Baixa de Lisboa: liquidação total

É a grande montra de Portugal para os milhões de turistas que cá chegam, mas tem 121 lojas fechadas. Os prédios devolutos transformam-se em hotéis e o comércio resume-se a restaurantes e venda de lembranças. Radiografia do Expresso às ruas da Baixa Pombalina, candidata a Património da Humanidade

Em 2023, numa semana de abril, a Baixa de Lisboa perdeu 261 anos de história. Mais duas lojas centenárias encerraram. No total de 380 lojas, quase um terço tem as portas fechadas. A zona da cidade que chegou a ser o grande centro comercial do país entrou em declínio no virar do milénio, encontrou solução no turismo e especializou-se nele. O novo comércio mascara-se de antigo, mas a diversidade é só uma aparência. Hoje, Lisboa poderia ser uma cidade qualquer

13 de julho de 2023

José Ribeiro ainda guarda o barómetro-padrão que o avô usava em 1951, quando a Óptica Jomil abriu. “Tecnologia alemã, dupla caixa de vácuo, mantive-o sempre afinado”. A pressão atmosférica é uma variável importante para os optometristas. Hoje, consulta-se no telemóvel. A vitrine onde está guardado é a original, a mesma onde os óculos que ali se vendem estão trancados para que ninguém os experimente sem estar devidamente acompanhado.

Esta loja de óculos, na Rua Áurea, na Baixa de Lisboa, funciona à antiga e o serviço é personalizado. “Quantas ainda trabalham assim hoje em dia?”, questiona José. Ao lado do barómetro-padrão estão caixas com água de rosas para lavar os olhos. Muitas das peças que ali estão já não se usam, mas, através delas, os clientes podem saber como se fazia antigamente. “Isto é que vale a pena preservar.” O empresário refere-se à identidade que desaparece da cidade de Lisboa sempre que estabelecimentos como o dele encerram para darem lugar a novos hotéis ou restaurantes. 

Numa semana de abril, a Baixa de Lisboa perdeu 261 anos de história: a Casa Senna e a Sapataria e Chapelaria Lord, fundadas em 1834 e 1951, respetivamente, fecharam. A primeira chegou a fornecer os jogos da Casa Real, nos últimos tempos da monarquia portuguesa, assim como as primeiras chuteiras do Sporting. 

Fotografia da Casa Senna anterior a 1920. Por cima da porta principal podia ler-se: "Bilhares e seus acessórios. Jogos Diversos"

A Casa Senna fechou em abril de 2023, na Baixa de Lisboa, e reabriu em Massamá, Sintra

O encerramento da loja é um desgosto que carrega José Mendes Pinto, sócio desde 1982. A relação com o antigo proprietário do prédio, onde a Casa Senna se dividia em duas lojas, era boa. Os problemas vieram depois. “Foi o neto que iniciou o litígio. Primeiro, tirou-nos o escritório que tínhamos no andar de cima. Depois, em 2018, meteu uma ação de despejo para as lojas. Perdeu nas três instâncias porque já estávamos em vias de entrar para o programa Lojas com História”, diz o lojista.

A Câmara Municipal de Lisboa chegou a pôr o carimbo na loja mais antiga, de 1834, mas a segunda, que era arrendada desde 1996, não reuniu critérios para ser distinguida e acabou por ser encerrada. “Não nos conseguiu despejar de uma maneira, despejou de outra”, lamenta Mendes Pinto, que agora opera a loja a partir de Massamá, a cerca de 20 km do local onde foi fundada a Casa Senna.

O programa Lojas com História, criado em 2015 pela autarquia de Lisboa, não conseguiu evitar o desfecho. Este programa é a única política pública em vigor que tenta travar a homogeneização do comércio da cidade através do congelamento das rendas dos estabelecimentos distinguidos e da proteção dos contratos. "A Baixa que temos hoje não é a que tínhamos há 30 anos", refere Diogo Moura, vereador da Cultura.

Na ponta oposta desta discussão estão os proprietários das lojas e os senhorios fazem-se ouvir contra a proteção das rendas através da Associação Lisbonense de Proprietários (ALP): o presidente Luís Menezes Leitão diz que é uma “medida persecutória” e a diretora de comunicação, Diana Ralha, conta o outro lado da história do fecho da Casa Senna. Em representação do dono daquele prédio, a ALP defendeu em tribunal que, além da antiguidade, “a Casa Senna não tinha nem mobiliário, nem características, não tinha rigorosamente nada que a caracterizasse como loja histórica” e que congelar a renda “seria uma violação de todos os princípios da concorrência”. “Qual é o sentido que faz haver lojas a pagar €20 de renda no centro de Lisboa?”, questiona Menezes Leitão.

Para a Câmara, a “salvaguarda do comércio tradicional” é parte fundamental da candidatura da Baixa Pombalina a Património Imaterial da Humanidade UNESCO, que se consumou em janeiro deste ano. O documento destaca que "a feição predominantemente comercial e de serviços da Baixa está, no essencial, conservada", mas reconhece que há um enfraquecimento das tradições, "característico de todos os centros históricos europeus".

As lojas centenárias desaparecem sem deixar rasto, para trás ficam os cadeados à porta e as grades enferrujadas. Pelos vidros das montras veem-se caixotes e amontoados de cartas por abrir. A Baixa deixou de ser o grande centro comercial do país, entrou em declínio entre a década de 90 do século passado e os anos 2000; encontrou o turismo na primeira década do novo milénio e especializou-se até fazer desaparecer os estabelecimentos que, até aqui, tinham resistido aos ventos de mudança. As grandes marcas internacionais, a restauração e os souvenirs ocupam-lhes o lugar.

No início de 2023, e ao longo de várias semanas, o Expresso analisou o estado de centenas de lojas nas principais ruas entre o Terreiro do Paço e a Praça do Rossio. Entre no mapa e navegue pela Baixa:

Lojas da Baixa de Lisboa

Na Baixa era onde se encontrava a vanguarda do comércio, as coisas que não se vendiam em mais lado algum em Portugal, as lojas só de rolhas para garrafas, as iguarias do café e do chá, as garrafeiras únicas, o equipamento de esgrima, as peles e os grandes salões de tecidos que competiam com os de Paris e Milão.

Há 20 anos, a rua Augusta ou o Terreiro do Paço eram estradas e parques de estacionamento. Se, entretanto, perderam os carros e ganharam pessoas, foram também entregues às esplanadas de estabelecimentos privados, onde se paga para usufruir de um banco à sombra. Perdeu-se a diversidade do comércio, os restaurantes e as lojas de lembranças duplicaram; outros negócios, menos alavancados pelo crescimento do turismo, caíram para menos de metade.

Lojas da Baixa por área de negócio


A Ótica Jomil fica ao lado da ourivesaria Sarmento. Tem 153 anos e incomoda muita gente, diz o dono, por ser uma loja grande. Rodrigo Sarmento orgulha-se de ainda ali estar contra todas as probabilidades. É a sua vitória. Nas traseiras, tem um museu onde vai guardando as peças mais importantes e os frontais das outras joalharias, relojoarias e ourivesarias que vão fechando na Baixa, lápides de um ofício que deu nome a duas das principais artérias da cidade (rua do Ouro e rua da Prata) e que agora desaparecem.

José e Rodrigo conhecem-se desde sempre. Cresceram ali, na esquina da rua Áurea, virada para o elevador de Santa Justa. Têm os carimbos das Lojas com História na porta, o que significa que as rendas estão congeladas e os contratos blindados contra a pressão imobiliária. Esse balão de oxigénio só vai durar até 2027. Depois, caso a lei deixe de os proteger, ficam entregues ao mercado.

“Os sobrinhos da antiga proprietária não quiseram vender o imóvel aos lojistas porque havia quem desse mais. Foi aí que entrou o fundo de investimento. Desde que essa entidade comprou o imóvel, tiveram sempre como objetivo primeiro tirar-nos daqui”, acusa José Ribeiro, da Jomil: “Ofereceram valores baixíssimos para sairmos os dois em conjunto. Como não acedemos, tentaram dividir para reinar. Fizeram-me uma proposta para ir para outra loja, noutra parte da cidade”. Rodrigo Sarmento ainda chegou a ver o primeiro projeto do fundo imobiliário para o imóvel. “Previa o encerramento e a mudança estrutural de todas as lojas do prédio” para nascer o que seria um hotel. Já este ano, o jornal lisboeta "A Mensagem" fez o levantamento e concluiu que a abertura de cinco hotéis na Baixa teve como consequência o encerramento de 20 lojas.

O Rossio foi o centro de convívio durante o século XIX. A Loja das Meias abriu portas em 1905, na esquina da rua Augusta com a Praça D. Pedro IV

Nos anos 30, a loja cresceu. As montras amplas dos dois pisos resultaram do projeto de modernização das fachadas assinado pelo arquiteto Raúl Lino

Uma multinacional de vestuário instalou-se naquele espaço de uma das praças mais icónicas de Lisboa

Os vestígios

À porta dos números 195 e 197 da rua Augusta, numa das lojas da cadeia Manteigaria, várias pessoas provam pela primeira vez um pastel de nata. Por cima da porta, há uma palavra cravada na madeira ornamentada: “Camiseiro”. É um vestígio da antiga camisaria Pitta, a mais antiga da Península Ibérica, fundada em 1887. Fechou em 2018 e as máquinas de costura deram lugar aos balcões. A montra, de influência anglófona com traços de revivalismo romântico, uma inovação para a época, foi mantida por opção de quem ocupa agora o espaço. Deixou de ser a camisaria Pitta, passou a ser mais uma das muitas lojas onde se podem comer pastéis de nata na Rua Augusta.

Quem está todos os dias no batente assistiu nas últimas décadas ao divórcio dos portugueses com a Baixa. Foi o incêndio do Chiado e foram os centros comerciais, as Amoreiras, o El Corte Inglés e o Colombo. Pedro Guimarães, docente do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território (IGOT), confirma: “A perda da dimensão funcional da Baixa tem uma grande carga simbólica e há muito saudosismo associado a isso”. Guilherme Pereira, sociólogo, completa: “Com a expansão da cidade, muitos portugueses saíram do centro para a periferia. A Baixa já tinha assistido a muitas transformações, não tinha era assistido à substituição por vagas de gente que vem de fora”.

Um dos efeitos colaterais do brutal aumento de turistas na Baixa e consequente pressão urbanística tornou-se evidente num levantamento feito pela Associação de Dinamização da Baixa Pombalina (ADBP) e pelo Expresso: 32% das lojas daquela zona do centro de Lisboa, muitas destas centenárias, estão fechadas.

As grades fechadas e grafitadas dão à rua da Prata um ar sombrio. É uma lembrança do declínio que o centro da cidade sofreu no virar do milénio. Os prédios do último quarteirão, mesmo antes de chegar à Praça da Figueira, estão devolutos. Pelo menos um deles pertence à Santa Casa da Misericórdia e tem, desde 2014, uma tela na fachada a anunciar a sua reabilitação. Os edifícios ora estão devolutos, ora são convertidos em hotéis ou habitação de luxo.

“É preciso não diabolizar o turismo”, defende Pedro Guimarães. “Às vezes caímos nessa tentação, mas é preciso não esquecer que o turismo é um dos motores da nossa economia e que a capital foi sujeita a uma reabilitação sem precedentes graças isso mesmo.” Algumas das montras decrépitas são o preço a pagar pela renovação dos edifícios, muitos deles já em obras, outros embrenhados em longos processos de licenciamento, em fase de compra, venda ou revenda. "São empreitadas para as quais é preciso ter os prédios vazios e que resultam, muitas vezes, no despejo ou deslocação de arrendatários do comércio", explica o presidente da ADBP, Vasco de Mello. A Baixa sórdida, vazia e perigosa dos anos 90 e 2000, relembra Luís Menezes Leitão, estaria hoje exatamente na mesma “se não fosse o investimento”. De 2013 a 2022, foram licenciados para obras de requalificação 382 edifícios na freguesia de Santa Maria Maior.

Quem ali cresceu e trabalhou a vida inteira diz que essa renovação se está a fazer a custo da memória e da identidade de uma zona que conta de tantas formas o passado do país. Num levantamento da Baixa feito em 2016, o sociólogo Guilherme Pereira diz que “muitos ocupantes, nacionais ou estrangeiros” desconhecem o património e precisam de acompanhamento no momento em que investem na Baixa. Por exemplo, numa nova loja de kebabs, no número 4 da rua Condes de Monsanto, “picaram os azulejos do pintor e ceramista português Jorge Colaço, que existiam há mais de um século”. Durante a remodelação do número 227 da rua da Prata desapareceu, no 1.º andar, um quadro clássico do século XIX. “O homem e a mulher retratados na pintura eram, provavelmente, os primeiros proprietários do edifício”, escreve Guilherme nas conclusões do levantamento. 

Paulo Barata, designer gráfico, salvou o letreiro que estava na montra da Casa Senna. Foi a última peça que juntou à vasta coleção do seu projeto, o Letreiro Galeria. Num dos armazéns da Fundição de Oeiras, guarda a memória da cidade. Com a mulher, Rita Múrias, salvam, armazenam e catalogam, desde 2014, neons e frontais dos que já foram os grandes nomes da Baixa de Lisboa. “Às vezes, quando as obras arrancam, chegamos lá, perguntamos pelos letreiros e percebemos que já estão no lixo. E assim sabemos que aquilo que estamos a fazer é urgente.”

Cada letreiro conta uma história, como o da Pastelaria Sul América, na Avenida de Roma, onde os trabalhos de remoção do neon tiveram de ser interrompidos para acalmar uma senhora que se emocionou com o fecho da loja, por ser “onde ia sempre lanchar com a avó que acabara de perder”, lembra Paulo Barata. O comércio não é apenas uma atividade económica, explica Pedro Guimarães: “Ao fecharem espaços históricos, as pessoas perdem os locais onde exerciam a socialização de forma espontânea e livre e, mais grave ainda, põe-se em risco a componente de abastecimento das populações, que é de interesse público”.

Retrosaria Luís S. Fernandes, na rua da Conceição
Fotografia de arquivo de João Carlos Santos, 2006

Fechado há mais de cinco anos, o espaço ficou degradado
Nuno Fox , 2023

O “estranhíssimo” caso

Em cada esquina, uma loja de souvenirs. Vendem postais com imagens de uma identidade lisboeta que está a desaparecer, mas também cachecóis de clubes de futebol, camisolas do Cristiano Ronaldo e ímanes. Coexistem com as grandes superfícies comerciais, pagam as mesmas rendas e vendem produtos de baixo custo. "São um caso estranhíssimo de subsistência", considera Pedro Magalhães. Luís Menezes Leitão recusa-se a responsabilizar os senhorios pelo fenómeno. "Se há quem pague, é deixar funcionar o mercado", essa entidade que os lojistas de lojas históricas declaram corrompida por forças que não compreendem.

Vasco de Mello, da Associação de Dinamização da Baixa Pombalina (ADBP), explica que nesta zona da cidade já ouviu falar em rendas de determinadas lojas a rondar os 25 mil euros por mês. Uma pesquisa pela plataforma Imovirtual comprova-o: a renda mais alta que o Expresso encontrou foi de 38 mil euros por 1130 m2 na rua do Carmo. “Rendas que por vezes não encontram racional económico, mas que são pagas para garantir o posicionamento das marcas nos melhores sítios”. As lojas centenárias não conseguem competir com elas, mas as de souvenirs e as mercearias conseguem.

Algumas dessas lojas, exemplifica Vasco de Mello, vendem pastas de dentes da marca branca dos supermercados, o que indica que lá terão sido compradas e que estarão a ser revendidas praticamente pelo mesmo valor. “Ninguém consegue explicar. Os empregados vão e vêm e as lojas estão abertas de manhã à noite".

Ao Expresso, fonte judicial explica que “o verdadeiro negócio destas lojas é a legalização de imigrantes”, que “a venda de bugigangas para turistas ou fast food é meramente acessório” e fala numa clara “vontade política de ignorar o óbvio”. “Para atribuir uma autorização de residência totalmente fundada em pressupostos fraudulentos, um funcionário do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras [SEF] tem apenas de clicar meia dúzia de vezes com o rato. Já para efectuar uma proposta de indeferimento, tem que perder várias horas no terreno, elaborar um extenso relatório que justifique o porquê de não conceder um título de residência a alguém que não cumpriu com a regra básica sobre a qual assenta toda a política migratória da União Europeia – solicitar o visto adequado à finalidade pretendida antes da entrada no espaço da União”, critica a mesma fonte. Já em agosto de 2022, um inspetor do SEF contava que estas lojas servem para “receber imigrantes” que “chegam a pagar €2000 por um contrato de trabalho”.

Na lei nº 23 de 2007, o contrato de trabalho e a inscrição na Segurança Social são requisitos obrigatórios para pedir autorização de residência em Portugal. A fonte judicial completa que "é normal estas pessoas permanecerem nas lojas o tempo estritamente necessário até terem um documento comprovativo de que o pedido está em curso". Com autorização concedida, algumas ficam por cá, outras rumam a outros países europeus, dentro do espaço Schengen. Voltam aos estabelecimentos quando é expectável que o SEF fiscalize a sua presença em Portugal e é neste registo que permanecem durante os cinco anos necessários para obter a nacionalidade portuguesa. "O 'dono' do espaço, consegue assim uma fonte de mão-de-obra quase inesgotável e gratuita, podendo ainda ganhar dinheiro a vender estes postos de trabalho”.

“A mão invisível do mercado, de facto, não funciona. Há muita distorção e, com isso, perdem-se espaços da dimensão simbólica das nossas cidades”, defende Pedro Guimarães. O Expresso tentou ouvir trabalhadores de algumas destas lojas, mas ninguém aceitou prestar depoimentos.

A boutique Buda tinha uma das suas lojas na rua Augusta, no número 142
Fotografia de arquivo do Expresso

O espaço da boutique foi ocupado, em 2015, pela 'boulangerie' Paul. A padaria recria o ambiente antigo, que tinha sido destruído pelas obras de modernização das lojas em décadas anteriores

Fotografia atual (2023) de Nuno Fox

O carrossel e a roda gigante

Há uma montra impossível de ignorar no Rossio. Foi pensada para isso. O carrossel e a roda-gigante em miniatura, estrategicamente virados para a rua, são os primeiros sinais de que o conceito é excêntrico. De fora, pode ouvir-se uma banda sonora entoada por um coro de crianças. Os funcionários usam fardas com dragonas aos ombros e entram ao serviço por uma porta que imita a de um circo. "Isso parece a famosa fábrica de chocolates!", diz uma turista brasileira que entra fascinada.

O Mundo Fantástico da Sardinha Portuguesa vende as conservas da fábrica da COMUR, produzidas em Aveiro, mas o grupo que detém este negócio, O Valor do Tempo, é bem maior do que isso. Tem a Casa Portuguesa do Pastel de Bacalhau, o Figurado de Barcelos, o Museu da Cerveja, no Terreiro do Paço, e três das mais reputadas lojas históricas da Baixa e do Chiado: a Brasileira, a Joalharia do Carmo e a Casa Pereira da Conceição. Conseguiram transformá-las e enchê-las de clientes. Adaptaram os velhos negócios ao comércio de experiências e vendem tradição sob várias formas.

O vereador da cultura, Diogo Moura, acredita que as lojas com história desempenham papéis muito importantes nas comunidades em que se inserem e que não têm de ser uma dor de cabeça para quem queira investir. “Ganha o lojista, porque vê a sua renda protegida, e o proprietário, porque fica isento do pagamento de IMI, por exemplo”. Mas Luís Menezes Leitão defende os proprietários: “Esse tipo de benefícios fiscais são anuais e há pequenos proprietários que precisam dos rendimentos agora.” Diz que a abertura do mercado impulsionada pelo Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU), de que os lojistas tanto se queixam, “tem vindo a ser atenuada por sucessivas alterações à lei”.

No Instituto de Geografia e Ordenamento do Território, Pedro Guimarães, cuja tese de doutoramento tem como título "Planeamento Comercial em Portugal", não está tão certo de que assim seja e avisa que é preciso controlo, por parte do Estado, para garantir que a Baixa possa voltar a “acumular diversas funções comerciais, residenciais e de lazer”. 

Tiago Quaresma, administrador do grupo O Valor do Tempo, não tem dúvidas de que ali foi encontrada a receita. O comércio de abastecimento migrou para a esfera do digital e a resposta não passa por fazer “babysitting das lojas com história, mas sim dar-lhes o acompanhamento necessário para que se modernizem". Outros lojistas ouvidos pelo Expresso não hesitaram em chamar ao conceito destas lojas “apropriação cultural”, “espalhafato” ou “Disneyland”.

Quando o grupo adquiriu a Joalharia do Carmo, que assim se chama desde 1926, para a encher de clientes, aplicou-lhe a mesma receita que aplica em todas as suas lojas: “Abrimos as portas para não obrigar as pessoas a terem de tocar à campainha para entrar, como acontece nas joalharias mais tradicionais, demos uma luz quente à montra, trabalhámos o aroma, recuperámos o mobiliário original e a decoração e apostámos na filigrana portuguesa, que é certificada desde 2018”. O processo foi semelhante na Casa Pereira da Conceição, na rua Augusta, ambas lojas com história, certificadas pela autarquia.

Casa Pereira da Conceição, no número 102 da rua Augusta, em 2000
Fotografia de arquivo do Expresso

Fotografia atual (2023) de Nuno Fox

Descontrolo

Ainda que seja possível adaptar os negócios aos novos tempos, Pedro Guimarães sublinha que não se pode menosprezar a importância das políticas públicas na regulação e desregulação do mercado e diz que até se pode contar a história da perda da importância da Baixa através delas. Nas décadas de 90 e 2000, por exemplo, quando o declínio da Baixa se tornou evidente e preocupante, houve dois planos especiais de urbanismo comercial, o PROCOM e o URBCOM. Em 2002, criou-se a Agência Baixa-Chiado, uma estrutura de gestão de centros urbanos. Tentativas vãs, segundo os estudos feitos por este investigador, de revitalizar o centro da cidade.

Deu-se com uma mão e tirou-se com a outra. Se, por um lado, houve uma tentativa de dar resposta às preocupações dos comerciantes, por outro, adotaram-se medidas de desregulação do mercado. Pedro Guimarães aponta duas em particular que permitiram que fosse a Baixa levada até ao ponto da total homogeneização: “Desde logo o NRAU, que fragilizou a posição dos arrendatários em caso de trespasse, e, em segundo lugar, a iniciativa Licenciamento Zero, extremamente liberal, que simplificou a abertura de estabelecimentos de comércio e restauração e contribuiu em grande escala para a homogeneização e monofuncionalidade da Baixa, deixando que o mercado ocupasse os espaços da cidade, sem controlo dos usos”. 

O empresário Tiago Quaresma sugere que a Baixa é a montra de Portugal para o mundo e um ativo demasiado valioso para estar exclusivamente ao encargo da autarquia e da freguesia de Santa Maria Maior. Propõe a criação de um comité onde todos os intervenientes estejam presentes: “As Lojas com História têm de estar, a autarquia, os proprietários, a higiene urbana, a segurança também. Neste momento isso está tudo disperso. Imaginem o que seria se o Colombo fosse gerido assim. É importante trazer gente profissional”. 

A Baixa está hoje mais monofuncional e homogénea, ou seja, mais desprotegida e menos resiliente do que nunca. A perda de diversidade expõe a cidade ao risco de "entrar em declínio caso os turistas desapareçam, por causa de uma pandemia, por exemplo, como aconteceu há pouco tempo, ou simplesmente porque Lisboa deixe de estar na moda”. E oferece uma solução estudada: “Sei que isto vai contra os ideais liberais, mas é preciso voltar a regulamentar o comércio, nomeadamente quanto aos horários de funcionamento das lojas, uma medida comprovadamente eficaz no controlo dos usos.”

Na candidatura a Património Imaterial da Humanidade, a Câmara Municipal de Lisboa reconheceu o problema: "O aumento do número de turistas que se verifica atualmente em Lisboa, e que se concentra fundamentalmente na Lisboa Histórica e, mais densamente, na Baixa Pombalina, pode constituir uma ameaça à qualidade urbana". A autarquia diz estar a realizar "estudos sobre este impacto de modo a definir uma estratégia de atuação". Sobre o futuro, Pedro Guimarães não se atreve a fazer previsões: "Há 15 anos, ninguém teria conseguido imaginar o que seria a Baixa hoje. Daqui a 15 anos, será outra coisa completamente diferente”. Resoluções, José Ribeiro só tem uma: que a Baixa “não deixe de pertencer às pessoas”.

DOCUMENTÁRIO

Créditos

Texto de Rúben Tiago Pereira
com Hélder Martins
Vídeo e Documentário Rúben Tiago Pereira
Infografia e tratamento de dados Sofia Miguel Rosa
Fotografias Margarida Alves
Webdesign Tiago Pereira Santos
Apoio web Maria Romero e João Melancia
Coordenação Marta Gonçalves, Pedro Candeias e Joana Beleza
Direção João Vieira Pereira

Expresso 2023