BRASIL
Parecem casulos onde gente hiberna à espera de ver terra
No Porto de Manaus não há barcos, mas autocarros bíblicos que caminham sobre água. Têm vários andares e estão cheios de camas de rede que parecem casulos onde homens, mulheres e crianças aguardam o destino. E há gente a vender o que houver e tiver de ser junto ao Porto. "Como há Copa, tem por aí muito gringo que vem ter com 'nóis'. E então fica mais fácil vender"
Texto Pedro Candeias, enviado ao Mundial do Brasil Fotografias e Vídeos Daniel Rodrigues Edição vídeo Joana Beleza
S ão 6h30 e já cheira a fritos e a fruta, a carne e a peixe, a pão e a bolos, a suor e a perfume. Há brancos, pretos, índios, mulatos e caboclos. Todos se aviam de provisões no Mercado Adolpho Lisboa para serem aviados para o outro lado do Rio Negro. Vão de barco. A viagem pode demorar horas ou dias em função da distância e do preço que se quiser pagar. Hoje, eles não têm essa opção. Tudo terá de ser mais demorado porque os Expressos não estão a funcionar. Para Santarém e Belém, por exemplo, é uma semana de viagem.
- Tem de ser no ferry, cara, não tem lancha rápida. É uma viagem bacana, até. Quer ir? Não tem medo, não. Estamos protegidos por alguém lá em cima.
O porto fluvial do Bairro dos Remédios é como que um terminal de autocarros bíblicos que caminham sobre água: "Deus é fiel", "Deus te deu a vida para você cuidar sobre ela", "São Cristóvão". Os barcos maiores têm um, dois ou três andares e os decks superiores e estão cheios de camas de rede que parecem casulos onde homens, mulheres e crianças hibernam até verem terra outra vez. A escolha do sítio onde eles se instalam é criteriosa.
- Há quem prefira ir no meio por proteção, como as crianças. Normalmente os homens vão perto da borda. Mas é tranquilo.
O Paulo é instrutor de ginásio em Manaus e vai visitar os pais "lá bem dentro do interior." Está habituado à viagem muito embora não goste que isto se esteja a tornar um hábito. Preferia ter mais dinheiro para os trazer para cá, porque lá é longe. Mas pai é pai e mãe é mãe e não dá para ficar muito tempo longe da família.
Ao longo do Porto, há mãos que seguram espetadinhas de carne, frango assado, mandioca e café. É um negócio a meias, feito entre os tipos que de megafone anunciam os melhores preços e os vendedores que têm as suas banquinhas para pôr à prova o estômago mais forte a esta hora. Vendem-se pacotes de experiências amazónicas.
- Como há Copa, tem por aí muito gringo que vem ter com 'nóis'. E então fica mais fácil vender. Eles não conhecem as nossas 'coisa' e então a gente vende para eles. Como aquele argentino ali que gostou do frito que eu preparei para ele.
A Dona Cristina é baixinha, usa óculos, um boné do Flamengo e está sentada numa cadeira de plástico da Brahma e ao lado está um cão escanzelado, trôpego e doente. Ela tem a pele curtida pelo sol. É cabocla, metade índia, metade portuguesa. O que vende, diz-me, vem do mercado municipal.
- Lá você encontrará de tudo, moço. É só pedir que aparece.
Melancias grandes como abóboras, mandioca, açaí, toranjas, laranjas, tangerinas, abacate para fazer abacatada (abacate e leite), banana tradicional e banana pacovã, que é comida frita. E pirarucu. Este peixe é o bacalhau cá do sítio: cortam-no às postas, salgam-no, enrolam-no como carne. Vende bem. Também há o bodó, pequenino e negro como a noite, que deve ser cozinhado logo que pescado. Não é caro mas tem pouca saída porque assusta.
- Coze ou assa. Fritar não dá. Apodrece depressa, estraga. Mas tem um sabor gostoso, gostoso.
A pronúncia lisboeta traz para o diálogo o protagonista da praxe.
- 'Cê é português? Deixa eu falar uma coisa para você: o Cristiano Ronaldo também é gostoso, gostoso. E eu gosto. Fala isso para ele por mim, 'tá?
