ILHA DA CULATRA EM 1958 E 2002 O núcleo urbano da Culatra, terra de pescadores desde meados do século XIX, já era visível há 60 anos. Nas décadas seguintes, o núcleo dos Hangares haveria de ganhar proporções consideráveis, como assinalado FOTOS INSTITUTO GEOGRÁFICO DO EXÉRCITO

As ocupações no pós-25 de Abril

Era só preciso escolher o terreno onde se queria construir a casa. Depois, erguê-la, com tijolos ou madeira. As ilhas da Ria Formosa chegaram a ser cenário de guerra, com os militares a demolirem as construções que não estivessem caiadas.

Texto, fotos e vídeo Joana Madeira Pereira

D epois do 25 de Abril, as ilhas algarvias nunca mais foram as mesmas. A ocupação dos terrenos dos vários núcleos habitacionais da Ria Formosa foi desenfreada. Até aí, não havia mais do que umas pequenas casas de madeira, usadas pelos pescadores. Há até histórias de portugueses retornados que, após a chegada das ex-colónias africanas, usaram os contentores gigantes com que transportaram os seus haveres para Portugal para marcar o terreno onde iriam construir as suas habitações nas ilhas.

A ilha da Armona (Olhão) e a Culatra (Faro) ganharam uma massa de construção imensa. No pequeno enclave dos Hangares, na Culatra, o ocupação foi feita numa escala bem mais pequena. Mas ainda assim bem visível (como registam as imagens abaixo). No princípio dos anos de 1960, não existiriam mais do que 10 casas; hoje, estão de pé, ainda que por pouco tempo, 159 edificações.

Foi na década de 80 que Manuel Café escolheu o terreno que haveria de ser o da sua casa. “Quem quisesse apanhava 20 metros metros quadrados, quem quisesse apanhava 80”, conta. Com o sócio (que hoje ocupa a habitação ao lado), pôs mãos à obra, fez tijolos, amassou a argamassa. Carteiro de profissão, aproveitava os fins de semana e as folgas para adiantar trabalho. Em 1993, quando se reformou, tornou-se “um efetivo da ilha”.

A “guerra da cal” Nos primeiros anos de 1980, o Governo tentou travar as ocupações ilegais. O período ficou conhecido como a “guerra da cal”. Tudo o que estivesse em construção, mas não fosse caiado, era demolido.

Segundo o livro “Hangares – A História do Primeiro Pioneiro Residente, Ti Manel Lobisomem”, da autoria de Rosa Neves, “a ilha da Culatra parecia um cenário de guerra. As capitanias enviaram barcos e marinheiros. Os militares traziam metralhadoras e picaretas junto da população”.

Foi também nesta altura que nasceram, nas diferentes ilhas, as comissões de moradores e se organizaram as primeiras formas de luta para a legalização das casas, que culminaram com várias manifestações em Faro e Olhão.

Em 1983, parte da ilha da Armona, concelho de Olhão, foi concessionado pelo Governo a esta câmara municipal. Na ilha da Culatra, concelho de Faro, os moradores queixam-se que pouco se fez por eles. Mesmo assim, em dois núcleos populacionais da ilha (Culatra e Farol Nascente), parte das habitações acabaram legalizadas. E em 1992, a eletricidade chegou a estes dois pontos da ilha.

Nos Hangares, mesmo no meio entre estas duas populações, não fossem os geradores e os painéis solares e continuar-se-ia às escuras. “Os cabos subaquáticos da eletricidade acabam mesmo ao chegar aos Hangares, todos os dias passamos por cima deles, sabemos onde estão. Não é esta uma grande frustração?”, queixa-se Manuel Café.

A água só chegou há coisa de quatro anos. Até aí, os furos e as fossas asséticas foram o meio de sobrevivência.

Nos telhados das casas 'hangrenses' pontuam algumas antenas-satélite desde que o advento da televisão digital cá chegou. “Aqui temos tudo”, reforça Manuel Café. Só não têm um comprovativo de legalidade da sua casa.