Edwin Makori Motieri não sabe que ao lado do dó está o ré ou o que é um sustenido e um bemol. Ele não lê pautas, toca de ouvido e a música é um dos seus talentos; os outros são o ténis, o desenho e o futebol. E Edwin quer explorá-los a todos, um de cada vez:

Tenho de tentar o futebol. E se o futebol não funcionar, talvez opte pelo desenho. E depois o ténis. E só então a música.

Este piano é um Bechstein, autografado pelo pianista Arthur Rubinstein, e está na família de Laura Vasconcellos há pelo menos duas gerações - e neste casarão do Estoril desde que ela se lembra.

Laura é a mãe branca de Edwin e foi ela quem o trouxe para Portugal num daqueles acasos que lhe acontecem e que ele chama milagres. Entre muitas coisas, e nenhumas delas maiores do que o amor e o sonho, Laura mostrou-lhe que a vida era uma pergunta de múltiplas respostas. E que ele podia escolher uma delas.

Edwin nasceu no Quénia, em 2000, numa aldeia chamada Kisii que não lhe dava muitas escolhas a não ser a sobrevivência pela comida. Na casa que era uma barraca, Edwin vivia com George, o irmão mais novo, e Martha, a mãe. E como Martha era deficiente e o pai ninguém sabia quem era, Edwin ficou o chefe. Tinha 8 anos.

E o chefe tinha de procurar alimento onde ele não existia porque a horta da família dava para pouco mais do que milho branco que era transformado em farinha. A isso, os quenianos chamam-lhe Ugali e o Ugali era comido ao jantar e ao pequeno-almoço na manhã seguinte.

Depois, Edwin recomeçava a jornada: andava quilómetros na companhia de uma cabra até ao sítio onde comprava vinho martelado que trazia noite dentro para revender aos vizinhos.

O dinheiro traduzia-se em comida e a comida era sinónimo de felicidade – nesse dia, não tinha de chupar nas pedras para enganar a fome.

Em Kisii, os dias de Edwin sucediam-se e nada os distinguia: o ontem era igual ao hoje e o amanhã não seria diferente. Edwin catava comida, comia e pensava em comer; jogava futebol com uma bola de papel com amigos que nem sempre eram amigáveis; e calejava os pés nas viagens de ida e volta para trazer à mãe as garrafas de álcool. Edwin acreditava que a vida estava engarrafada e ele viveria para sempre dentro dela, naquele espaço e com aquelas pessoas. Estava enganado.

- Esteve cá um homem que quer que vás para a cidade estudar. A decisão é tua.

Num final de tarde, a mãe avisou que um tipo conhecido em Kisii por ajudar miúdos andara à procura dele. Queria levá-lo para Nairobi. Edwin imaginou logo a capital e os muitos homens brancos que nela habitavam. Lavou-se, fez a malinha num saco e preparou-se para a viagem noturna de Kisii para Nairobi.

Tenho sorte e agradeço a Deus.

Quantos milhares de crianças gostariam de ter a minha sorte?

No caminho, pensou em como estava feliz por ter uma oportunidade daquelas – chamar-lhe-ia milagre – e infeliz por não levar com ele o mundo que deixava para trás.

Na cabeça de Edwin, a mãe, o irmão mais novo e os amigos nem sempre amigáveis nunca saberiam o que era comer cinco vezes por dia e ter um colchão e não uma pele de vaca como cama. E isso consumia-o.

Por três vezes tentou fugir do Centro de Wanalea e por três vezes voltou atrás, passando pelas mesmas redes pelas quais escapara: quando se apanhava fora do Centro, Edwin tinha medo de perder-se, porque Kisii ficava num sítio longe dali. E ele não sabia como lá chegar.

Mas dentro de Wanalea também se sentia perdido. Ou talvez vazio. E isso revoltava-o e levava-o a embrulhar-se com outros miúdos e o tipo que o trouxera repensou a sua decisão. Queixou-se à diretora e ela respondeu-lhe:

- Ele fica. Não o vais levar de volta porque ele é bom. Se lhe dermos uma hipótese será bom rapaz.

Edwin ia aprender a palavra sonho.

Laura Vasconcellos é a diretora da ADDHU (Associação da Defesa dos Direitos Humanos) em Portugal e é quem gere o Centro de Wanalea. Foi ela que segurou Edwin em Nairobi porque achava que debaixo daquele jeitinho duro e fechado e por vezes explosivo estava um bom miúdo. E todos os miúdos têm direito a uma oportunidade.

Ele e ela já se conheciam de conversas de professora para aluno mas a relação entre ambos nasceria em movimento. Edwin gostava de dançar tanto quanto Laura gostava e juntos formaram um par curioso sempre que havia baile em Wanaela.

Jesus tinha 12 discípulos mas preferiu um deles, certo? Senti-me tocado por ela. Senti-me ligado a ela. Senti a ligação. Ela é tudo para mim.

Edwin tinha agora uma mãe branca que lhe ligava de Lisboa a perguntar se ele estava a ser um bom rapazinho e ele respondia-lhe de Nairobi que sim, “mãe Laura”.

Nesta altura, Edwin já sabia que queria ser futebolista mas que não seria no Quénia que o conseguiria. Precisava de sonhar mais alto e tocou no céu quando Laura lhe fez a pergunta:

- O que achas de ir para Portugal?

Edwin esperou um ano pelo passaporte e quando lho passaram para a mão só pensou nos brancos que iria ver na Europa. Aterrou em Lisboa já era noite, com as luzes do aeroporto a iluminarem-lhe o caminho e para trás ficou uma viagem em que estivera pela primeira vez com as nuvens ao alcance da mão. No dia seguinte, Thomaz Paes de Vasconcellos, o marido de Laura, levou-o à praia do Tamariz e ele pisou areia e não terra e sentiu a textura da água salgada do mar que nunca vira.

Edwin tinha agora outra família e essa família dava-lhe tudo o que ele nunca sonhara ter: a oportunidade de ser alguém. E de pertencer a alguém.

Imagina, um pai que não é teu pai aceita-te como filho.

Uma mãe que não é tua mãe aceita-te como filho!

Eles deram-me uma chance, deram-me uma oportunidade.

Não é por ser preto que não sou filho deles.

No meu coração, eles são tudo para mim.

Primeiro, andou na escola inglesa do Estoril e depois passou para uma escola portuguesa onde fez muitos amigos que gostaram dele como ele é mas não sabem como ele foi.

Edwin nunca quis contar que passou fome e sede, que andava descalço, que tinha uma mãe deficiente e que crescera sem pai - o medo da rejeição perseguia-o desde o dia que deixara Kisii. E, afinal, ele tinha uma nova vida em Portugal e era isso que importava. E esta era uma vida que incluía o bacalhau com natas, o Natal, as árvores de Natal, o telemóvel, os jogos de futebol na TV e a Playstation 4 e uma namorada branca chamada Bárbara.

Edwin tentou a sorte no Benfica, por iniciativa da mãe branca, que é benfiquista ferrenha, mas foi posto de lado por não perceber que o futebol também se joga sem bola. Estranhava a competitividade e desconhecia as regras e as táticas – para ele, jogar à bola começara como distração para se esquecer da fome.

Da Luz foi para o Estoril Praia, que fica pertinho da casa dos Vasconcellos, e a história dele mudou outra vez. Nos treinos dos iniciados, Edwin parece um juvenil ao lado dos outros: não é mais alto mas é mais rápido, explosivo e forte. E melhor. Mas não pode jogar.

Laura pediu a tutela de Edwin e tem em mão a carta da mãe, Martha, dos advogados, da assistente social e dos padrinhos do Centro para o comprovar. Mas não tem um papel do tribunal de menores do Quénia e, enquanto não o tiver, Edwin não está autorizado pela FIFA a jogar oficialmente.

- Disseram-me que tenho de pagar dois mil euros. Eu não vou pagar nada porque não concordo e uma Associação de Defesa dos Direitos Humanos não pode fazer isso. Tenho de lutar contra a corrupção.

Edwin não desiste e encara cada treino como uma encarnação: lá dentro, Edwin não é Edwin mas outro futebolista qualquer. De preferência Didier Drogba.

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