Edwin nasceu no Quénia, em 2000, numa aldeia chamada Kisii que não lhe dava muitas escolhas a não ser a sobrevivência pela comida. Na casa que era uma barraca, Edwin vivia com George, o irmão mais novo, e Martha, a mãe. E como Martha era deficiente e o pai ninguém sabia quem era, Edwin ficou o chefe. Tinha 8 anos.
E o chefe tinha de procurar alimento onde ele não existia porque a horta da família dava para pouco mais do que milho branco que era transformado em farinha. A isso, os quenianos chamam-lhe Ugali e o Ugali era comido ao jantar e ao pequeno-almoço na manhã seguinte.
Depois, Edwin recomeçava a jornada: andava quilómetros na companhia de uma cabra até ao sítio onde comprava vinho martelado que trazia noite dentro para revender aos vizinhos.
O dinheiro traduzia-se em comida e a comida era sinónimo de felicidade – nesse dia, não tinha de chupar nas pedras para enganar a fome.
Em Kisii, os dias de Edwin sucediam-se e nada os distinguia: o ontem era igual ao hoje e o amanhã não seria diferente. Edwin catava comida, comia e pensava em comer; jogava futebol com uma bola de papel com amigos que nem sempre eram amigáveis; e calejava os pés nas viagens de ida e volta para trazer à mãe as garrafas de álcool. Edwin acreditava que a vida estava engarrafada e ele viveria para sempre dentro dela, naquele espaço e com aquelas pessoas. Estava enganado.
- Esteve cá um homem que quer que vás para a cidade estudar. A decisão é tua.
Num final de tarde, a mãe avisou que um tipo conhecido em Kisii por ajudar miúdos andara à procura dele. Queria levá-lo para Nairobi. Edwin imaginou logo a capital e os muitos homens brancos que nela habitavam. Lavou-se, fez a malinha num saco e preparou-se para a viagem noturna de Kisii para Nairobi.
No caminho, pensou em como estava feliz por ter uma oportunidade daquelas – chamar-lhe-ia milagre – e infeliz por não levar com ele o mundo que deixava para trás.
Na cabeça de Edwin, a mãe, o irmão mais novo e os amigos nem sempre amigáveis nunca saberiam o que era comer cinco vezes por dia e ter um colchão e não uma pele de vaca como cama. E isso consumia-o.
Por três vezes tentou fugir do Centro de Wanalea e por três vezes voltou atrás, passando pelas mesmas redes pelas quais escapara: quando se apanhava fora do Centro, Edwin tinha medo de perder-se, porque Kisii ficava num sítio longe dali. E ele não sabia como lá chegar.
Mas dentro de Wanalea também se sentia perdido. Ou talvez vazio. E isso revoltava-o e levava-o a embrulhar-se com outros miúdos e o tipo que o trouxera repensou a sua decisão. Queixou-se à diretora e ela respondeu-lhe:
- Ele fica. Não o vais levar de volta porque ele é bom. Se lhe dermos uma hipótese será bom rapaz.
Edwin ia aprender a palavra sonho.
Primeiro, andou na escola inglesa do Estoril e depois passou para uma escola portuguesa onde fez muitos amigos que gostaram dele como ele é mas não sabem como ele foi.
Edwin nunca quis contar que passou fome e sede, que andava descalço, que tinha uma mãe deficiente e que crescera sem pai - o medo da rejeição perseguia-o desde o dia que deixara Kisii. E, afinal, ele tinha uma nova vida em Portugal e era isso que importava. E esta era uma vida que incluía o bacalhau com natas, o Natal, as árvores de Natal, o telemóvel, os jogos de futebol na TV e a Playstation 4 e uma namorada branca chamada Bárbara.
Edwin tentou a sorte no Benfica, por iniciativa da mãe branca, que é benfiquista ferrenha, mas foi posto de lado por não perceber que o futebol também se joga sem bola. Estranhava a competitividade e desconhecia as regras e as táticas – para ele, jogar à bola começara como distração para se esquecer da fome.
Da Luz foi para o Estoril Praia, que fica pertinho da casa dos Vasconcellos, e a história dele mudou outra vez. Nos treinos dos iniciados, Edwin parece um juvenil ao lado dos outros: não é mais alto mas é mais rápido, explosivo e forte. E melhor. Mas não pode jogar.
Laura pediu a tutela de Edwin e tem em mão a carta da mãe, Martha, dos advogados, da assistente social e dos padrinhos do Centro para o comprovar. Mas não tem um papel do tribunal de menores do Quénia e, enquanto não o tiver, Edwin não está autorizado pela FIFA a jogar oficialmente.
- Disseram-me que tenho de pagar dois mil euros. Eu não vou pagar nada porque não concordo e uma Associação de Defesa dos Direitos Humanos não pode fazer isso. Tenho de lutar contra a corrupção.
Edwin não desiste e encara cada treino como uma encarnação: lá dentro, Edwin não é Edwin mas outro futebolista qualquer. De preferência Didier Drogba.