Isto não é uma estação de metro
Fotografias de Rui Duarte Silva e texto de Ana França em Kharkiv, Ucrânia

As primeiras imagens do tipo de destruição que a Rússia estava preparada para infligir na Ucrânia chegaram de Kharkiv
Ainda não tinha nascido o sol no dia 24 de fevereiro e já a segunda maior cidade do país, a menos de 40 quilómetros da Rússia, despertava sob o som de artilharia
Passados dois meses, continua a existir a possibilidade de entrar e sair de Kharkiv pela parte ocidental da cidade - os russos estão a norte e nordeste - mas nem todos desejam ou podem fugir
Quem fica passa os dias preso debaixo do chão, em garagens próprias, abrigos comunitários ou nas estações de metro da cidade
A estação de Heroiv Pratsi é a que tem recebido mais gente. Antes da guerra servia o bairro de Saltivka, uma zona residencial com prédios altos e janelas quadradas e pequenas
Hoje é uma zona de guerra, não há edifício que não tenha marcas de balas, buracos de morteiros ou mísseis, estilhaços. Os residentes de Saltivka entenderam logo nos primeiros dias que só no metro estariam seguros
Mas o metro não é assim tão seguro. Só é mais seguro que a rua
Sobre o mármore gelado destas plataformas, e dentro das carruagens escuras que ficaram abandonadas quando a guerra começou, já viveram mais de 2000 pessoas
Neste momento, a estação de metro de Heroiv Pratsi, em Kharkiv, é o abrigo antiaéreo de 582 pessoas
As bombas caem lá fora e fazem vibrar o chão e as paredes do edifício
As paredes do metro tremem e aqui dentro todos abanam a cabeça
Grande parte da população é idosa, há pessoas com deficiências motoras, cardíacas, pobres que não têm como viver fora das redes de apoio social que conhecem, doentes mentais, mães com filhos pequenos que não querem fugir sem os maridos
Os cães deitam-se aos pés dos donos, os gatos enroscam-se em almofadas ou, imponentes, olham para a confusão de cima de caixotes que os donos usam como mesa de cabeceira
A mãe do membro mais novo desta comunidade, Nazar, com um ano e cinco meses, diz que o pior é quando os bebés começam a chorar porque sentem medo e não conseguem explicar - nem ela ao seu pequeno
Quando o bebé chora as pessoas que querem dormir começam aos gritos com Nazar, e com ela, Nadia, para que o acalme. O stress é constante
Há roupa estendida nos canos do aquecimento central, nos puxadores das portas, nos corrimões que acompanham a escadaria
As divisões que separam o espaço de cada cubículo são placas suspensas de metal fino, toda a gente vê o que toda a gente faz
O que um dia foi a bilheteira hoje é uma espécie de central eléctrica onde todos os residentes de Heroiv Pratsi aquecem água para café, chá, massa instantânea, papas ou para um “banho” muito rudimentar na casa de banho imunda da estação
As mulheres idosas têm de ir com outra mulher à casa de banho, porque não há sanita, é um buraco, e não tem já força para se agacharem sozinhas
O metro de Kharkiv é o único refúgio para quem já não tem nada.
Créditos
Fotografias Rui Duarte Silva
Texto Ana França
Web Design Tiago Pereira Santos
Web Development João Melancia
Edição e coordenação Joana Beleza
Direção João Vieira Pereira
Expresso 2022
