





As associações culturais e os clubes recreativos estão a desaparecer do centro de Lisboa
Em Arroios, Xabregas, Marvila, Intendente e Baixa, os artistas estão a ficar sem estúdios e ateliês
Pulmões de criatividade e núcleos de resistência à gentrificação estão a perder lugar na capital
Dizem
Dizem-se "sem chão para criar"
Dizem
Que Lisboa é esta em vias de extinção?
11 ABRIL 2024
I.
Pintar sem pensar no senhorio
No átrio da Arroz Estúdios, em Xabregas, o chão guarda as manchas de tinta e as marcas de todos os artistas que por lá passaram, espalhadas como um sítio arqueológico. “Era aqui que costumava pôr as telas a secar”. Eric Hanu identifica aquelas que tem quase a certeza serem da sua autoria. Foi ali que soube pela primeira vez o que era “pintar sem se preocupar com o senhorio”. Por manchas como aquelas, que agora são apenas vestígios do nascimento de uma obra de arte, chegou a perder cauções de quartos que arrendou em Lisboa. “Naquele chão pombalino de madeira, uma simples gota fica marcada para sempre."
O seu génio nunca coube nesses pequenos quartos, por vezes interiores. “Tinha sempre um canto plastificado para pintar, mas, quando queria usar materiais mais tóxicos, tinha de descer as escadas e fazê-lo na rua. Ficava horas a olhar para as telas a secar no passeio.”
Hoje, com 32 anos, Eric, que é também autor do “demónio de intervenção” que abre esta reportagem, já sabe o que é viver da arte. As obras que outrora teve dificuldade em vender saem agora por centenas ou até milhares de euros. “O sítio que tornou isso possível foi a Arroz”, diz sem hesitar. Trata o espaço daquela associação cultural, na avenida Infante Dom Henrique, como “um útero”, “um espaço de liberdade”, um “sítio idílico”.

Eric Hanu no seu estúdio na Arroz
Eric Hanu no seu estúdio na Arroz
Há cinco anos, aquele terreno, que já pertenceu ao Porto de Lisboa e foi privatizado, era apenas um aglomerado de velhos barracões decadentes. Os artistas deram-lhe a volta com o pouco que tinham. “Cortámos as ervas daninhas, pintámos, desenhámos e construímos de raíz”, diz Steven Mackay, 32 anos, britânico de Manchester e presidente da associação.
Hoje, a Arroz é um “puxadinho colorido”, com salas de trabalho e pequenos estúdios que dão para um largo grande e versátil, que se transforma para receber festas e eventos que foram ganhando nome na cidade e cuja bilheteira paga as contas do sonho.
“A esta hora, num dia normal, já estaria aqui gente a criar coisas.” Não era suposto estar vazio a uma segunda-feira de manhã, diz Eric. A notícia de que a associação vai ter de sair dali fez dispersar os artistas. O terreno está em processo de venda por decisão do proprietário e naquela incubadora de arte, já ouviram dizer os inquilinos, vai nascer mais um restaurante da cadeira norte-americana McDonald’s.
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O átrio da Arroz Estúdios
O átrio da Arroz Estúdios



Eric Hanu, 32 anos, artista. É o autor do pequeno demónio que abre esta reportagem
Eric Hanu, 32 anos, artista. É o autor do pequeno demónio que abre esta reportagem
O licenciamento da futura obra complicou-se e o prazo de saída foi alargado. Ganharam tempo, mas a instabilidade também não é boa para os artistas. “Deixámo-los ir embora. E agora? Dizemos-lhes para voltarem?”, questiona Steven.
A busca por um novo espaço com características tão peculiares corre em pano de fundo. Na Câmara Municipal de Lisboa já não depositam muita esperança e sair do centro da cidade é uma hipótese. Eric já levou os materiais do pequeno estúdio onde tudo começou, mas guarda uma chave. No momento mais alto da carreira, está a pintar na marquise do seu T1 arrendado em Odivelas.
O estúdio do lado ainda está ocupado com as coisas de Hugo Rodrigues, 37 anos. Guarda na Arroz um sistema de som construído à mão pelo seu trio de música dub, os Mystic Fyah. Em Portugal, só há sete aparelhagens personalizadas como aquela. Começaram o projeto em 2007, na Crew Hassan, outra coletividade que, entretanto, fechou em 2023 e agora existe apenas virtualmente.
“O nosso sistema de som precisa de muito espaço. Só a Arroz é que nos abriu as portas quando precisámos.” Naquele ateliê estão 12 módulos, entre colunas e amplificadores. Tudo montado pode chegar aos dois metros e meio de altura. “Quando a Arroz fechar, vou ter de arrumar tudo na arrecadação da minha mãe, em Loures”, diz Hugo.
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Hugo Rodrigues, 32 anos, músico
Hugo Rodrigues, 32 anos, músico

Só há sete sound systems em Portugal. Por comparação, em Espanha há quase uma centena. Há um site que regista todos os sound systems do mundo
Só há sete sound systems em Portugal. Por comparação, em Espanha há quase uma centena. Há um site que regista todos os sound systems do mundo

II.
A morte de uma cidade inteira
A comitiva de 15 dirigentes associativos reunida à porta da Assembleia Municipal de Lisboa separa-se. Quem vai falar ao púlpito segue por uma porta, quem vai assistir segue por outra. O tempo de intervenção dos munícipes é o primeiro ponto na ordem de trabalhos da reunião de 30 de janeiro. “O fecho de várias coletividades significa a morte de uma cidade inteira”, diz a representante da Sirigaita, uma coletividade também em vias de ficar sem a sede, no Intendente. A seguir, sobe a palco o porta-voz da Arroz: “Queremos mais um Big Mac, ou a contínua sandes cultural que faz desta cidade o que é?”. Eupremio Scarpa, presidente da Relâmpago, uma associação recriativa e desportiva que está a começar e ainda não tem sede, é o último. “Temos carros e bagageiras transformados em arrecadações.” Os deputados municipais ouvem-nos.
Sentado na plateia está o presidente da Confederação Portuguesa de Coletividades de Cultura, Recreio e Desporto (CPCCRD), João de Matos Bernardino, que conhece bem o fenómeno. “Começa a ser raro encontrar uma associação que não esteja com problemas de espaço.”
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O n.º 94 da rua de São Lázaro já foi sede da associação Ilga e palco de confrontos entre a PSP e ocupas. Em dezembro de 2023, foi uma das paragens na marcha "despejados para nada", organizada pela Sirigaita
O n.º 94 da rua de São Lázaro já foi sede da associação Ilga e palco de confrontos entre a PSP e ocupas. Em dezembro de 2023, foi uma das paragens na marcha "despejados para nada", organizada pela Sirigaita


Pelas contas da Confederação, que faz o registo possível em ata, a tendência no concelho de Lisboa é de decréscimo: se no princípio do milénio existiam cerca de 700 coletividades, em 2024 eram apenas 550.
Esta é uma tendência contrária ao que mostram os dados da Conta Satélite da Economia Social, que dão conta que, de 2010 para 2019, o número de associações na área de cultura e recreio cresceu de 26 para 33 mil em todo o país. O presidente da confederação contextualiza: "Com os portugueses a saírem das cidades para viverem nos subúrbios, as coletividades também são deslocalizadas".
As razões para fechar portas de uma associação no centro de Lisboa podem ser várias, desde problemas com os vizinhos à perda de sócios, mas há duas que são consensuais entre os dirigentes associativos: o Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU) e a pandemia de covid-19.
O Nada Lisbon, clube pioneiro na cena techno em Portugal, conhece bem esse êxodo para a periferia. Começou em Xabregas, mudou-se para Marvila e já vai em Loures. “Com tanta mudança, houve muita gente que deixou de acreditar em nós, desde o público aos próprios artistas.”

Marco Maldororo, dj
Marco Maldororo, dj
É meia-noite, Marco Maldororo, o DJ residente, prepara-se para mais uma noite no clube. À rua Ary dos Santos, no Prior Velho, colada ao aeroporto, estão a chegar discotecas e projetos associativos que fugiram do centro da cidade para armazéns industriais ao lado de oficinas e empresas de rent-a-car.
Ao Nada juntou-se o Planeta Manas, dois armazéns ao lado. Há carta branca para fazer barulho. As batidas pesadas do techno rivalizam com as turbinas dos aviões a descolar e aterrar. “Duvido que venham para aqui fazer condomínios de luxo. Isto é à prova de gentrificação”, ironiza Marco.

III.
Contas de merceeiro
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Osom de pianos, flautas transversais e vozes corais ecoam pelos corredores labirínticos da Academia de Amadores de Música. Baltasar Martinho, 22 anos, foi um dos primeiros alunos do curso de percussão, ainda em criança, e voltou em 2023 para aprofundar conhecimentos no instrumento pelo qual se apaixonou na adolescência: a guitarra. Nem deu para aquecer a cadeira da famosa “sala 16”, situada numa das torres do prédio pombalino que tem uma vista sobre Lisboa da qual o músico se despede.
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Baltasar Martinho, 22 anos, aluno de guitarra da Academia é quem toca a música que está a ouvir ("Le Gondolier", de Johann Kaspar Mertz)
Baltasar Martinho, 22 anos, aluno de guitarra da Academia é quem toca a música que está a ouvir ("Le Gondolier", de Johann Kaspar Mertz)




Conceição Sousa, diretora pedagógica, professora e ex-aluna da academia
Conceição Sousa, diretora pedagógica, professora e ex-aluna da academia
A Academia tem de sair daquelas instalações até agosto de 2025. “Não consigo imaginar a escola noutro sítio", diz Baltasar Martinho."Sempre achei que estas paredes, com tanto tempo e tanta música, fossem intocáveis.”
O Estado português tentou que fossem.
Em 2017, uma alteração ao Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU) criou um regime de proteção de entidades de interesse cultural e social em que a renda fica protegida por um teto máximo. Nesse ano, a autarquia atribuiu esse estatuto a cinco coletividades, uma das quais a Academia, fundada em 1884, com sede no centro de Lisboa desde 1957, no 2º esquerdo do número 18 da rua Nova da Trindade. “Durou pouco”, lamenta Conceição Sousa, aluna há 40 anos, professora e diretora pedagógica. Em fevereiro de 2024, a Academia teve de voltar às negociações com o senhorio.
E perdeu.
Pedro Martins Barata, presidente da Academia, explica como toda a direção foi apanhada desprevenida: “A lei estipula que as rendas, quando protegidas, não podem ultrapassar 1/15 do valor patrimonial do imóvel. Então, o senhorio, à nossa revelia, mandou reavaliar o prédio. O valor, claro, disparou”.
A renda de €542 por 700 metros quadrados na Baixa passou para €3728.
“Se uma escola de música centenária não puder estar no centro da cidade, o que será de Lisboa? Os nossos miúdos de instrumentos às costas são o último vestígio de bairrismo que resta na Baixa.”
O aumento do valor da renda, explica o diretor, é suficiente para inviabilizar o projeto. “Temos 40 professores com carreiras estáveis e descongeladas, 300 alunos, muitos dos quais em regime de patrocínio com o Estado, e 14 acordos com escolas do ensino regular. Mesmo recebendo as comparticipações do Ministério da Educação por cada aluno - que não são atualizadas há nove anos - os apoios do Estado e da autarquia, as contas aqui são de merceeiro.”

IV.
“Pulmão criativo” sem fôlego
O eixo da avenida Almirante Reis e Praça do Chile até à Baixa é “um autêntico ecossistema de associações e coletividades”, um “verdadeiro pulmão criativo e de pensamento crítico da cidade”, argumenta Luís Mendes. O geógrafo do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território (IGOT) da Universidade de Lisboa explica que o Intedente foi revitalizado pelos artistas, mas agora parece já não ter lugar para eles. "Tal como Alcântara, Xabregas e Marvila, a Almirante Reis e, em especial, o Intendente são espaços de resistência ao avanço da dinâmica imobiliária da cidade, que é cada vez mais selvagem. Estas coletividades são não lucrativas, não mercantis e têm um papel importante de concentração da população dos bairros nos tempos livres.”
Luís Mendes fala do mercado livre como “um drama para as associações”, que têm de competir por espaço sem ferramentas para tal. “O arrendamento habitacional está na ordem do dia, mas o despejo das coletividades a longo prazo é igualmente dramático para a cidade, porque aos poucos vai-se destruindo a identidade de bairro e redes primárias de apoio extremamente importantes.”
Distribuição por sector do Valor Acrescentado Bruto (VAB) na Economia Social
Em 2020 (%)
A economia social tem um peso de mais de €5,5 mil milhões na economia nacional. As associações da cultura, comunicação e recreio representam 3,7% desse valor, bem como 4,9% do total do emprego remunerado na área do associativismo em Portugal. Na última conta satélite, publicada em 2023 pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) com números de 2019 e 2020, contaram-se 73 851 associações de vários setores. A cultura representa 44,8% do total, com cerca de 33 mil associações.
Distribuição do Emprego remunerado da Economia Social
Em 2020 (%)
Muitas desempenham também um papel importante no emprego de quem está a cumprir penas de serviço comunitário (em 2019 eram 2621 pessoas em 967 entidades) ou de trabalhadores com incapacidade. A cultura, comunicação e atividades de recreio representavam então 30% desses empregos.
Trabalho comunitário em entidades da economia social
Distribuição dos indivíduos com penas e medidas de trabalho comunitário. Em 2020 (%)
Trabalhadores com Perda ou Anomalia de funções corporais (TPA) em entidades da economia social
Em 2020 (%)
“Em Portugal, o Estado depende em grande medida do associativismo para dar resposta a muitos problemas sociais que surgem no país e poupa centenas de milhões de euros por isso”, diz Pedro Franco, presidente da Associação das Coletividades do Concelho de Lisboa (ACCL). “Acho que as pessoas não têm noção de que a maioria dos dirigentes associativos na área da cultura são voluntários. Andam nisto por pura carolice.”
Os valores das quotas, principalmente para as coletividades mais antigas, continuam muito baixos. Para além dos apoios públicos, que “não chegam para todos”, os bares e a vida noturna são o grande sustento do associativismo, mas nem aí o Estado perdoa, atira Pedro Franco. “Se o bar, discoteca, ou café de uma associação singrar, paga IRC como uma empresa normal. Quem lá trabalha muitas vezes são sócios em regime de voluntariado e esse dinheiro serve para pagar as contas de associações que desempenham importantes papéis sociais.”
Academia de Recreio Artístico
Fundada em 1855, com sede na rua dos Fanqueiros, foi comprada em 2017, ao abrigo dos vistos gold, por um cidadão vietnamita, que só ali esteve uma vez e que recusa renovação do contrato. A academia tem até 2027 para sair
Sociedade Musical Ordem e Progresso
Foi alegando "motivos de segurança" que os senhorios ( um fundo imobiliário italiano e francês) conseguiram pôr uma providência cautelar que impede a associação de fazer espetáculos no velho salão, privando-a de uma fonte de rendimento. Fundada em 1898, a SMOP espera pelo estatuto de interesse público cultural atribuído pela CML. Futuro projeto do edifício é um hostel
Sociedade de Instrução Guilherme Cossoul
Depois de serem despejados em 2018, a freguesia da Estrela propôs novas instalações no Centro Comunitário da Madragoa, mas acordo para realização de obras ficou sem efeito. A autarquia cedeu um espaço mais pequeno e temporário. A antiga sede, o número 61 na avenida Dom Carlos I, já tem na fachada o nome do novo hotel
Marítimo Lisboa Clube
Entre o Bairro Alto e o Cais do Sodré, o clube "tirava muita juventude dos maus caminhos". O novo espaço cedido pela câmara na rua da Boavista é mais pequeno e precisa de obras, mas é "tudo aquilo de que a associação precisava", diz o presidente
Hot Club de Portugal
O espaço de espetáculos de um dos clubes de jazz mais antigos da Europa fechou em 2023 por questões de segurança. A escola chegou a acordo com a CML, proprietária, e o número 48 da Praça da Alegria vai reabrir com sala de concertos e núcleo museológico
Mercado Anjos 70
Começou em 2011, na sede da Associação Criativa da Taberna das Almas. O edifício foi comprado uma década depois e o mercado aguentou na incerteza até 2023, ano em que saiu dos Anjos e passou a dividir-se entre dois espaços mais periféricos, o 8 Marvila e o A11 Galleries, em Alvalade
Sirigaita
O contrato de arrendamento acabou em fevereiro, mas a associação não entregou as chaves e quer ir a tribunal contestar a ordem de despejo. As dirigentes da associação, fundada em 2018, garantem continuar a “lutar em todas as frentes”
Casa Independente
Depois de mais de uma década em funcionamento, o projeto berço de vários artistas, com residências e uma importante rede de partilha de cultura, vai ter de deixar até 2026 o número 45 do Largo do Intendente
Amigos do Minho
Venda após venda, num processo a que o último presidente, José Ramadas, chama de “pura especulação imobiliária”, e com prazos “propositadamente irrealistas” para o exercício do direito de preferência, a associação fechou portas em 2017, com quase um século de existência
Lusitano Clube
O número 81 da rua de São João da Praça foi comprado em 2017 e a associação foi despejada, apesar de “disposta a pagar renda alta”, diz o ex-dirigente, João Campos. Autarquia cedeu uma loja na Graça com renda de €1000, mas a coletividade acabou por sucumbir durante a pandemia

V.
Não chega para todos
Pedro Duarte, presidente do Marítimo Lisboa Clube, fundado na década de 1940, ainda se lembra do dia do fecho de portas da associação mais conhecida da Calçada da Bica Grande. “Foi um verdadeiro trauma para o bairro. Tivemos de acalmar muitos moradores e sócios para que não perdessem a cabeça.” Agora, não se vê para dentro da antiga sede. As lonas baças tapam as janelas e o pó denuncia as obras no interior da fração. Era ali, na cave direita do número 36, que, desde 1952, a associação ensaiava para as marchas populares de Lisboa. Em 2023, a Bica já marchou sem casa e venceu com o lema “um cantinho para a gente”. Ensaiaram no Liceu Passos Manuel, onde nem havia espaço para montar os arcos.
Depois de um ano de “autêntico calvário”, a Câmara cedeu à associação, para as próximas décadas, um novo espaço: duas lojas em mau estado, 50 metros quadrados com reboco à vista. Ficam por baixo de uma estrada, no número 2 da rua da Boavista. Entra água pelo tecto e as janelas estão tapadas com tijolo. “Era tudo o que queríamos”, diz o presidente. Olha em redor e começa a imaginar o resultado final das obras que vão ser feitas pelos sócios. “Vamos abrir um vão de passagem, as janelas vão dar mais luz ao espaço. É pequenino, mas temos de ser realistas. A autarquia empenhou-se, não podemos morder a mão a quem nos ajuda.”
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Ensaio da Marcha da Bica em 2019, ainda na antiga sede
Ensaio da Marcha da Bica em 2019, ainda na antiga sede

Pedro Duarte, presidente do Marítimo Lisboa Clube
Pedro Duarte, presidente do Marítimo Lisboa Clube

A nova sede da associação, na rua da Boavista, precisa de obras
A nova sede da associação, na rua da Boavista, precisa de obras

As janelas que aparecem de fundo na fotografia anterior estão agora tapadas por duas lonas baças
As janelas que aparecem de fundo na fotografia anterior estão agora tapadas por duas lonas baças

Já este ano, o orçamento camarário para a cultura cresceu 13%, de €55 para €62 milhões. “Tem vindo sempre a subir desde que tomámos posse”, relembra o vereador da cultura, Diogo Moura, eleito pelo CDS-PP para o executivo camarário de Carlos Moedas. Projetos e apoios há muitos: a abertura do Museu do Design e da Moda (MUDE), do Pavilhão Azul para a coleção Julião Sarmento e do Teatro Variedades, bem como de mais três espaços do programa "Um Teatro em Cada Bairro". Salvou-se o Hot Club de Portugal, a biblioteca Alberto Manguel transformou-se no Espaço Atlântida e houve ainda apoios para a reconversão do Teatro Aberto e da Biblioteca António Lobo Antunes. Ainda assim, não chega para todos.
“A falta de espaço na cidade é um dos maiores desafios desta vereação.” Diogo Moura admite estar a acompanhar de perto: “As necessidades destas associações são muito específicas em termos de metros quadrados e localização. É difícil encontrar espaços municipais desta natureza disponíveis e prontos para ocupação. O património da autarquia não é infinito e parte dele está sujeito a projetos de habitação.” A CML tem, neste momento, 150 espaços culturais cedidos à cultura e 11 associações abrangidas pelo estatuto de interesse público e cultural.

VI.
Sem chão para criar
A companhia Fim do Teatro está a ensaiar uma peça num salão de cerimónias do antigo quartel da GNR do Cabeço da Bola, cedido à Largo Residências depois de longas negociações entre aquela força de segurança e o Estado. Nascida no Largo do Intendente há mais de dez anos, a associação está novamente com as malas à porta.
A transição para o quartel foi simbólica. “Serviu para mostrar que o património do Estado deve ser colocado à disposição do bem comum enquanto está vazio”, diz a dirigente Marta Silva. No entanto, também foi temporária. Aquele velho quartel é um dos imóveis que o Governo de António Costa incluiu no Fundo Nacional de Reabilitação do Edificado (FNRE) e vai servir para habitação acessível.
As obras vão finalmente começar. Próximo destino? Os jardins do antigo hospital Miguel Bombarda, encerrado desde 2011. Ali vai nascer um novo pólo sociocultural, também este temporário, embora a burocracia dos projetos do Estado para o local antecipe uma baliza temporal mais generosa.
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Pedro Saavedra, 47 anos, na primeira passagem geral da peça "O Segundo Livro de Caleb Kesenberg"
Pedro Saavedra, 47 anos, na primeira passagem geral da peça "O Segundo Livro de Caleb Kesenberg"


Da esquerda para a direita, os atores Henrique Maio Gil, Paula Garcia, Edmundo Rosa, Marta Jardim e Wagner Borges
Da esquerda para a direita, os atores Henrique Maio Gil, Paula Garcia, Edmundo Rosa, Marta Jardim e Wagner Borges

A Largo Residências está de saída do ex-quartel da GNR do Cabeço da Bola
A Largo Residências está de saída do ex-quartel da GNR do Cabeço da Bola
Os cinco atores aquecem a voz para o primeiro ensaio geral da peça “O Segundo livro de Caleb Kesenberg”. O encenador, Pedro Saavedra, 47 anos, identifica-se com o enredo: uma história sobre uma caravana de viajantes que atravessa uma vasta estepe para chegar à segurança do outro lado da fronteira. Ao longo da carreira, muitos dos seus projetos de teatro também foram “nómadas”, sem sítio para ensaiar e apresentar.
O encenador denuncia uma carência crónica de locais públicos que tenham uma ligação institucional e imparcial com os artistas. “O Estado tem de ter as suas incubadoras de arte, como faz com as empresas unicórnio, por exemplo. A criação artística é como a investigação científica. Inventar uma nova estética é como descobrir um princípio ativo bioquímico. Nas últimas décadas, o Estado investiu na formação, mas agora não existem infraestruturas que alavanquem a produção artística.”
Do outro lado do quartel deserto está Engrácia Cardoso. Pede desculpa pela desarrumação que começa à porta do estúdio e se adensa lá dentro: há pincéis, lápis, guaches, acrílicos, óleos em barra, telas estendidas e telas enroladas. Está no processo de catalogar todo o seu trabalho. “Mudanças são o caos”, desabafa. Quando saiu do Intendente, teve de levar tudo para casa dos pais, em Tomar, e muito se perdeu pelo caminho.
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Engrácia Cardoso, artista
Engrácia Cardoso, artista

"Eu sou pequena, mas preciso de espaço", comenta. A ambiguidade entre a minúcia e a explosão de cores faz parte do seu processo criativo. Naquele estúdio há quadros de enorme detalhe, pintados a tinta da china, lado a lado com telas de grandes dimensões. "Eu preciso de um sítio que acolha essa alternância entre estados de espírito. Pinto muito a óleo e, durante a pandemia, quando estivemos todos em casa, tive de abandonar esse material, pela intensidade do cheiro. É o que vai voltar a acontecer agora que vou perder este espaço."
Engrácia não vai avançar com a Largo para os jardins do Bombarda: "O espaço é bonito, mas os artistas vão para bungalows de madeira. O papel não se dá bem com a humidade e o chão, onde pinto os quadros maiores, é de madeira. As ripas ficariam vincadas na tela". Mudança a mudança, o ateliê da artista foi encolhendo até desaparecer. Engrácia Cardoso venceu o VIII Grande Prémio de Pintura Fidelidade Mundial, em 2004, e o Prémio Paula Rego, em 2016. “Sinto-me a ficar sem chão para criar.”






Créditos
Texto Rúben Tiago Pereira
Fotografias José Fernandes
Webdesign Tiago Pereira Santos
Grafismo Eric Hanu, Carlos Paes e Tiago Pereira Santos
Infografia Sofia Miguel Rosa
Apoio web João Melancia
Coordenação Isabel Leiria, Marta Gonçalves e Joana Beleza
Direção João Vieira Pereira
Expresso 2024

