias do Mar do Norte e desapareceram para dentro do porto. E depois não voltaram mais.