Quantos quilómetros
para voltar a casa?

Fugiram da Ucrânia e procuram família e amigos que os possam ajudar. Vão para Itália, Roménia, Montenegro e Portugal. A viagem de ida de Igor, Myroslava, Aleksander e Valériya tem outra viagem em mente: regressar a casa. Não é um desejo, é quase uma certeza

A bola de espelho há umas noites que não roda. O chão que costumava ficar pegajoso de todas as bebidas que se entornam por acidente na pista de dança está agora coberto por mais de uma centena de colchões. Há mantas espalhadas, chinelos perdidos. No palco, a mesa de mistura desapareceu para dar lugar a um espaço de armazenamento de lençóis, cobertores e roupas. O dj deixou de passar música e hoje os únicos gritos que se ouvem são de alerta: “vai sair mais um autocarro para a estação de comboios”.

O edifício do hotel Mondachi, na cidade romena de Suceava, na Roménia, sempre foi salão de festas. Viu beijos e abraços de felicidade. Hoje é lugar de dormida, de reencontros e partidas.

Igor Korolev chegou há umas horas. Está sentado num dos colchões no centro da sala. Tem um gato laranja preso pela trela e um dedo ferido. A filha corre de um lado para o outro e brinca com as outras crianças que ali estão. Falta-lhe a mulher, a cunhada e os dois filhos. Foram ao supermercado. “Voltam mais logo”, diz o homem de 58 anos que tem na sua história algo que o “envergonha”. 

“Sou russo.”

“Ser apátrida é melhor do que ser russo”

Igor, 58 anos

“Espero regressar rapidamente à Ucrânia”

Olena, 44 anos

📍 Destino desta família: Itália
A 1880 km de casa, em Uman, no centro da Ucrânia

Igor e Olena, a mulher — ucraniana de 44 anos — conheceram-se numa peregrinação na Crimeia. Namoraram. Ele deixou Moscovo há quase 20 anos para casar e viver em Uman, uma cidade na região de Tcherkássi, no centro da Ucrânia. 

- Eu quero voltar.

Olena é assertiva no desejo. Igor mantém-se em silêncio, mas a expressão do rosto grita o quão está contra esta ideia da mulher. “Agora temos o nosso pequeno conflito familiar”, diz ele. O plano que por agora têm é seguir para o norte de Itália, onde os pais de Olena vivem. “Quero levar os meus filhos para lá. Não sei quanto tempo isto vai durar, mas tenho a esperança de regressar muito rapidamente.”

Mas, se ela conta deixar lá os três filhos — de seis, oito e 11 anos —, ele quer que esta seja a oportunidade de cumprir um sonho que até agora nunca cumpriu. “Sempre quis sair do leste, mas nunca soube para onde, esta pode ser a oportunidade de assentar noutro lugar”, contrapõe Igor.

Quando foi mãe, Olena deixou de ter tempo para ser ativista. Ou melhor, aprendeu a fazê-lo de outra forma. “Agora, por exemplo, ia cozinhar para os militares e ajudar os voluntários que vigiam a cidade onde vivíamos”, conta. Antes, era politicamente ativa, participava em manifestações e protestos. Quando os ucranianos saíram à rua para denunciar a corrupção e fraude nas eleições de 2004, com a Revolução Laranja, Olena estava lá. Quase uma década depois, quando o Governo pró-Rússia recusou avançar com o prometido pedido de adesão à União Europeia — e acabou por desencadear os protestos na praça Maidan —, Olena também estava lá.

Esteve sempre e agora não quer deixar de estar também.

Ser apátrida

Entre a terra que não é de ninguém o silêncio é apenas cortado pelo crocitar dos corvos negros e pelo contínuo rodar dos trolleys no alcatrão. São puxados por mulheres que carregam filhos no colo ou que os trazem pelas mãos. Outras empurram as mães nas cadeiras de rodas ou amparam-nas pelo braço até entrarem na cidade de Siret. Há mais de duas semanas que a travessia do posto fronteiriço tem apenas um sentido: fugir da Ucrânia para procurar segurança na Roménia.

As autoridades estimam que em março, diariamente, tenham cruzado só aquela fronteira cerca de sete mil pessoas — de acordo com números das Nações Unidas são mais de 600 mil as pessoas que fugiram da Ucrânia pela Roménia. São sobretudo mulheres, os homens ficam quase sempre para trás — a lei marcial em vigor não permite que os ucranianos entre os 18 e 60 anos saiam do país. Os Korolev são das poucas famílias que chega quase completa.

A nacionalidade russa que tanto envergonha Igor é, ao mesmo tempo, a válvula de escape. “É por vaidade e preguiça que ainda não sou ucraniano. Só me faltava fazer o exame para avaliar o meu conhecimento da língua ucraniana para fazer o pedido de nacionalidade.” Hoje arrepende-se cada vez que se apresenta em todas as fronteiras apenas “com aquele livro” - é assim que se refere ao passaporte da Rússia. “Mais valia ser apátrida. Ser apátrida é melhor que ser russo, por causa de toda a atitude que têm para connosco e que é compreensível que a tenham.

A pista de dança do salão do hotel Mondanchi, em Suceava, virou dormitório

A pista de dança do salão do hotel Mondanchi, em Suceava, virou dormitório

Quando atravessaram fronteira, “aquele livro” fez com que Igor fosse interrogado. Viram-lhe as cartas que trazia nas malas, as mensagens e os e-mails no telemóvel. “Queriam saber se havia alguma ligação à Rússia e qual o posicionamento dele em relação à guerra”, explica Olena. O pai e o irmão de Igor continuam na Rússia. Ambos são professores universitários e estão cada vez mais isolados por serem pró-Ucrânia.  “Ninguém lhes fez mal ou ameaçou, mas há tensão e hostilidade. As pessoas cortaram relações com eles, deixaram de lhes falar. Para o meu pai, que tem 85 anos, é muito complicado.”

A “princesa” que passou o dia e a noite a correr atrás de outras meninas da sua idade interrompe a conversa. Atira-se com o seu fiel escudeiro — o gato Murmur — para cima dos pais. “É a nossa mais nova”, apresentam-na. Chama-se Polina, tem seis anos e com a guerra aprendeu a dizer “que os russos são maus e matam ucranianos”. 

“Para o mais velho, não há contos de fadas. Ele é o mais consciente e é o que tem mais medo. Faz publicações nas redes sociais sobre o assunto, lê e não podemos nem conseguimos esconder-lhe o que está a acontecer”, diz Olena sobre Dmytro, de 11 anos. Têm ainda Alex de oito anos. “O mais difícil foi o primeiro dia, quando a guerra começou.” Acordaram às 05h30 com a primeira explosão. Nas sete horas seguintes os bombardeamentos foram constantes. “Tentámos acalmar os miúdos”, continua Igor.

Até decidirem fugir, todos os dias foram iguais.

“A minha vida era linda. Eu era mesmo feliz”

Myroslava, 20 anos

📍 Destino: Roménia
A 100 km de casa, em Chernivtsi, no sul da Ucrânia

“Olá,

Estou de regresso a casa. Estou bem, a minha região é considerada uma das mais seguras no país. Não foi de todo atacada pelo inimigo. Espero que tudo fique bem em breve.”

A mensagem termina com o emoji 🙏 .  E a conversa continua uns minutos depois com um desejo: “Espero que brevemente seja possível reencontrar-nos na Ucrânia, num país em paz.” 

Myroslava Vivhar, 20 anos, é ucranina. Conhecêmo-la no hotel Mondachi. Ela não está ali a pernoitar, é voluntária. Fala quatro línguas - romeno, russo, ucraniano e um pouco de inglês - e isso faz dela ainda mais valiosa. “Tenho estado como tradutora”, explicava ao Expresso duas semanas antes de trocar connosco as mensagens por telemóvel. Na altura, voltar a casa e atravessar a fronteira no sentido contrário ao da maioria das pessoas não era uma opção.

Foi ainda nos primeiros dias de guerra que escapou de Chernivtsi, no sul da Ucrânia. Veio com as duas cunhadas e os três sobrinhos. Os pais e irmãos ficaram do lado de lá. Quando as filas de vários quilómetros causavam esperas de dias para passar a fronteira na Roménia e Polónia, Myroslava conduziu até à Moldávia. “Esperámos 24 horas, o que foi uma sorte. Naquela altura havia pessoas que demoravam três ou quatro dias.” Depois, entrou em território romeno. “Temos uns familiares afastados cá e uns amigos da família. Além disso, a Roménia é mais segura porque está na NATO [Organização do Tratado do Atlântico Norte].”

Veste umas calças de ganga escura, uma camisola de malha branca pérola, calça umas sapatilhas confortáveis. A imagem da estudante de direito, que usa ainda o colete verde-fluorescente que todos os voluntários envergam, é muito diferente daquela que nos mostra quando puxa do telemóvel para mostrar o seu perfil de Instagram. “Esta era a minha vida”, diz com a voz quase a falhar-lhe. Jantares com as amigas, festas de aniversários, roupas caras, maquilhagem e selfies. 

Enumera todos os privilégios que tinha e com que vivia. Não os faz para exibir, é para explicar como a sua vida mudou. “Eu percebo que a minha situação não é tão difícil como a de outras pessoas. Não perdi a minha família e a casa. Sou rica comparativamente com outras pessoas que perderam as casas e as que nem sabem a língua. A minha vida era linda. Estudava, trabalhava, tinha muitos planos sobre o meu futuro, tinha amigos.” A voz volta a tremer e o controlo que até então tanto se esforçou para manter perde-se. “Eu era mesmo feliz.”

Quanto se pergunta pela guerra e pelo futuro raramente as respostas são dadas em lágrimas. É quando se lembram do passado que as pessoas se desfazem.

Um novo campo de refugiados

Nos primeiros dias da guerra foram chegando as pessoas que tinham algum dinheiro de parte. Passavam o controlo fronteiriço e seguiam caminho para onde quisessem. Tinham — têm — o direito de pedir asilo na Roménia, mas grande parte segue para outros destinos. “Algumas pessoas vêm de carros, muitas a caminhar. Já passaram aqui pessoas que nos contaram que esperaram três dias na fila para sair da Ucrânia”, diz Fabian Badilla, porta-voz da polícia fronteiriça em Siret. 

Pela primeira vez, o Governo da Roménia mandou erguer campos para acolher refugiados. “Não tenho memória de alguma vez o termos feito, as tendas que usamos aqui são as que estão previstas para catástrofes naturais. Na verdade, o que está a acontecer é uma catástrofe, só não é natural”, acrescenta Daniel Dan, bombeiro e um dos responsáveis pelo campo.

À beira da estrada que leva até à fronteira há quem dê informação, quem ofereça transporte, quem sirva chá e sopas quentes; há bancas com roupas, atendimento médico e até um veterinário. Assim que alguém chega a pé há sempre um — por vezes muitos mais — voluntários de braços estendidos com algo para dar algo. Não há criança que entre em Siret que não leve um chocolate.

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Quem chega a Siret sem alojamento assegurado tem várias opções: ir para um dos campos de gestão estatal ou para os centros de acolhimento criados por empresas e organizações da sociedade civil. O hotel Mondachi é uma delas, há muitas mais. “Nunca vi uma mobilização civil tão grande. As pessoas querem mesmo ajudar”, diz ainda Fabian Badilla, da polícia fronteiriça.

As cunhadas de Myroslava também queriam ajudar, mas têm os filhos pequenos para cuidar. “Não têm sítio onde os deixar. Eles já percebem que algo mau está a acontecer.” Um deles, conta, tem três anos e pergunta constantemente pelo pai. “Diz que temos carro e questiona por que não vamos para casa.”

Quando nos despedimos de Myroslava, já nos falava de concluir os estudos na Roménia. Passaram duas semanas desse encontro e voltou para casa. Essa é também uma das razões que explicam a permanência dos refugiados ucranianos na Roménia: a facilidade em voltar para casa, estão mesmo ali ao lado.

“Acordámos com a notícia que Dnipro foi bombardeada”

Aleksander, 29 anos

Marta tem três anos. É a única menina dos quatro filhos de Aleksander

📍 Destino: Montenegro
A 1720 km de casa, em Dnipro, no leste da Ucrânia

“Não vamos ser refugiados. Queremos ao máximo evitar isso.” Aleksander Karpenko, 29 anos, é dos poucos ucranianos homens que conseguiu sair país. Preenche um dos critérios de exceção: ter três ou mais filhos com menores de idade. “Vamos para o Montenegro ter com uns amigos.” Está a contar com uma “espécie de férias”. Uns quatro meses depois logo se vê. “Esta viagem é muito com o objetivo de ir até à costa, ver o mar e libertar a cabeça destes momentos mais tensos, pensar numa nova vida, em novos planos.”

Aleksander está no hotel Mondachi com a mulher, Vlada, 28 anos, e os quatro filhos: Makar, 9,  Miron, 6,  Marta, 3, e Martin, quase com dois. Enquanto os mais velhos estão estendidos na cama de barriga para baixo agarrados ao tablet, o mais novo corre ainda de forma pouco segura atrás de um balão onde alguém pintou a marcador um par de olhos e um sorriso. Marta começa uma birra quando chega o momento de mudar a fralda. “É uma drama queen”, diz o pai enquanto a agarra ao colo e tenta acalmá-la. Cada vez que se tenta soltar dos braços da pequena, ela agarra-o ainda com mais força.

O primeiro destino dos Karpenko é Budapeste, a capital húngara e onde os amigos os vão buscar para os levar até Montenegro.

“Hoje acordámos com a notícia que Dnipro foi bombardeada.” Era lá que viviam. Quando soaram as primeiras sirenes Aleksander tentou explicar que aquilo era sinal de perigo e que sempre que o ouvissem deveria correr para o abrigo. Construíram um no corredor e outro na casa de banho. “O ideal é estarmos sempre em divisões da casa com duas paredes a separarem-nos da rua, por isso os corredores e as casas de banho. Para os miúdos tornou-se quase como um jogo. Ouviam o barulho e escondiam-se.”

O casal tinha um negócio de produtos cosméticos. Vlada era a mente por trás da marca, Aleksander, o responsável pela logística e coordenação da plataforma de vendas. Apesar do comércio ser totalmente online não podem continuar a trabalhar: a produção estava fixada na Ucrânia e era na Rússia que tinham a maior base de clientes. “Mesmo que tivéssemos o que vender, não temos comunicação com os russos nem para vender nem para receber pagamentos.”

Aleksander é ele próprio um retrato do conflito: embora toda a família viva atualmente na Ucrânia, ele é metade russo. A mãe nasceu na Rússia.

O irmão mais novo de Aleksander tem 19 anos, acabou a escola há pouco tempo. “Só espero que não o chamem para lutar. Ele é demasiado jovem.” Na Ucrânia ficaram os pais e os sogros. Só eles os seis fugiram.

Entretanto, no piso térreo do abrigo acumulam-se uma série de pessoas: as que chegam para procurar abrigo e as que saem para continuar a viagem de fuga. Ouvem-se os cães ladrar — quanto mais pequenos mais barulhentos — há muitos animais de estimação nos abrigos. Muitos usam fraldas como bebés não apenas para evitar acidentes nas malas e nas camas das pessoas, mas também porque muitos não se conseguem controlar após vários dias de viagem e à violência a que foram também eles expostos.

A sala onde estão os colchões está praticamente vazia. A partir do meio da tarde voltar a encher.

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No Hotel Mondachi há cama para mais de uma centena de pessoas. “Em 24 horas conseguimos encher a sala duas vezes. As pessoas vêm, dormem, seguem caminho e, entretanto, já estão a chegar novas pessoas que acabaram de atravessar a fronteira e precisam de um sítio para ficar. Há uma grande rotação”, explica Adrian Bolohan, voluntário e um dos coordenadores do centro. Muitas das pessoas precisam apenas de um sítio onde ficar e descansar antes de continuarem para o seu destino. As que têm carro seguem por conta própria, para as outras é disponibilizado um autocarro que as leva até à estação de Suceava, de onde saem vários comboios por dia em direção a Bucareste. Daí é fácil continuar para qualquer capital europeia. A Roménia permite que todos os cidadãos ucranianos viajem gratuitamente na linha férrea.

“Conseguimos marcar duas noites em dois quartos num hotel aqui perto. Temos algum dinheiro para nos mantermos nos próximos tempos”, garante Aleksander. “Estes centros são um ótimo apoio para o imediato, mas também quem não pode pagar um hotel e não tem onde ficar.” Vlada arruma as coisas dos filhos, preparam-se para vagar os seus lugares e dar a vez aos próximos que precisem.

“Eles [ucranianos] vão ganhar. Eles têm de ganhar”

Valériya, 36 anos

Ivan não sabe o porquê mas vai andar de avião pela primeira vez

📍 Destino: Portugal
A 3460 km de casa, em Kiev, capital ucraniana

As mulheres trazem quase todas o dedo anelar adornado, mas quem lhes deu o anel ficou para trás. Valériya Melnikova, 36 anos, está com o filho Ivan, cinco anos, duas malas e a pasta com o computador de trabalho. Não têm mais nada nem ninguém. Chegou à residência do Instituto Politécnico de Bucareste já de noite, bem depois da hora de jantar.

Na manhã seguinte vão para Portugal. A viagem estava nos planos de 2022. As circunstâncias seriam outras: de férias e com todos, ninguém ficaria para trás. “Era suposto ser uma viagem divertida e não isto”, conta Valériya.

Espera-os uma grande amiga que há quase dez anos saiu da Ucrânia e que agora vive em Mirandela. “Têm uma pizzaria. Uma família de ucranianos que cozinha pizzas para os portugueses”, diz. “Não sabemos o que vai acontecer por isso tivemos de procurar um lugar onde ficar onde não tivéssemos que pagar nada.” Fazem parte de um grupo de 266 que foi incluído num voo humanitário promovido pela Câmara Municipal de Cascais. Alguns deles querem  ficar na vila, porque têm algum tipo de ligação. Outros, como Valériya, querem seguir para diferentes zonas do país, onde familiares ou amigos os esperam. Uns quantos não têm ninguém e esta é a oportunidade que precisavam para escapar à guerra.

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Ivan trepa pelo beliche. Sobe as escadas, desce, põe-se em pé em cima do colchão onde vai dormir. Desde que a guerra começou, tudo o que era proibido passou a ser permitido.

Das primeiras vezes que ouvimos bombardeamentos disse-lhe que eram foguetes e tentei aliviar o ambiente. Mas, quando se está em guerra e de repente é preciso fugir, nesse momento, temos de agarrar os miúdos e dizer-lhes ‘estamos em guerra, vais ter de obedecer’. Não é nada pensado, mas no desespero do momento foi o que aconteceu.” Dormiram no carro, dentro da garagem do prédio onde viviam. “Nem ligávamos o carro para nos aquecer porque havia outras pessoas ali abrigadas que não tinham carro.” Ivan “era a máquina aquecedora” que se aninhava à mãe todas as noites.

Durante o dia subiam para casa e tentavam fazer a vida mais normal possível. As pessoas habituam-se aos estouros e sons da guerra, diz. “Começámos a saber distinguir o som das bombas atiradas por nós do som das que vêm contra nós. E acabávamos quase sempre por ouvir os sons que vinham da nossa parte e não eram perigosos.” Foi pouco depois de ver um rocket a passar-lhe por cima da cabeça que decidiu que era altura de sair.

Mãe e filho despediram-se do marido e pai na fronteira. Ele levou-os até lá e depois voltou para trás, foi para Kiev, para casa. Valériya e Ivan caminharam até entrarem na Roménia. “Nem sei qual a cidade em que entrámos, honestamente. Fomos para a fronteira, chegámos às 08h, demorámos 15 minutos até passar e depois caminhámos uns dez minutos só os dois com as malas.”

Esperava encontrar um autocarro. Não havia. Acabaria por ser ajudada por um voluntário que transportava uma família ucraniana que fugira de Kharkiv. “Ele trouxe-nos até Bucareste de carro, parou no McDonalds para comermos — coisa que o Ivan gostou muito. Estamos a falar de uma pessoa que conduziu mais de 20h só para ajudar pessoas sem pedir nada em troca.”

À mesma hora que os Valériya e Ivan chegavam a Bucareste, o marido e pai chegava a Kiev. Sobre o homem que lhe ofereceu o anel com uma pedra azul que usa, Valériya não fala muito. Não diz o nome, nas raras referências que faz é apenas “o meu marido” e quase sempre a seguir é preciso uma pausa mais prolongada para ganhar fôlego e continuar a falar. Eventualmente, ele há-de ir para a guerra. “Eles [homens ucranianos] vão ganhar isto. Eles têm de ganhar isto.” Não acredita noutro final para esta história. Não pode acreditar. 

É hora de partir com destino a Portugal.

Pais despedem-se de filhos, maridos de esposas, avós de netos. Nenhum deles sabe quando vão voltar a estar juntos.

São 17h59, o avião ainda está na pista do aeroporto de Bucareste. Vai sair em breve. “Slava Ukraine”, ouve-se um homem a quebrar o silêncio dentro do A321. E todos repetem: “Slava Ukraine”.

Créditos

Texto e vídeo Marta Gonçalves
Fotografias Nuno Botelho
Infografia Jaime Figueiredo
Edição vídeo Carlos Paes e Rúben Tiago Pereira
Webdesign Tiago Pereira Santos
Apoio web João Melancia
Coordenação Joana Beleza
Direção João Vieira Pereira

Expresso 2022