O ato singular
de filmar a vida

André E. Teodósio, ator, transforma um comentário a Birdman numa espécie de guião. A realizadora Raquel Freire vê um ato heroico em Boyhood. Rui Massena, maestro, fala do terror retratado em Whiplash e Afonso Cruz escreve sobre a luta de Martin Luther King. Para Carlos Branco, major general, Sniper Americano tem equívocos históricos mas traça com exatidão a vida de quem enfrenta diariamente a morte. No Grand Budapest Hotel, Mário Pereira revê a sua própria história como concierge. E tanto Vitor Cardoso como José Félix Costa, um físico e o outro matemático, olham para a ciência das vidas de Stephen Hawking e Alan Turing. São oito textos de autor sobre os nomeados para melhor filme nos Óscares. E temos mais: para cada um, escolhemos um número e explicamos o que tem de especial. Afinal, o que é que fica quando o ecrã se apaga?

Birdman, de Alejandro González Iñarritu

Mais vale um pássaro a voar do que dois na mão

Os inteligentes desistem depois da terceira intervenção percutida, os amantes da New Sincerity desistem após uma hora, e os viciados num bom filme de Hollywood nunca chegaram a entrar. O filme está perto do sublime. Todos acusam Riggan de qualquer coisa: que confunde amor com admiração, que o que faz não é pelo amor à arte mas para ser relevante, que só sabe falar dele, que não é actor mas celebridade, que é um ridículo vestido de licra, justamente o tipo de coisas que normalmente eu também oiço. Como eu o entendo…

Texto André E. Teodósio,ator, encenador e membro fundador do Teatro Praga


Filme Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)

Local CC Amoreiras, o local com melhor vista de Lisboa (porque, justamente, é o único, em Lisboa, de onde não se vê as Amoreiras). Sala 2, que não fica entre a 1 e a 3.

Companhia Sala vazia com pipocas espalhadas pelo chão.

Género Os inteligentes desistem depois da terceira intervenção percutida, os amantes da New Sincerity desistem após uma hora, e os viciados num bom filme de Hollywood nunca chegaram a entrar (embora uns tenham chorado nos slow motion acompanhados por orquestra, e outros acordado cheios de verve nos momentos de pancadaria).

Duração Aguentava mais bateria, mais sequências oníricas, mais citações e mais twists. Só não aguentei o intervalo porque fiquei perdido sem saber o que fazer. Mas foi uma boa metáfora…

Elenco Actores que finalmente puderam aplicar todos os ensinamentos do ‘método do actor’ por frame.

Argumento Confesso que nunca fui grande fã da metáfora muit´fora ou outras figuras de estilo in-your-face opticamente correctas. Para isso basta o teatro! Mas apesar de tudo este filme merece que as use para o analisar. E porquê? Porque está perto do sublime, sublime esse que opera hoje, e em justa medida, na relação ubíqua que temos com a nossa experiência. Aceitar conhecer o que nos pode matar ou então sobreviver recusando conhecer e ficando assim cativo da ignorância, eis a questão? Não tivesse também estreado em 2014 o “Adeus à linguagem” de Jean-Luc Godard, atrever-me-ia a afirmar que o filme de Alejandro Iñarritu seria, dos filmes a que tive acesso entenda-se, aquele que esteve mais próximo do conceito filosófico, em voga na última década e meia, de ‘realismo especulativo’. Isto é, um filme a partir da ideia de não fazer arte deliberadamente. Sim, estou a dar uma de Tabitha Dickinson, a crítica de teatro influente que no filme categorizou de ‘super realista’ o evento-desencadeador-de todos-os-acontecimentos, a saber, o espectáculo de teatro ‘Do que falamos quando falamos de amor’ a partir da obra de Raymond Carver e encenado por um actor de Hollywood fora de circuito de seu nome Riggan Thomson.

Tudo começa com uma supernova, chamemos-lhe Ícaro, imagem perfeita para a tal estrela (de)cadente, famoso por ter protagonizado uma sequela de filmes de acção vestido de pássaro que não o da Rua Sésamo, e que hoje em dia vive assaltado por uma voz interior diabólica herdada de um passado heróico, que lhe dita gramáticas aviárias que não se coadunam com a sua vida na terra de artista desempregado, e sem praia por perto. Afinal, libertarmo-nos de ditaduras invisíveis herdadas também dá trabalho!

Histérico com a sua queda no mundo real sem plumas nem subjectividade aparente, o ‘pássaro’ tenta reconstruir a sua identidade e carreira através de um gesto falso, um showbiz mas sem boás. Um espectáculo de arte tão falsa como a cabeleira que usa para disfarçar a sua alopécia, ou a sua paixão por uma das actrizes e da gravidez dela, tão falsa como o seu amuleto teatral placebo, como a concepção plástica e como a sua vontade ou capacidade para a dirigir. Mas a determinação cartesiana é gigantesca e ele não vê barreiras, fenómeno que o faz sentir-se capaz de levitar no seu abismo e de destruir tudo com um estalar de dedos nos momentos de maior frustração, que é como quem diz, quando o Riggan prático não bate certo com o Riggan teórico. Para levar a cabo estas façanhas recorre exclusivamente ao que o atormenta: ao poder da sua mente e imaginação mediúnica, uma vez que na realidade não tem mão em nada! Nem o charro da filha que o auto-destruirá consegue segurar…

A avalanche descontrolada deste herói de super-poderes privados leva-o a pagar a produção do espectáculo vendendo a casa da sua filha Sam que se encontra em reabilitação. Uma rapariga sociopata, o oposto do progenitor, que cresceu a duvidar dos gestos vazios de carinho e elogio do seu pai tendo por isso decidido consumir-se a si própria como forma de afirmação negativa. Se trabalha para o pai é para tornar a sua decisão mais visível. Bom, tudo isto que já conhecemos da vida dos Osbournes ou do Vítor Norte teria factor zero de surpresa não se tivesse dado o caso da entrada de Mike no elenco da peça.

Depois do actor original desconhecido ter sofrido um acidente misterioso, e porque obcecado com a ideia de relançar a sua carreira, Riggan pensa em várias celebridades. Estando todas ocupadas a rodar um filme foi com alegria que acolheu no teatro aquele actor tão conhecido, amante de uma das actrizes que o sugeriu, e que o levará à demência. Literalmente! É que ao invés de Riggan, Mike está entalado na fama frívola até aos joelhos e agarra aquele momento para um encontro corpo-a-corpo com o real. Sucede-se a queda da excitação de um impotente e o movimento contrário daquele que desejava a verdade intensa. Literalmente!

Se a admissão de Mike é, no primeiro ensaio, pautada por sugestões cénicas criativas, com rapidez se transforma na encenação total da vida do encenador. Com o actor nova iorquino real em cena, entram também sangue, álcool, nudez, erecções e sexo reais, bronzeados, pistolas, quebras de quarta parede e aumento de venda de bilhetes reais. [Agora lembrei-me do espectáculo “Título” do Teatro Praga que estava cheio de coisas reais/falsas…] Depois de muitas peripécias dignas de um Jerry Lewis bonito, que terminam num encontro entre Riggan e Birdman em profundo filme de acção à la Mary Poppins em esteróides, não só se destrói a cenografia como o actor decide desistir da vida. Intuímos isso numa cena deitado num camarim rodeado de flores. Todos acusam Riggan de qualquer coisa: que confunde amor com admiração, que o que faz não é pelo amor à arte mas para ser relevante, que só sabe falar dele, que não é actor mas celebridade, que é um ridículo vestido de licra, justamente o tipo de coisas que normalmente eu também oiço. Como eu o entendo…

“A thing is a thing, not what is said of that thing.”

Após um breve encontro com Tabitha que lhe diz ir arrasar a peça mesmo sem ter visto, deixa pela primeira vez de lutar com a voz interior de Birdman que o persegue dia após dia. Inflige um tiro na cabeça, essa ferramenta capital, na cena final do espectáculo onde melhor se coaduna. O público rendido bate palmas como quem bate as asas. Hot dogs, estátua da liberdade, bateristas, tchan tchan tchin, e eis-nos no Hospital. Sem capacidade para cheirar flores como as do camarim e cheio de fãs, eis como acorda no dia seguinte na maca acompanhado por quem os ama. Se sobrevive com a cara desfigurada é com uma nova que encontra reflectida no espelho que passa a viver. Até porque em boa verdade ele nunca teve uma face e, se quiser, pode sempre fazer uma nova. Com Birdman de pio calado, sentado na sanita, acabou-se o herói antigo. Há pássaros a voar em liberdade. E é para eles que Riggan se dirige através da janela do hospital, não para baixo. [FIM]

Jogando com as figuras de linguagem, esta é versão mais curta da narrativa que consegui (até porque elas são finitas mas parecem nunca mais acabar, infelizmente). Neste pot-pourri sublime acompanhado pela percussão contínua de António Sanchez, cujo rufar tanto se assemelha aos de suspense no circo como soa a encerramento de piada, tudo e todos se encontram em intervalo. Não é por acaso que a meio do filme Riggan se encontra de cuecas na Times Square entre uma banda de percussionistas. O próprio filme, porque utiliza estratégias sublimes, encontra-se num intervalo. É no intervalo que a intencionalidade, a autenticidade, a identificação, a essência, as gramáticas, as clivagens e dissensões nomencultóricas, conceitos e metodologias que já não deveriam sequer ser operativos, entram em pausa. O que a inesperada virtude da ignorância traz é a possibilidade de eclosão de um outro paradigma, de relativização de constrições e erradicação de correlacionismos tautológicos. Neste sentido, e emparelhando os dois conceitos nomeados no início deste texto, o filme instaura um ‘Super-Realismo-Especulativo’. Isto é, uma exacerbação ainda antropocêntrica do não saber o que está a ser feito. A ignorância não deve ser entendida como a frase de Hitler ‘agora os iletrados já não têm de ter vergonha’ mas como ‘agora já sabemos que por mais que estejamos a pensar que sabemos o que estamos a fazer, no fundo, não sabemos’. Se existir é um fenómeno que espelha uma experiência de acesso a um determinado contexto, isso não quer dizer que consigamos dominar os nossos arche-fosseis e o que está por vir. Só sabemos que algumas coisas sabemos, falta aceitar não saber tudo o resto que nunca saberemos e que é tão válido como o saber individual pseudo-consciente. Em suma: todas as experiências em que ‘os seres’ investem sentido, e a maneira como estão sujeitos à experiência é já controlada por uma ancestralidade, dá-lhes um determinado tipo de consciência. Mas que não fiquem retidos no que aparentemente dominam, nas imagens que têm das coisas, e que estejam sempre a usufruir das suas capacidades cognitivas críticas através de uma abertura a tudo o que emerge. A luz emitida pelo spotlight de Riggan ofuscou-o, assim como o cartesianismo privilegiou e determinou uma relação cognitiva, e como o critério académico ‘estética’ ou o gosto enquanto operação cultural também têm definido o que é arte ou não.

É compreensível que a Academia tenha ficado deslumbrada e nomeado este filme para tantas categorias. É que esta Academia não é a de Platão…

“- É real ou para um filme?
- Filme!
- You people are full of shit!”

Este texto não foi escrito ao abrigo do Acordo Ortográfico

Birdman

30 dias num dos 40 teatros da Broadway

Texto Raquel Albuquerque


Foi entre dois espetáculos no St. James Theatre, na Broadway, em Nova Iorque, que o filme de Alejandro González Iñarritu foi filmado. Entre abril e maio de 2013, bastaram 30 dias para as filmagens no famoso teatro, que é o principal local onde decorre a ação do “Birdman”.

O dono do St. James, e presidente dos Teatros Jujamcyn, Jordan Roth, disse ao Los Angeles Times ter alugado o teatro à equipa de produção do filme, com a “sorte” de ter arranjado um intervalo de um mês entre espetáculos. Foi esse o teatro escolhido pelo realizador e pela equipa de produção, um dos 40 teatros da Broadway. Chegaram a ver outros teatros, mas foi por este que optaram. O palco, a zona da entrada e o exterior surgem em vários momentos no filme. Porém, as cenas de bastidores foram filmadas em estúdio, em Queens, onde a equipa de produção construiu um complexo conjunto de corredores e de camarins. E foi com a ajuda de efeitos digitais que conseguiram criar a ilusão de uma ligação entre os bastidores e o teatro.

O St. James abriu pela primeira vez em 1927, chamado então Erlanger’s Theatre. O nome foi escolhido pelo dono, o produtor Abraham L. Erlanger, que morreu três anos depois. Foi então que o nome do teatro foi mudado para St. James, em 1930, já com outro proprietário. O teatro mudaria de mãos duas vezes depois disso, chegando aos atuais donos, proprietários dos Teatros Jujamcyn, que têm cinco dos 40 teatros na Broadway.

O conjunto de todos os teatros da Broadway teve 12,2 milhões de espectadores durante a temporada passada (2013-14), gerando 1,27 mil milhões de dólares (1,1 mil milhões de euros), segundo as estatísticas da Broadway League, a associação que coordena as atividades dos teatros. Do total de espectadores, 57% veem pelo menos dois espectáculos por temporada e há 5% que assistem a pelo menos 15. Segundo as estatísticas, a Broadway contribuiu com cerca de 12 mil milhões de dólares para a economia da cidade de Nova Iorque, tendo tido 1496 semanas com espetáculos – ou seja, somando as semanas em que cada peça esteve em palco em cada um dos 40 teatros, simultaneamente.

Grand Budapest Hotel, de Wes Anderson

Quando o sonho de vida é ser concierge

Assim como a personagem Zero, comecei a trabalhar no hotel como mandarete, também chamado de hall boy ou bell boy. Tinha 13 anos. Comecei a ver como é que os concierges trabalhavam. Aprendi vendo como é que eles atuavam, como é que agiam. O filme só dá um cheirinho sobre o que é a vida de um concierge. Muito mais haveria para dizer.

Texto Mário Pereira,chefe concierge do Hotel Estoril Palácio


Vi o filme duas vezes. Uma primeira vez sem legendas e outra com legendas, para conseguir captar tudo com mais detalhe. Deu-me a sensação que o filme tem um misto de narrativa teatral e de livro. A atuação, quer do chefe concierge, Mr. Gustave, quer do hall boy, Zero, é muitíssimo bem conseguida, pois é quase assim que se atua num hotel de luxo e charme. O guarda-roupa é formidável, as personagens estão muito bem vestidas e os funcionários bem “uniformizados”.

Aquele hotel tem duas fases. Uma primeira fase é de auge. Todos os candeeiros estão ligados, todas as lâmpadas estão acesas, nada está apagado. À entrada há um indivíduo a abrir a porta dos carros, o chamado voiturier. Há um movimento formidável e frenético, tanto nos corredores como no hall. É o momento auge do hotel. E depois há a outra fase. Por exemplo, quando o empregado de mesa serve o jantar aos dois homens, já é diferente e até o serve do lado errado, pois o vinho serve-se sempre pelo lado direito.

Assim como a personagem Zero, comecei a trabalhar no hotel como mandarete, também chamado de hall boy ou bell boy. Tinha 13 anos. A minha família era pobre e, um dia, houve um grande temporal aqui no Estoril e perdemos tudo. Já tínhamos pouco, ficámos sem nada. Houve uma senhora que nos veio ajudar e me perguntou: ‘Então tu não andas na escola?’ Disse-lhe que não. ‘Já acabei a 4ª classe, tenho 13 anos. Quero ir trabalhar.’ Ela perguntou-me se eu não a iria deixar ficar mal se me arranjasse trabalho. ‘Pode ter a certeza que nunca a deixarei ficar mal”, foi o que eu lhe respondi. Então uns dias depois deu-me um papel: “Vai ao Hotel Palácio Estoril e diz que vais da minha parte.”

Comecei a trabalhar e era eu que mais contribuía com dinheiro para casa, porque recebia aqui as gratificações. Tudo o que eu recebia ia direitinho para os meus pais. Nessa fase comecei a ver como é que os concierges trabalhavam. Aprendi vendo como é que atuavam, como é que agiam. A missão era ir comprar o jornal fora quando não havia aqui, comprar charutos e levar ao quarto dos clientes, ir acender um cigarro… Era um moço de recados, tanto do concierge como dos clientes. Foi aí que aprendemos tudo com os mais velhos, como vemos acontecer com o Zero e o Mr. Gustave.

Aos 17 anos fui trabalhar para o restaurante, depois fiz a tropa e estive três anos em Moçambique. Quando voltei disse ao diretor do hotel: ‘Não quero ser empregado de mesa, o meu sonho é ser concierge.’ Ele disse-me que não tinha vaga e então despedi-me. Seis meses depois telefonou-me. ‘Ainda quer o trabalho pelo qual se despediu? Venha fazer a farda e apareça quando quiser.’ Fiz os cursos de línguas e tenho diploma de inglês, francês e alemão. Eu queria estar à altura daquele lugar. Uns anos mais tarde fui promovido a chefe concierge e hoje tenho quase todas as qualificações que um profissional de hotelaria pode ter.

O meu trabalho consiste em fazer parte da vida destas pessoas. Ninguém num hotel está tão próximo do cliente como o concierge. É o verdadeiro relações públicas do hotel, além de ser também um confidente, e pode conseguir fidelizar o cliente. Somos nós quem recomenda o restaurante, a casa de fados, o alfaiate ou a boutique, além dos pontos mais interessantes a ver na região. Somos nós quem define que tipo de motorista recomendar.

Todos os anos agora tenho aqui estagiários. Ensino-os a atender o telefone e digo-lhes que escrevam num papel o que têm de dizer. “Boa tarde, Hotel Estoril Palácio, em que lhe posso ser útil?”. Também lhes ensino outras regras, como vemos a acontecer no filme entre o chefe concierge e o rapaz. A maneira de andar, por exemplo. Devemos andar de uma forma mais elegante, de queixo levantado, a olhar as pessoas nos olhos, com ar de simpatia e de boa disposição. Ao cruzarmo-nos com os clientes, deixamo-los sempre passar. É uma questão de dar um ar de cerimónia, de cortesia. Por exemplo, também nunca se cumprimenta um cliente primeiro, ele é que tem a iniciativa. Quando é uma senhora tem de ser um aperto de mão mais leve; um senhor já pode ser com mais força. Quando sei que o cliente vai para o elevador, vou lá e carrego no botão. Antes devíamos abrir-lhe a porta, agora já se abrem sozinhas. Também devemos tentar sempre fixar o nome do cliente e nunca se deve tratar pelo primeiro nome. Às vezes dizem-me que os posso tratar pelo primeiro nome ou que não preciso de dizer “Mr.” ou “Sir”. Respondo-lhes que não dá para ser de outra maneira: “This is my way, sir.”

Trabalho no Hotel Estoril Palácio há mais de 50 anos, tenho 69 agora. Já estou reformado, mas continuo aqui. E sei que esta profissão está em extinção. Daqui a uns anos não vai existir. Muitos hotéis de cinco estrelas, à entrada, têm escrito a palavra “Concierge” ao lado da palavra “Receção”. A palavra está lá, só que o concierge não existe. Ora como o recepcionista raramente tem disponibilidade para estar a conversar com o cliente, por ter que estar quase sempre ocupado com os assuntos da receção, não poderá nunca dar a mesma assistência que um concierge dá.

Este filme tirou um assunto da cartola que é muito comum na vida de um concierge. Aparece todo o tipo de pessoas e muitas delas carenciadas emocionalmente. Mas há um limite que se estabelece. Os leigos pensam que está tudo retratado ali, mas não está. O filme só dá um cheirinho. Muito mais haveria para dizer.

Grand Budapest Hotel

4Afinal o Grande Hotel
é uma miniatura

Texto Raquel Albuquerque


Está situado no cimo de uma escarpada montanha, desbravada por um pequeno funicular onde se leem as iniciais GB, de Grand Budapest. Alto, comprido e imponente.

Com cinco pisos, 23 janelas de uma ponta à outra nos andares mais altos e num tom cor-de-rosa claro e outro mais escuro, o hotel do filme de Wes Anderson, apesar da imponência, tem na verdade 4 metros de largura.

Wes Anderson e o diretor de arte, Adam Stockhausen, começaram por fazer pesquisas sobre a arquitetura dos hotéis e estâncias europeias dos anos 1920 e 1930, e inspiraram-se em diferentes espaços. O Grandhotel Gellért em Budapest (Hungria), o Palace Bristol Hotel e o Grandhotel Pupp, ambos na República Checa, serviram como modelos. “Havia alguns detalhes interessantes no interior do hotel de que gostámos, como os largos corredores com carpetes no centro com as janelas a refletirem a luz”, disse o diretor de arte à National Geographic, sobre o Grandhotel Pupp. E foi assim que desenharam e construíram o Grand Budapest Hotel que é, na verdade, um hotel-miniatura, com três metros de altura e dois de profundidade.

A uma escala diferente foi construída a montanha e o pequeno funicular, usado para aceder ao hotel. A paisagem que surge atrás, nos grandes planos – e no próprio cartaz do filme – foi pintada por Michael Lenz, inspirado no trabalho do artista Caspar David Friedrich, do século XIX. Para retratar a remodelação de que o hotel foi alvo já nos 1960 – e que representa a sua outra fase de vida – foi construída uma outra miniatura, mais escura, sóbria e em tons amarelo torrado e castanho.

“Sempre gostei de miniaturas em geral. Também gosto do charme delas”, disse Wes Anderson ao New York Times, num artigo sobre o filme. “A marca particular de artificialidade que gosto de usar é a antiga.”

Já o interior do Grand Budapest Hotel que se vê no filme é um antigo edifício encontrado vazio, na Alemanha, já perto da fronteira com a Polónia. Construído em 1912, albergou em tempos uns grandes armazéns, conhecidos por Görlitz Warenhaus. “Tínhamos o nosso espaço de produção no andar de cima e o interior tornou-se o lobby do hotel”, acrescentou Adam Stockhausen à National Gerographic.

Selma, de Ava DuVernay

Um mundo em que um ideal é cada vez mais raro

Martin Luther King é mostrado como alguém que tem uma missão e que está disposto a morrer por ela. Isso terá, sem dúvida, a sua virtude, mas remete para um grave problema contemporâneo: por um lado, a falta de motivação e ideais, por outro a sedução do idealismo criminoso e radical.

Texto Afonso Cruz,escritor


O filme foca-se em três marchas pacíficas a favor dos direitos de voto da população negra e contra a opressão segregacionista, lideradas por Martin Luther King, e que se realizaram entre Selma e Montgomery.

O valor histórico deste protesto tem, para além do tema óbvio, algo que lhe subjaz e que se reflecte em tantas outras atitudes sociais que são alimentadas pelo ódio e pelo medo da diferença. Subsiste à nossa volta uma triste sedimentação numa identidade que se teme perder pelo contacto com aquilo que nos é estranho, ignorando que todas as sociedades evoluem precisamente pela partilha que naturalmente deveria acontecer, para bem de todos. Houve, com certeza, quem rejeitasse a cultura romana, mas se essa rejeição se tivesse mantido através dos séculos, ainda não teríamos esgotos.

Há um outro aspecto em relação ao filme que me parece importante focar: a questão da noção de mártir e um consequente vínculo a uma espécie de santidade. De certo modo, Martin Luther King, interpretado por David Oyelowo, é mostrado como alguém que tem uma missão e que está disposto a morrer por ela. Isso terá, sem dúvida a sua virtude - ou não teria sido Luther King um grande líder -, mas remete para um grave problema contemporâneo: por um lado, a falta de motivação e ideais, por outro a sedução do idealismo criminoso e radical. Vivemos num mundo em que um ideal é cada vez mais raro e quando acontece é pelos piores motivos.

Quase no final do filme, aquele que era presidente dos Estados Unidos da América na altura destas marchas de protesto, Lyndon Baines Johnson, tem uma atitude que creio ter sido romanceada, mas que deveria pautar a conduta de muita gente com responsabilidades idênticas: Tom Wilkinson, no papel de Johnson, diz temer ficar para a história como um vergonhoso governante.

DuVernay poderia, caso tivesse sido nomeada, ser a primeira afro-americana a ganhar um Óscar pela realização. O facto de isto ainda não ter acontecido, diz muita coisa sobre como funciona a sociedade de países que acreditam ser civilizados.

Este texto não foi escrito ao abrigo do Acordo Ortográfico

Selma

50O que separa Selma
de Montgomery

Texto Raquel Albuquerque


As marchas de Selma até Montgomery marcaram a luta pelos direitos civis da população negra nos Estados Unidos em 1965. Precisamente 50 anos depois das marchas, que juntaram milhares de pessoas nas ruas em diferentes dias do mês de março, o filme dirigido por Ava DuVernay recria esses momentos e o papel que Martin Luther King teve.

São cerca de 87 quilómetros que separam Selma de Montgomery. No dia 21 de março de 1965, cerca de duas mil pessoas percorreram esse trajeto, protegidas por militares. Andaram 12 horas por dia e dormiram pelo caminho, até chegarem a Montgomery no dia 25 de março. E milhares de outras pessoas juntaram-se à marcha, apoiando a luta dos negros, e engrossando o número de manifestantes, que chegariam a 25 mil.

Selma, no estado do Alabama, foi escolhida por Martin Luther King como centro da campanha pelo direito ao voto. Ali, só 2% dos negros que podiam votar tinham conseguido registar-se.

Numa crítica ao filme, publicada no jornal britânico Guardian, há uma pergunta central sobre os 50 anos que passaram entre os dias das marchas e a estreia de um filme sobre o assunto. “Como é que é levou tanto tempo para que um grande filme de Hollywood fosse feito sobre Martin Luther King, o único grande candidato americano à santidade secular?”. Passaram cinco décadas e, sobre isso, a realizadora, numa entrevista à revista Deadline, disse: “Se alguém tivesse querido realmente fazê-lo, teria sido feito. Mas seja por que razão for, está a acontecer agora e fico contente que assim seja”.

Boyhood, de Richard Linklater

Dá gosto ver cinema assim

Todas as pessoas fazem durante a sua vida algo de extraordinário que merece ser filmado. Este filme é sobre a extraordinária capacidade e responsabilidade que algumas pessoas assumem, errando, falhando, tentando de novo para falhar melhor.

Texto Raquel Freire,realizadora


Boyhood encantou-me porque filma os anti-heróis/heroínas, que são para mim os/as verdadeiros/as heróis e heroínas. Filma as pessoas como elas são, as pessoas como nós. Não os grandes homens de sucesso ou os super heróis de banda-desenhada tanto na moda, mas os heróis e as heroínas do quotidiano, todas as pessoas que aceitam o desafio de cuidar e amar uma criança, com todas as dificuldades acrescidas que isso representa nos tempos difíceis que vivemos.

É um filme sobre a parentalidade, sobre a epopeia que é criar uma filha e um filho. E de crescer como pessoa adulta ao lado e em paralelo.

O que me toca é o olhar profundo e subtil sobre como é que nós adultos somos capazes ou não, de sermos mães e pais. Como é que aprendemos com as nossas crianças a sê-lo, como temos que improvisar no quotidiano esse papel. Aí reside a originalidade do filme. A criança que é filmada e cujo crescimento acompanhamos, a irmã, é a filha do realizador, o que deve ter contribuído para esta busca e esta reflexão que senti durante o filme.

O actor e a actriz ao confrontarem-se com duas crianças que crescem e se tornam adolescentes, ao serem obrigados a improvisar com esses crescimentos, a fazerem de mãe e pai questionam-nos a nós duma forma séria e original sobre o que é isso da maternidade e da parentalidade. Que amor é esse. Insuportável às vezes. Que dor é essa. Que angústia. Que alegria. Esses são momentos de beleza pura.

Todas as pessoas fazem durante a sua vida algo de extraordinário que merece ser filmado. Este filme é sobre a extraordinária capacidade e responsabilidade que algumas pessoas assumem, errando, falhando, tentando de novo para falhar melhor.

Como realizadora admiro o acto heróico deste cineasta que num cinema tão estandardizado como o de hoje, conseguiu concretizar um projecto tão original, tão fora dos cânones comerciais. Heróico é Richard Linklater ter filmado durante 12 anos, correndo todos os riscos, sem pressas, com a sensibilidade e a maturidade necessárias para uma maratona deste calibre, assumindo o desafio da docuficção de filmar duas crianças. E teve o talento de realizar um filme delicado, corajoso, sem facilidades, sem truques baratos, sem cedências, radicalmente honesto. Dá gosto ver cinema assim.

Este texto não foi escrito ao abrigo do Acordo Ortográfico

Boyhood

68,6O mundo visto
mais acima

Texto Raquel Albuquerque


Mais de meio metro foi o que o ator Ellar Coltrane cresceu durante os 12 anos em que decorreram as filmagens do Boyhood, o filme que acompanhou o crescimento de uns e o envelhecimento de outros ao longo desse tempo. Com precisão, foram 68,6 centímetros o que o ator principal cresceu entre o momento em que se iniciaram as filmagens – tinha ele sete anos – e o momento em que terminaram, já tinha 19.

Segundo os números da IFC Films citados pela Mashable, 63% da vida de Ellar foi passada como ator do filme. O mesmo aconteceu com Lorelei Linklater, atriz que faz o papel da sua irmã mais velha (e que é filha do realizador). Também ela cresceu 36 centímetros desde o início ao fim do filme – dos oito aos 20 anos de idade. Já os atores que ocupam os papéis dos pais (Patricia Arquette e Ethan Hawke) começaram com 34 e 31 anos, respetivamente, e chegaram ao fim das filmagens com 46 e 42 anos. No caso deles, esses 12 anos concentraram cerca de um quarto das suas vidas.

Ao longo desses 12 anos, também se sabe que o rapaz que se vê crescer cortou o cabelo 72 vezes. São quatro mil dias, durante os quais nasceram 16 crianças, filhos de membros do elenco e da equipa de produção. Na verdade esses quatro mil dias foram reduzidos a 45 verdadeiros dias de filmagem, intercalados pelos vários anos, pois para apanhar as diferenças físicas dos atores era necessário fazê-lo em anos e tempos diferentes. Assim, entre maio de 2002 e agosto de 2013, se se juntarem todos os dias de filmagem, as filmagens duraram um mês e meio.

O próprio realizador, Richard Linklater, começou o filme com 41 anos e acabou-o com 53. “Em algum momento, já não estás mais a crescer, estás a envelhecer. Mas ninguém consegue precisar esse momento com exactidão”, disse.

A Teoria de Tudo, de James Marsh

A luta que é fazer ciência

O filme tem muito pouca ciência e praticamente não se debruça sobre a luta que é fazer ciência, as noites preenchidas com equações erradas, o ranger de dentes porque nada encaixa, o ler e ler e ler até finalmente se começar a sonhar com o assunto, e começar a pegar no fio à meada. Porém, no ano em que a Relatividade Geral de Einstein comemora o seu centenário, o filme é uma grande homenagem a alguns dos maiores feitos do pensamento humano.

Texto Vitor Cardoso,físico, professor no Departamento de Física do Instituto Superior Técnico e Visiting Fellow no Perimeter Institute


A Teoria de Tudo é o Santo Graal na Física, uma hipotética descrição unificada de todos os fenómenos naturais num só. Tal como a cara e a coroa são duas faces de uma mesma moeda, pensa-se que todas as interacções (electricidade, magnetismo, forças nucleares e a gravidade) são várias manifestações de algo único. Esta seria a teoria que descreve tudo (algo que alguns entre nós não querem, por significar o fim da procura). A Teoria de Tudo é também o nome do recente filme sobre a vida de Stephen Hawking, um dos mais famosos cientistas contemporâneos, que na procura de uma descrição unificada entre Mecânica Quântica e Gravitação descobriu – entre muitas outras coisas – que os buracos negros evaporam. Mas este filme é sobretudo acerca do Tempo, do tempo enquanto dimensão humana e enquanto braço armado duma doença terrível (esclerose lateral amiotrófica).

É interessante traçar um paralelo com o último filme de Christopher Nolan, Interstellar. Neste, apesar da aparência de ficção científica, os argumentistas - os irmãos Nolan - trabalharam lado a lado com Kip Thorne (que faz uma breve aparência na Teoria de Tudo, como examinador da tese de doutoramento de Hawking), professor de Física Teórica em Caltech e um dos pais da Relatividade Geral moderna, a teoria que explica o que buracos negros e de minhoca são e como se podem formar no universo. O resultado foi um filme cheio de ciência rigorosa (com um livro e dois artigos científicos debruçados sobre a ciência no filme!) que vai encher salas de aulas durante alguns anos, mas um argumento pobre e pouco convidativo.

A Teoria de Tudo de James Marsh tem muito pouca ciência. O filme praticamente não se debruça sobre a luta que é fazer ciência, as noites preenchidas com equações erradas, o ranger de dentes porque nada encaixa, o ler e ler e ler até finalmente se começar a sonhar com o assunto, e começar a pegar no fio à meada. Neste aspecto, o filme cai em alguns lugares-comuns, como o do génio que resolve equações no bilhete de comboio ou que olha para uma lareira e percebe que os buracos negros têm que evaporar quando a Mecânica quântica é incluída. Não saímos do filme a saber como se faz ciência. Neste aspecto, o momento mais interessante (do ponto de vista científico) do filme refere-se àquele em que ele anuncia ao orientador de doutoramento (Denis Schiama, interpretado pelo actor David Thewlis) que sabe como o tempo começou. Como em ciência, palavras não bastam, o orientador de Hawking (Eddie Redmayne) diz-lhe para “desenvolver a Matemática do processo”. Um outro pecado deste filme é nunca nos mostrar de que forma é que a doença foi afectando a forma do Hawking fazer ciência, como é que ele comunicava com alunos e colegas, etc., mas talvez isto seja só curiosidade profissional.

Sendo Stephen Hawking uma personagem incontornável da Física do século XX, esta biografia pessoal é importante. O filme, no fundo, uma história de amor, foca-se principalmente na luta com a doença degenerativa e o impacto na sua vida pessoal, em particular com a sua primeira esposa, Jane Wilde Hawking (Felicity Jones). O argumento não se furta a descrever os momentos desconfortantes de uma doença terrível e do dilema que acarreta para quem quer constituir uma família nestas circunstâncias, bem como aquilo que se tem de abdicar para tal. Paradoxalmente, Hawking, o homem, é uma figura algo “transparente” em toda a película: além do seu bom humor, pouco mais ficamos a saber sobre os seus gostos, as suas idiossincrasias, e sobre a sua dimensão intelectual. Seja como for, o filme vale pela dimensão pessoal, especialmente pela impressão que levamos para casa de que o tempo é o que fazemos com ele.

Num ano em que a Relatividade Geral de Einstein comemora o seu centenário ainda com tantos segredos por desvendar, A Teoria de Tudo é, juntamente com Interstellar, uma grande homenagem do cinema a alguns dos maiores feitos do pensamento humano.

Este texto não foi escrito ao abrigo do Acordo Ortográfico

A Teoria de Tudo

237semanas
no topo

Texto Raquel Albuquerque


Em 1988, Stephen Hawking tinha 46 anos. Foi nesse ano que publicou o livro “A Brief History of Time”, um bestseller a nível internacional. O livro explicava vários conceitos da cosmologia, tentando tornar acessível ao leitor o que é o “big bang” ou o que são os buracos negros. A obra de Stephen Hawking vendeu cerca de 10 milhões de exemplares ao longo de 20 anos.

Refletindo o sucesso de vendas, o livro esteve nas listas dos mais vendidos, do Sunday Times, durante 237 semanas. Ou seja, mais de 54 meses, mais de quatro anos. Foi traduzido para cerca de 40 línguas diferentes.

Na primeira edição, de 1988, editada pela Bantam Dell Publishing, o livro contava com um prefácio de Carl Sagan, cientista norte-americano. “Hawking está a tentar, como ele afirma explicitamente, perceber a mente de Deus”, escreveu.

Nas seguintes edições, foi Stephen Hawking quem escreveu o prefácio. “Acho que ninguém, os meus editores, o meu agente, ou eu próprio, esperavam que o livro desse tão bem como deu”, escreveu o autor do livro. “Vendeu cerca de uma cópia por cada 750 homens, mulheres e crianças no mundo. Como Nathan Myhrvold da Microsoft (um ex-estudante meu de pós-doutoramento) afirmou: eu vendi mais livros sobre física do que a Madonna vendeu sobre sexo.”

Tentando explicar o sucesso do seu livro, Hawking conclui que os números mostram que “há um interesse alargado em grandes questões como: De onde viemos? E por que é que o universo é assim?”. No livro, o autor escreveu sobre se existem ou não fronteiras no universo, assim como outras dimensões no espaço, ou o que é que acontecerá quando tudo acabar. Hawking atualizou algumas das suas teorias nas edições posteriores à de 1988, incluindo novos resultados, e lembrando que a primeira edição foi publicada no Dia das Mentiras, em 1988.

Sniper Americano, de Clint Eastwood

A exaltação do herói americano

As cenas de combate, os aspectos da vida como combatente, o guarda-roupa, os locais de filmagens e os equipamentos utilizados são de aplaudir. Mas há equívocos na narrativa histórica e um erro grosseiro.

Texto Carlos Branco,Major General, ex-porta-voz da ISAF no Afeganistão


Baseado nas aventuras e desventuras de Chris Kyle, perpetuadas para a posteridade em livro, Clint Eastwood realizou um filme – American Sniper – cujo móbil é exaltação do herói americano na defesa da sua pátria. Kyle foi um membro da força de elite da marinha americana que cumpriu quatro comissões de combate no Iraque como atirador especial, e que tinha no seu reportório 160 mortes confirmadas, o que o tornou no atirador mais letal das história militar americana. Mereceu, por isso, o epiteto de “lenda”. Assim lhe chamavam os seus pares.

A história que Eastwood nos conta tem alguns laivos de western. Apesar dos cavalos serem substituídos por viaturas MRAP (Mine-Resistant Ambush Protected), os autóctones, neste caso os iraquianos, são igualmente apelidados de selvagens, como eram os índios, e como estes também necessitavam de ser civilizados. No caso em questão, serem salvos da ditadura de Saddam Hussein para de seguida poderem abraçar a democracia.

Eastwood recria as cenas de combate com um rigor extremo; em particular aquelas que envolvem soldados de infantaria nos combates em áreas edificadas, as quais são de um realismo impressionante. Outros aspetos cruciais da vida do combatente que desafia diariamente a morte, como seja o espírito de corpo, são mostrados de uma forma superior. É perfeita a escolha do guarda-roupa, dos locais de filmagens e dos equipamentos utilizados. Tudo isto torna o filme real. Contudo, a sua componente “artística” não consegue ofuscar a mensagem política subjacente. Uma visão crítica do filme não pode evitar este facto. O realismo das imagens não pode sobrepor-se aos equívocos da narrativa histórica seguida por Eastwood.

Kyle é apresentado como o exemplo último do patriota americano que coloca a defesa do país acima de tudo, acima de si próprio e da sua própria família. O homem determinado a lutar para proteger a liberdade e o modo de vida dos seus concidadãos, e que, para tal, está disposto a uma luta sem quartel contra todos aqueles que o queiram pôr em causa. E, para isso, sacrifica-se em quatro missões no Iraque, na linha da frente, a combater os selvagens e os despicable evils, como classifica os iraquianos.

A tentativa de justificar a invasão americana no Iraque em Março de 2003 como uma guerra justa, como uma resposta aos ataques contra a América, em 11 de Setembro, como é sugerido no filme, é um erro grosseiro. Se isso foi feito deliberadamente, então estamos perante um exercício de propaganda. O realizador é livre de ficcionar e mesmo afastar-se da fonte inspiradora, mas descredibiliza-se quando cria situações historicamente inverosímeis. É o que acontece quando cria a figura de um atirador sírio medalhado nos jogos olímpicos que ora combate pelas milícias sunitas, ora pelas milícias xiitas de Muqtada al-Sadr, este último responsável por organizar os esquadrões da morte que assassinaram desalmadamente os seus arqui-inimigos sunitas.

Quem leu o livro percebe facilmente ser falsa a imagem que Eastwood nos transmite de Kyle, nomeadamente quando o apresenta como alguém atormentado pelas mortes que causa. Para além de racista, Kyle é impiedoso com as suas vítimas e não é dos que se deixa torturar com os dilemas morais que muitas vezes se colocam aos combatentes quando confrontados com as decisões de matar ou não matar. Esse tormento pura e simplesmente não vive com ele. Kyle só lamenta não ter matado mais.

Se a ideia era exaltar o espírito do herói americano, o que parece inquestionável no filme, então Eastwood fez uma má escolha. Devia ter escolhido outro personagem mais emblemático, porque o comportamento social de Chris Kyle parece não ter sido exatamente o de um herói. Deixa muito a desejar. Para além das questões que afetaram a sua vida privada, decorrentes do tempo passado no Iraque, o seu comportamento como cidadão responsável, parece não ser muito compaginável com o de herói.

Entre outras acusações que pendem contra ele, Kyle foi condenado pelo tribunal a pagar a Jesse Ventura, antigo governador do Minnesota, cerca de 1,8 milhões de dólares por difamação, em virtude das referências menos elogiosas e menos verdadeiras que lhe fez nas primeiras edições do livro. E, segundo parece, ao contrário do que é afirmado pela sua família, a alardeada ideia altruísta de doar as receitas da venda do livro a um fundo de caridade para veteranos, traduziu-se na doação de apenas 2% das mesmas. Afinal o herói não era assim tão imaculado como o filme nos quer fazer crer.

Este texto não foi escrito ao abrigo do Acordo Ortográfico

Sniper Americano

128.496E a vida depois da guerra?

Texto Raquel Albuquerque


Ao longo da última década, marcada pela presença militar dos Estados Unidos no Iraque, Afeganistão ou Síria, o número de militares com stress pós-traumático quando regressam a casa tem aumentado. Basta uma imagem, um cheiro ou um som para que revivam novamente os momentos passados. Entre 2002 e setembro de 2014, foram diagnosticados 128.496 casos.

Os números são do Congressional Research Service, um think tank do Congresso dos Estados Unidos, que publicou em novembro de 2014 um relatório estatístico sobre mortes de militares dos Estados Unidos em diferentes operações.

Joshua Brandon é um deles. “Uma vez estava a conduzir no Tennessee [nos Estados Unidos] e havia uma queimada atrás de uma casa. Comecei a sentir o cheiro a plástico, o cheiro a lixo queimado, e estava calor lá fora”, conta, numa história em vídeo partilhada no site About Face, criado pelo Departamento de Assuntos de Veteranos sobre a PTSD, na sigla em inglês, para Post-Traumatic Stress Disorder. “O saneamento no Iraque não é o melhor. Toda a gente queima lixo, queima plástico. Enquanto conduzia, aquele cheiro transportou-me para as ruas de Bagdade. Por uns dois minutos eu estava de novo a conduzir no Iraque, à procura de ameaças em todas as direções. A minha adrenalina disparou”, descreve. “Quando se está habituado a isso e o consegues controlar, é uma coisa”, diz, explicando que a situação é muito diferente “quando estás a ir ao supermercado comprar bifes para o jantar, com um pico de adrenalina e a olhar em todas as direções à espera de ser atingido”.

Outras estatísticas do mesmo departamento norte-americano estimam que cerca de 20% dos militares que estiveram no Iraque e 11% dos que foram mobilizados para o Afeganistão tenham sido afetados por stress pós-traumático. O mesmo aconteceu a 31% dos que estiveram no Vietname e a 10% dos que estiveram na guerra do Golfo.

Whiplash, de Damien Chazelle

Um filme de perguntas, mais do que respostas

No que à música diz respeito, o espectador percebe que o rigor da partitura e a disciplina do estudo são essenciais. Isso, efectivamente, o filme anuncia-o e eu confirmo-o. Fletcher é para mim um terrorista. O terrorismo é um acto universal, verga o outro pelo medo. E este filme é acerca do medo.

Texto Rui Massena,maestro


Whiplash é uma peça musical de Hank Levy, um compositor de jazz norte-americano, que empresta o nome ao filme, com tradução portuguesa de “Nos limites”, título que se aceita bem.

Este é um filme de perguntas, mais do que respostas ou conclusões. Dei por mim a ser continuamente posto à prova, quase tanto como Andrew Neiman, estudante de bateria jazz do melhor Conservatório de Jazz dos Estados Unidos.

O filme demoniza todos os clichés da educação - não só da artística - para a criação de prodígios ou génios à custa de uma intensidade psicológica insuportável e altamente castradora, com marcas muito fortes em algumas sociedades. Por cada génio que aparece, milhares de cabeças foram destruídas. Claro que, ao discutirmos a Educação, podemos rapidamente chegar à conclusão que a falta de exigência cria exatamente o contrário. Mas isso são outros quinhentos.

Terence Fletcher é um animal. Maestro de profissão e professor do famigerado Conservatório de Shaffer, insulta e humilha os seus alunos à procura do próximo génio da música, escudado na exigência e mascarando a patologia que o define. Manipula tão bem os espectadores como os alunos, em troca do El Dorado chamado eternidade ou posteridade que, no caso, se poderia traduzir por atingir o sonho de todos os estudantes daquele conservatório ao ir tocar para a melhor orquestra do país: a orquestra do Lincoln Center em Nova Iorque.

Quantos de nós não procuram a existência numa qualquer fórmula de sucesso, o atingir das nossas metas e sonhos guiados por uma sociedade com voz altamente competitiva? Francamente não sei se somos muitos. Ou seremos?

No que à música diz respeito, o espectador percebe que o rigor da partitura e a disciplina do estudo são essenciais. Isso, efectivamente, o filme anuncia-o e eu confirmo-o. O facto de Andrew chegar à sala três horas antes de toda a Orquestra é uma metáfora para a preparação e rigor de que um músico precisa para chegar a ser um músico competente. Aí, Fletcher tem razão. Não se pode facilitar na preparação, no pain no gain. Numa conversa de corredor, já próxima da oportunidade de entrar para a orquestra do Conservatório - o primeiro dos patamares para o sucesso e mal traduzida por banda nas legendas (admito que baseada na ideia de Big Band ou orquestra de Jazz) - aparece o outro lado do Professor, um D. Juan de psicologia barata.

É verdade que não chega todo o esforço se não souberes ter prazer no que fazes. E o prazer, na minha opinião, também se trabalha, tendo que fazer parte da viagem. É necessário que todo o processo seja feito numa atitude de respeito mas de uma forma descontraída, amiga e olhando a personalidade de cada aluno. Ao prazer vou chamar-lhe Gosto. É do gostar que aparece a descontração, a liberdade para existir e a capacidade de balancear a técnica e a emoção. O Professor Fletcher, pouco digno da pedagogia que tal profissão comporta obrigatoriamente, pede-lhe prazer e diversão quando não o sabe mostrar, criando na escola um ambiente de uma terrível competitividade. Mas Andrew ainda lá chega, tentando. Na primeira música, acontece o que tantas vezes sucede na nossa sociedade: alguém, com esperteza saloia e amargura concentrada, qual lobo disfarçado de cordeiro, começa a correr para destruir a felicidade que vê estampada no rosto de alguém. E é exactamente essa felicidade que o torna genial e autêntico. Sem ela, nenhuma pessoa existe.

Fletcher é para mim um terrorista. O terrorismo é um acto universal, verga o outro pelo medo. E este filme é acerca do medo. Vencer o medo é a chave para nos mantermos saudáveis e aptos para a existência.

O patinho feio Andrew, faz um caminho de tortura psicológica, a pior que existe provavelmente, para chegar ao seu sonho de ser um grande baterista. Confrontou-se com um megalómano, Fletcher, que lhe vendeu a ideia de que o paraíso só tem uma morada e onde não há espaço para dois homens. O confronto com a superação diária, sangrando das mãos para melhor tocar e, o mais grave, para vencer os olhos secos daquele homem. Seria já o seu sonho ou o daquele homem que Andrew estaria a vencer? E o meu sonho qual é? Ser o melhor? Desistir de que parte de minha vida para o atingir? Perguntas e mais perguntas. O que estaria eu disposto a fazer? O que faço eu?

Os atores estão muito bem nos papéis. Eu, que sou músico, reconheço verdade nos gestos e na atitude, mesmo que ficcionada. Por regra, sempre que aparece um filme com músicos, as interpretações são péssimas. Neste, as cenas finais são dignas de se voltar a ver e o ritmo de filmagem é estupendo e até comovedor, diria emocionante.

Não conto o final por cortesia e porque não gosto de tirar o prazer aos outros. Gosto de os ajudar a ter prazer. Faço-o com a música e com a comunicação, a profissional ou a do dia-a-dia. Ao terrorismo só se pode responder com coragem e, como temos tantas formas de terrorismo que não passa necessariamente só pelas armas, é realmente preciso coragem. Portanto sem medo, marchar, marchar. Talvez assim apareça um novo Charlie Parker.

Este texto não foi escrito ao abrigo do Acordo Ortográfico

Whiplash

18Os minutos que
desbloquearam o impasse

Texto Raquel Albuquerque


Dois anos antes de ser nomeado para os Óscares como um dos melhores filmes, o Whiplash estava na lista negra de Hollywood – era um dos guiões mais apreciados pelas empresas e estúdios cinematográficos, mas sem passar do papel, à espera que alguém pegasse nele. Até que duas produtoras deram um passo em frente e convidaram o autor, Damien Chazelle, a fazer uma versão curta reduzindo o guião a cerca de um sexto do seu tamanho.

Partindo de 15 páginas do argumento inicial, Damien Chazelle fez uma curta-metragem em três dias. E seriam esses 18 minutos que desbloqueariam o futuro da sua história. Enviou essa versão curta para o Festival de Cinema Sundance em 2013, entre mais de oito mil outros filmes, e recebeu boas críticas. Acabou por ganhar um prémio como melhor filme de ficção dos Estados Unidos. Os 18 minutos garantiram um financiamento de 3,3 milhões de dólares (2,9 milhões de euros) para que então se apostasse na versão completa, longa, dando vida às 85 páginas do guião inicial.

“Com o afluxo de material, não acho que as pessoas realmente leiam mais, por isso um pequeno pedaço de filmagem pode ir mais longe do que um guião de 120 páginas”, disse Chazelle, num artigo da revista norte-americana Variety.

"Enviei o guião para vários sítios e toda a gente passou ao lado”, contou. “Acho que o desafio estava na forma como eu o estava a apresentar às pessoas. Sim, era um filme sobre músicos de jazz, mas eu queria fazê-lo como um thriller ou um filme de ação. Era um diretor novato e por isso as pessoas essencialmente estavam a querer dizer, ‘Mostra-me primeiro”.

O Jogo da Imitação, de Morten Tyldum

A vida e a ciência de Turing

Que nos conta o filme acerca da atividade de Alan Turing e de toda equipa de criptoanalistas em Bletchley Park? Não mais do que a construção de um ataque bem sucedido ao sistema criptográfico dos alemães. O trabalho científico de Turing é, porém, muito mais vasto do que nos é deixado perceber no filme.

Texto José Félix Costa,professor no Departamento de Matemática do Instituto Superior Técnico


1. A ciência vai ao cinema

Com o crescente interesse pela popularização da ciência, quer através do livro de divulgação (em que se destacam e.g. John Gribbin e Michio Kaku) quer do romance (e.g., entre nós, José Rodrigues dos Santos), surgem as longas-metragens, na televisão e no cinema, centradas em temas de natureza científica, tais como o relevante ‘Einstein e Eddington’ (de Philip Martin, emitido pela primeira vez pela BBC 2 em 2008, com cenas na ilha do Príncipe), ou baseadas em histórias e dramas de vida de cientistas notáveis, tais como ‘Uma Mente Brilhante’ (de Ron Howard, 2001), que explora o estado esquizofrénico do matemático John Forbes Nash, ou ‘A Teoria de Tudo’ (de James Marsh, 2014), drama biográfico da vida do matemático e cosmólogo Stephen Hawking, que mostra o desenvolvimento da doença neuromotora que atingiu o então jovem cientista.

A intervenção direta do cientista no cinema aparece mesmo sob novo formato, com o físico relativista Kip Thorne a realizar simulações computacionais das diversas situações dramáticas da viagem para além do horizonte de um buraco negro, no filme Interstellar (de Christopher Nolan, 2014).

O Jogo da Imitação (de Morten Tyldum, 2014) explora mais um drama na vida de um cientista, Alan Mathison Turing (1912-1954), não tanto o drama intenso da sua sexualidade proibida, nem a trama da diversidade das suas descobertas científicas em várias áreas científicas transversais, mas mais o sucesso da sua intervenção na Segunda Guerra Mundial, quando integrou, e veio depois a chefiar (no filme), um grupo de criptoanalistas em Bletchley Park (propriedade em Milton Keynes) com o objetivo de decifrar o sistema criptográfico usado pela Alemanha Nazi para transmitir mensagens diárias para as frentes de combate. O filme revela os estágios da construção da (assim chamada) Bomba Eletromecânica de Turing, um computador cujo propósito único consistia em descobrir a chave de decifração das mensagens encriptadas pelos alemães com ajuda de uma máquina chamada Enigma, patenteada em 1918 pelo engenheiro eletrotécnico alemão Arthur Scherbius.

O filme chegou-nos a propósito do centenário do nascimento de Turing (2012) e vem revelar ao grande público o importante papel do cientista no esforço criptoanalítico britânico que terá conduzido os Aliados à vitória. Detalhes desta história ainda não são completamente conhecidos, mais de setenta anos decorridos, devido à disciplina de silêncio imposta aos ‘recrutas criptoanalistas’ enquanto agentes dos serviços secretos MI5 (British Intelligence Agency).

Uma importante contribuição de o ‘Jogo da Imitação’ é a de dar a conhecer aos nossos estudantes, e ao público em geral, que nem só a Física conta com nomes sonantes como Newton, Einstein, Bohr e Schröndinger, mas a tão jovem Ciência da Computação, tal como a conhecemos hoje, e que surge precisamente pouco antes da Segunda Guerra Mundial, conta também com um nome tão importante como o de Alan Turing: cientista eminente e herói de guerra.

A divulgação da Física, da Química e da Biologia/Teoria da Evolução, e mesmo da Matemática, atingiu o seu auge na última década em Portugal. Tornou-se muito mais fácil abordar temas da ciência hodierna nas escolas e nos cafés. Porém a Ciência da Computação, uma ciência nova, que se exprime através de uma nova linguagem (um novo ‘dialeto’ da Matemática), é mais difícil de abordar, embora livros como o de Martin Davis (O Computador Universal) e o de Christos Papadimitriou (Turing, Um romance sobre Computação) tenham já dado entrada nas nossas bibliotecas. Muitos sabem o que são as leis de Newton, mas poucos sabem o que é uma máquina de Turing!

2. Deixa a morte adormecida infiltrar-se

A ação decorre em três tempos que se entrelaçam na película, entre o tempo de um Turing adolescente - um tempo explicativo e psicanalítico -, o tempo de um Turing humilhado publicamente e condenado - numa sequência de prótases aos episódios de Bletchley Park -, e o tempo da ação principal, em que Turing se voluntaria como criptoanalista em Bletchley Park, interessado em contribuir para a derrota dos Nazis. Em 1938, Alan Turing foi ver Branca de Neve e os Sete Anões. Conta o seu biógrafo, Andrew Hodges (físico, colaborador do famoso Roger Penrose, o tal físico-matemático relativista que, conjuntamente com Kip Thorne e Dennis Sciama, constituíram o júri de doutoramento de Stephen Hawking, quer na realidade quer na ficção em ‘A Teoria de Tudo’), que Turing ficou impressionado com a cena em que a Bruxa má pendurou uma maçã e mergulhou-a num líquido venenoso, murmurando:

Mergulha a maçã no veneno
Deixa a morte adormecida infiltrar-se.

Em janeiro de 1952, Alan Turing, então com 39 anos de idade, é acusado de escândalo sexual, por práticas homossexuais numa relação então iniciada com um jovem de 19 anos, Arnold Murray, e foi condenado por indecência nos termos da Lei de 1885. Entre uma pena de prisão e a castração química (por tratamento à base de estrogénio), escolheu a medicação conducente à redução da libido. Em 8 de junho de 1954, Turing foi encontrado morto na sua residência em Wilmslow, Cheshire. O exame post-mortem estabeleceu que a causa da morte foi envenenamento por cianeto, supostamente ingerido através de uma maçã envenenada encontrada junto ao corpo. Os biógrafos Andrew Hodges e David Leavitt deixam crer que Turing encenava a cena de Disney no momento da sua morte.

Durante o interrogatório que se prolonga discretamente do princípio ao fim da película, conduzido por um inspetor da polícia que se vai deixando seduzir pela personagem do cientista, Turing relembra os factos heróicos de Bletchley Park. Turing teria estado por detrás de qualquer evento importante do tempo da Guerra... Mas o infatigável e curioso inspetor, que suspeita de espionagem, encontrara o envelope classificado ‘Turing’ vazio...

3. O caminho para um computador universal

Até meados do século XX, os computadores eram de propósito específico: esta máquina de Jacquard ordena cartões de acordo com padrões neles perfurados, aquela máquina de Leibniz soma e multiplica, aqueloutra determina os parâmetros para o disparo de projéteis de artilharia, etc. O computador digital, tal como o conhecemos, é de propósito geral: a atividade que pretendemos ver realizada pela máquina é programada, codificada e comunicada à máquina! Pode mesmo dizer-se que o computador dispõe de um programa que pode simular todos os programas.

Porém, não é esta a máquina (de Turing) que vemos Turing construir em ‘O Jogo da Imitação’, mas sim um computador de propósito específico, a Bomba, capaz de decifrar o código dos Nazis. O desenho inicial da Bomba de Turing foi feito em 1939, em Bletchley Park, tendo sido aperfeiçoado em 1940 por Gordon Welchman. Outras Bombas para a máquina de encriptação Enigma tinham sido anteriormente fabricadas pelos polacos, os quais detinham o conhecimento mais aprofundado da Europa quanto ao seu funcionamento quando a Segunda Guerra Mundial deflagrou. A Enigma tornava-se, no entanto, mais sofisticada, com chave de encriptação mais complexa.

Que nos conta ‘O Jogo da Imitação’ acerca da atividade de Turing e de toda equipa de criptoanalistas em Bletchley Park? Não mais do que a construção de um ataque bem sucedido ao sistema criptográfico dos alemães.

A Criptografia é uma ciência muito antiga que, na forma que a conhecemos hoje, tem registos históricos que datam ao tempo de Suetónio, biógrafo dos Césares. A propósito de Júlio César, escreve: «Quando lhes queria comunicar algo de sigiloso, usava uma cifra, isto é, baralhava as letras de maneira a que não se conseguisse reconstituir nenhuma palavra: se pretendermos descobrir o seu sentido e decifrá-las, é preciso substituir cada letra pela terceira que vem depois dela no alfabeto; isto é, substituir o A pelo D, e assim sucessivamente.» Estas cifras tornaram-se muito fáceis de decifrar!

Dois mil anos depois de César, a máquina Enigma era muito sofisticada. Em si mesma, não era uma máquina secreta, pois estava comercializada desde 1923. (Tinha, no entanto, sido modificada para fins militares pouco antes da Guerra.) Os serviços secretos britânicos obtiveram uma dessas máquinas para Bletchley Park. Assemelhava-se a uma máquina de escrever em que, configurados certos rotores (primeiro 3, depois 4 e, mais tarde, 5), permitia dactilografar um texto que surge a nossos olhos codificado e preparado para transmissão. A disposição inicial desses rotores pode ser alterada de acordo com uma chave. Essa chave, ela mesma, era transmitida em alemão pelo Reich, todos os dias às 6h00 da manhã na informação meteorológica (episódio dos mais emocionantes em ‘O Jogo da Imitação’). Os militares alemães tinham apenas de configurar o sistema mecânico da Enigma, de acordo com a chave do dia, e decifrar todas as possíveis mensagens, pois a Enigma funcionava nos dois sentidos.

A máquina Enigma usa um sistema semelhante ao de César --- permutações do alfabeto -, mas graças à engenhoca dos seus rotores (e a um dispositivo chamado refletor), cada nova letra do texto a cifrar usa uma permutação diferente do alfabeto. Para decifrar um texto encriptado, e sem ajuda do computador, seria necessário mesmo muito, muito tempo, ou o conhecimento da chave, isto é, a configuração inicial dos rotores. Ora essa chave mudava todos os dias às 6h00 da manhã: não havia, portanto, tempo! No princípio da Guerra, a enigma dispunha de 26x25x26 = 16 900 configurações iniciais para os seus rotores. Não é um número fantástico para a criptoanálise computadorizada de hoje... mas permite 1 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 possíveis chaves (114 zeros)!! O código Enigma foi considerado absolutamente indecifrável!

Os escutas britânicos intercetavam as mensagens dos Nazis como este WQSEU PMPIZ TLJJU WQEHG LRBID... e a Bomba que Turing construiu permitia imitar a Enigma e inverter a cifra, ou seja, tomar como input parte do texto cifrado e procurar a chave, realizando todas as hipóteses possíveis até encontrar coerência. Essencialmente, a Bomba estava programada para reduzir o espaço de procura da chave a um conjunto consideravelmente mais pequeno de soluções potenciais. Turing ficou também conhecido por estes algoritmos.

Durante o ano de 1940, foram decifradas com sucesso 178 mensagens dos Nazis. Em 1941, existiam entre 4 e 6 Bombas em Bletchley Park. Mas, em 1942, com o surgimento da Enigma de quatro rotores eram necessárias cerca de 70 bombas para o esforço de decifração.

A ideia de um computador ou programa universal, bem como a sua formalização matemática, foi publicada por Turing em 1936, antes da Guerra; em 1940, Turing construiu a primeira Bomba (episódio em que se centra a ação principal do filme); em 1943, já se encontrava a funcionar o Colossus (Mark 1), o protótipo do primeiro computador programável (ao mesmo tempo que o chamado ENIAC (Electronic Numerical Integrator and Computer), nos Estados Unidos), construído por Tommy Flowers sob direção de Max Newman, o qual realizava as ideias de Turing.

O arquiteto do computador digital de hoje, o físico teórico de origem húngara, naturalizado estadunidense, von Neumann, desenhou pouco mais tarde o computador digital à luz desta ideia de um programa universal (de Turing) que pode executar qualquer programa executável.

Esta foi talvez a contribuição mais notável de Turing para a Ciência.

4. O teste de Turing

Quase no fim do filme, o inspetor da polícia, que andara a investigar sobre os êxitos científicos de Turing (que, nesta fase da sua vida, se encontrava associado ao Laboratório de Computação de Max Neuman da Universidade de Manchester), pergunta-lhe se as máquinas podem pensar, a que Turing responde: «Encontro-me detido porque pedi a um homem que me agarrasse o pénis, e pergunta-me se as máquinas podem pensar?». O argumento culmina com um preâmbulo à Inteligência Artificial, através de um dos mais reverenciados artigos científicos de Turing, em que o cientista discute um teste - o teste de Turing - que permitiria a um de dois (ou mais) interlocutores (originaria, mas não necessariamente comunicando através de consolas de máquinas), através de um jogo de perguntas e respostas, descobrir se o outro é humano ou apenas uma máquina.

São algumas destas reflexões, postas em destaque neste interrogatório, que revelam ao espetador um dos temas da Inteligência Artificial e da Filosofia da Mente. Turing diria que, se, no jogo social, a máquina pudesse passar por ser humana, então a máquina teria passado o seu teste de inteligência (a consciência seria uma outra coisa...). Mas se o inspetor pensa que esta inteligência é feita da mesma substância que a nossa, sobre um suporte de massa cinzenta, então engana-se, pois sobre suportes diferentes, podem ser pensadas diversas formas de inteligência.

Em junho de 2014, o programa de Eugene Goostman da Universidade de Reading passou o teste durante o evento «Teste de Turing 2014», decorrido na Royal Society em Londres. O programa enganou 33% dos membros do júri que pensaram estar a falar com um rapaz de 13 anos. Note-se que este teste pode ser visto quer numa perspetiva holística, em que a máquina se comporta como um humano nas suas múltiplas tarefas cognitivas, ou antes em atividades específicas. Muito se tem escrito também acerca da vitória do supercomputador Deep Blue (da IBM) contra o campeão mundial de Xadrez, Gary Kasparov, em 1996. Poder-se-ia especular que, nesta projeção, o Xadrez, que é símbolo da inteligência humana, a máquina vencera muito antes.

Numa nota final, referimos que o trabalho científico de Alan Turing é, porém, muito mais vasto do que nos é deixado perceber no filme; atravessa o novo território da Teoria da Computação e arte antiga da Criptografia e invade os domínios da Química e da Morfogénese (origem de padrões fisiológicos). Ao investigar os chamados sistemas de reação-difusão, também motivou uma nova forma de ver e fazer cálculos lógicos em substrato líquido, que tem vindo a interessar os cientistas dos novos paradigmas da computação!

O Jogo da Imitação

97A caminho
da escola

Texto Raquel Albuquerque


Decorria o ano de 1926. Alan Turing tinha 14 anos e tinha entrado pouco tempo antes na escola em Sherborne, Inglaterra. Antes dessa escola tinha estado noutra, onde era tido como um aluno “médio-bom” na maior parte das disciplinas e um rapaz interessado em xadrez e debates. Turing já estava na nova escola em Sherborne quando se deu a Greve Geral de 1926 no Reino Unido, entre os dias 3 e 12 de maio, devido a negociações falhadas sobre os salários dos trabalhadores das minas de carvão.

O primeiro dia na escola coincidiu com um dos dias da greve. Decidido a não faltar às aulas, e visto não haver comboios a funcionar, Turing percorreu de bicicleta 97 quilómetros, desde a casa onde vivia em Southampton até à escola em Sherborne. A história é contada em todas as notas biográficas de Turing, como traço do seu retrato e da sua personalidade.

Porém, segundo conta Andrew Hodges, biógrafo de Alan Turing, as avaliações na escola primária não eram as melhores. “Posso perdoar a escrita, apesar de ser a pior que já vi, e tento ver de forma tolerante a sua inexatidão inabalável”, escreveu a professora, num documento citado por Hodges. “Mas não posso perdoar a estupidez da atitude dele em relação à discussão sensata sobre o Novo Testamento”. O biógrafo diz que Alan Turing não procurava ser um “rebelde”, mas a diretora da escola chegou a dizer que era “o tipo de rapaz destinado a ser um problema para qualquer escola ou comunidade”.

Apesar das dificuldades, conseguiu entrar no King's College, em Cambridge, em 1931, para estudar matemática. Mas não foi fácil: Turing não conseguiu uma bolsa da primeira vez que fez os exames e acabou por repeti-los no ano seguinte, acabando por conseguir.