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Anorexia

o bicho pegajoso que teima em não sair

A anorexia é a doença psiquiátrica que mais mata. Entre 5% a 10% dos doentes morrem, uns devido a complicações médicas graves, por estarem subnutridos, outros porque se suicidam

Os casos de anorexia têm aumentado em todo o mundo nos últimos anos

Em Portugal, desconhece-se quantas pessoas têm a doença. Nunca foram realizados estudos sobre a prevalência da anorexia a nível nacional. Mas vários especialistas e outros profissionais de saúde que trabalham na área das perturbações do comportamento alimentar garantem que atendem mais casos hoje em dia

Também os internamentos estão a aumentar e não há camas hospitalares suficientes para dar resposta a estas situações graves. Improvisam-se soluções, como o internamento temporário noutros hospitais, em serviços não especializados. Mas há doentes que esperam em casa

O tratamento é assim adiado, o que tem consequências numa doença em que o tempo conta: quanto mais tarde a anorexia é detetada e tratada, mais complicada é a recuperação

A gaiola da anorexia nervosa

A chave roda na fechadura, o trinco recua e a porta abre-se. A sala tem pouca mobília: um sofá logo à entrada, uma televisão e uma mesa comprida ao centro. Ao canto, há um corredor que dá acesso a uma pequena cozinha, onde chamam a atenção vários papéis fixados na parede com planos alimentares escritos à mão, e a três quartos, cada um com três camas e respetivas mesas de cabeceira. Em nenhuma das divisões da residência há espelhos para ver o corpo, apenas o rosto. 

Num dos quartos, sentada na cama sentada com as costas muito direitas e vestida com uma camisola polar, está Joana (nome fictício). É a 7.ª vez que é internada devido a uma anorexia nervosa. O primeiro internamento foi aos 16 anos e o mais recente, agora, aos 31, depois de uma “recaída abismal”. 

Estava a perder peso de semana para semana, tinha muitas quebras de tensão e cãibras musculares, queria voltar a alimentar-se e não conseguia. “Eu queria dizer 'não' à doença, dizer 'não' à voz da minha cabeça que me dizia para não comer, mas o meu comportamento mantinha-se igual ou piorava. Comia cada vez menos, mas não conseguia estar parada. Cada dia era pior do que o anterior. Eu estava a morrer.” Joana acabou por falar com a psiquiatra que a acompanhava e pediu-lhe para ser internada. 

Em setembro do ano passado, foi acolhida na Residência Elysio de Moura, no Pólo de Valongo do Centro Hospitalar Universitário de São João (Hospital de São João). Inaugurada em 2015, a residência destina-se a doentes com distúrbios alimentares, acima dos 18 anos. A anorexia é o mais frequente - mais de 90% dos residentes têm a doença.

MUITOS DOENTES PARA POUCAS CAMAS 

Os internamentos por anorexia são, hoje em dia, uma das principais preocupações dos médicos, psicólogos e outros profissionais de saúde que trabalham na área. Dados enviados pelo Ministério da Saúde ao Expresso mostram que os episódios de internamento triplicaram nos últimos cinco anos, passando de 66, em 2018, para 191, em 2022. Este aumento tem consequências no terreno, com os especialistas a serem obrigados, muitas vezes, a tomar decisões tão difíceis quanto pedir a um doente que fique em casa à espera de uma vaga, porque as camas do hospital são poucas e estão cheias. 

Há um aumento de casos graves a necessitar de internamento e cada vez é maior o tempo que temos de esperar por uma cama disponível”

No Hospital de Santa Maria, integrado no Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, tornou-se habitual estarem mais de dez raparigas à espera de serem internadas, adianta Jennifer Santos, psiquiatra ligada às doenças do comportamento alimentar no hospital. “Há um aumento de casos graves a necessitar de internamento e cada vez é maior o tempo que temos de esperar por uma cama disponível.” Em situações extremas, as doentes podem ser hospitalizadas temporariamente nos hospitais das áreas de residência, mas muitas esperam em casa. Quando são finalmente internadas, estão ainda mais magras, frágeis e desnutridas, permanecendo nas instituições por longos períodos, o que dificulta a libertação de camas. “É um ciclo vicioso.” A espera também afeta a evolução da doença, dificultando a recuperação.

No internamento de pedopsiquiatria do Hospital Dona Estefânia, do Centro Hospitalar Lisboa Central, ainda há camas livres, mas são cada vez mais as utilizadas por pessoas com distúrbios alimentares, sobretudo anorexia. Atualmente, ocupam quase metade das 16 camas do serviço, quando antes eram quatro, no máximo. “Notamos um aumento muito grande dos internamentos. Termos de repente metade das camas ocupadas por doentes com distúrbios alimentares é uma experiência nova para nós. Tem sido complicado”, diz Margarida Marques, pedopsiquiatra e coordenadora da unidade.

INTERNAMENTOS TRIPLICARAM NOS ÚLTIMOS CINCO ANOS
Número de internamentos com registo de anorexia como diagnóstico principal ou adicional 

FONTE: Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), do Ministério da Saúde

Para alguns destes doentes recentes, o internamento foi o primeiro contacto que tiveram com os cuidados de saúde especializados: chegaram de forma espontânea, em estado grave, sem terem sido referenciados por outros profissionais de saúde, sem diagnóstico de anorexia e sem qualquer tipo de ajuda médica. A hospitalização foi o “episódio inaugural, o que reflete, de algum modo, uma falha no diagnóstico, no ambulatório e no acesso aos cuidados de saúde em geral”.

"A acessibilidade ao SNS é uma das principais falhas neste momento no tratamento destes doentes", concorda Manuel Gonçalves Pinho, psiquiatra e coautor de um estudo recente sobre as hospitalizações por anorexia em Portugal. Explica que a falta de recursos humanos e a sobrecarga de trabalho que enfrentam os profissionais de saúde impedem a realização de consultas de forma regular. Há doentes que têm de esperar "um ano e meio" para serem atendidos.

Outros têm de percorrer distâncias de centenas de quilómetros de autocarro para comparecerem nas consultas. "As pessoas que vivem fora dos grandes polos urbanos, como Lisboa, Porto ou Coimbra, onde a acessibilidade é fácil, acabam por estar mais vulneráveis." Para o psiquiatra, "não adianta ter estruturas fantásticas de tratamento se estivermos apenas a lidar com os resquícios do que ficou mal feito atrás."

No Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, os internamentos quase triplicam nos últimos três anos, passando de uma média de três a quatro por ano para os 12 atuais, aponta Tânia Silva, psiquiatra no hospital.

Patrícia Nunes, psiquiatra no Hospital de São João e coordenadora da Residência Elysio de Moura, também dá conta de um aumento, em 2021, dos internamentos não programados, ou seja, através das urgências, o que era “muito raro”. Também foram internadas mais pessoas ao fim de apenas uma ou duas consultas no hospital. “O nível de gravidade era tal que tinham logo de ser hospitalizadas”, mesmo sendo o internamento, por norma, uma medida de último recurso - a maioria das pessoas é acompanhada em consultas de ambulatório. A pandemia é apresentada como uma das possíveis justificações para o aumento destas situações, devido ao menor acesso aos cuidados de saúde, quebra de rotinas na escola ou no trabalho, e isolamento. No serviço de psiquiatria do hospital, as consultas eram feitas por telefone e mesmo a residência em Valongo esteve fechada durante algum tempo. “Ficámos muito limitados”, reconhece a psiquiatra. Para Margarida Marques, o problema é mais antigo do que isso.

“A DOENÇA APRISIONA-NOS NUMA GAIOLA QUE PARECE DOURADA” 

Joana tem um terço ao pescoço. Na mesa de cabeceira ao lado da cama está pousada uma edição da Bíblia. As primeiras referências históricas à anorexia dizem respeito a santas, como Catarina de Siena, em Itália, e Alexandrina de Balasar, em Portugal. Faziam jejuns radicais e muito prolongados, acreditando que só assim poderiam realmente aproximar-se de Deus.

Mesmo antes de ser internada pela primeira vez, Joana tinha feito algumas dietas e exercício físico para emagrecer, embora tivesse um “peso normal”. “A imagem física já era importante para mim nessa altura. Achava que poderia emagrecer um bocadinho e ficar mais bonita. Também queria ser melhor pessoa, melhor aluna, melhor filha e controlar melhor o que me acontecia e aquilo que as pessoas à minha volta faziam."

Aos 16 anos, iniciou uma dieta ainda mais restritiva e deixou de fazer quase todas as refeições do dia, à exceção do jantar, a que não podia esquivar-se devido à presença dos pais. Ao almoço, comia apenas cenoura raspada, alface e uma peça de fruta. “Definir um plano alimentar na minha cabeça e conseguir cumpri-lo era uma vitória.”

À medida que adoecia, essa necessidade de controlo e perfeição foi crescendo até se tornar insuportável. “Ao início, parecia que estava tudo a dar certo e que tinha encontrado um paraíso.” Mas a situação foi-se agravando, ao ponto de lhe ser difícil levantar de uma cadeira ou da cama sem ter uma quebra de tensão.

Segundo a edição mais recente do Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais (DSM-5), publicado pela Associação Americana de Psiquiatria em 2013, a anorexia nervosa caracteriza-se por uma restrição alimentar com impacto negativo no peso corporal, medo “intenso” de ganhar peso ou de engordar, e “perturbação” no modo como o próprio peso ou a forma corporal são vivenciados, não sendo reconhecida, por exemplo, a gravidade da situação.

Os casos de anorexia com que psiquiatras, psicólogos e outros profissionais de saúde lidam são, ainda assim, muito diferentes entre si, sobretudo no que diz respeito ao contexto e causas da doença. Entre as características em comum, estão os comportamentos "rígidos e obsessivos", que são "muito frequentes", a ansiedade, a necessidade de "ter tudo sob controlo" - como se o mundo, de repente, se tornasse fonte de todos os perigos -, a introversão e o perfecionismo, explica Margarida Marques. Patrícia Nunes acrescenta outra característica: o ascetismo. “Há um lado de autossacrifício.”

Percebendo que alguma coisa não estava bem, os pais de Joana levaram-na a um psiquiatra, que fez um diagnóstico de anorexia nervosa. A partir daí, as refeições começaram a ser controladas, o que gerou conflitos na família. “Havia muitos gritos, eu chorava, eles choravam. A hora das refeições era um autêntico inferno. Sofria-se muito." Os pais não percebiam bem a doença e a jovem não partilhava o que sentia. Recusava-se a comer e só queria ficar sozinha. “A anorexia tem esse poder: afasta todas as pessoas até restarmos apenas nós, aprisionadas numa gaiola que parece dourada, sem liberdade e com pensamentos repetitivos sobre quantas calorias se ingeriu, quantas se gastou e quantas temos ainda de gastar."

Em abril de 2008, Joana deu entrada na urgência do Hospital de São João, no Porto, e já não voltou para casa. Estava com problemas físicos graves. Dali foi encaminhada para o Hospital Magalhães Lemos, na mesma cidade, onde esteve internada quatro meses. Foi uma experiência dura. Durante os primeiros meses não podia receber visitas dos pais nem falar com eles por telefone, estando esses contactos dependentes do ganho de peso. Por cada três quilos a mais, tinha direito a uma recompensa: primeiro foram os telefonemas para a família, depois as idas a casa. 

A meio do internamento, o seu estado de saúde agravou-se e teve de ser transferida para um hospital com outras especialidades médicas para receber mais ajuda e ser acompanhada permanentemente. As análises ao sangue tinham revelado alterações graves ao nível dos rins e do fígado, baixo nível de leucócitos e anemia. Esteve duas semanas a receber soro e a realimentar-se. Disseram-lhe que, se recusasse a comida, seria alimentada por uma sonda no nariz.

Joana voltou para casa recuperada e retomou os estudos. Concluiu o secundário, que tinha interrompido, entrou na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto e terminou o curso com a distinção de "melhor aluna" naquele ano, apesar de estar sempre doente, a comer pouco e a induzir o vómito, um comportamento típico da bulimia, mas a que algumas pessoas com anorexia também recorrem. Foi observada por vários médicos e médicas durante esse período, mas recusava sempre a ajuda que lhe davam e abandonava os tratamentos.

Seria internada várias vezes, cada vez com mais frequência, chegando a sê-lo anualmente. E é assim que tem sido: seis meses na residência, em Valongo, e seis meses em casa, num ciclo que ainda não conseguiu interromper.

“Quando a doença cresce, eu fico sem margem para escolher outra coisa se não ela. Queremos tanto controlar que acabamos por não controlar nada”

Associa essas "recaídas", que apesar de tudo vão sendo menos graves, à necessidade, que de tempos a tempos se instala, de "fazer melhor as coisas" e controlar as diversas situações do dia a dia. A forma como responde a essas exigências é sempre a mesma: deixa de comer. Da última vez, a aflição veio de não conseguir encontrar um trabalho na área após sair da faculdade. De manhã à noite em casa, sozinha e sem ocupações, não conseguiu evitar os pensamentos do costume. "Quando a doença cresce, eu fico sem margem para escolher outra coisa se não ela. Queremos tanto controlar que acabamos por não controlar nada." 

Mesmo nos momentos em que decide alimentar-se melhor, não consegue fazê-lo sozinha. Sente culpa de cada vez que coloca no prato um alimento diferente daqueles que come todos os dias, em todas as refeições, por segurança ou por hábito, por saber o número exato de calorias ou porque se tornou mais fácil. "À medida que vamos adoecendo, vamos ficando mais presos aos comportamentos doentios que alimentam  a doença. A anorexia faz-nos morrer mais um bocadinho a cada dia."

A residência Elysio de Moura, onde Joana se encontra, é considerada única no país, por se focar na recuperação clínica do doente ao mesmo tempo que promove a sua autonomia e reabilitação social. São realizadas psicoterapias individuais, mas privilegiadas as sessões em grupo; há consultas semanais de psiquiatria e nutrição. As refeições principais são confecionadas por uma empresa contratada, mas o pequeno-almoço e o lanche são tarefas das residentes. Cada uma prepara as suas refeições intermédias consoante o plano alimentar definido. Os internamentos são de pelo menos três meses, prolongando-se no máximo até aos seis. Joana ainda não sabe quando vai voltar a casa. 

Comer cada vez menos para vencer a maratona das calorias

Desconhece-se quantas pessoas têm anorexia em Portugal. Não existem estudos sobre a prevalência da doença a nível nacional, tendo sido apenas realizados trabalhos incidindo sobre grupos específicos, com amostras pequenas e não representativas da população nacional, sobretudo na segunda metade da década de 1990. É o caso do estudo feito em 1996 por Isabel do Carmo, na altura especialista em endocrinologia no Hospital de Santa Maria, e outros médicos e investigadores na área das doenças do comportamento alimentar. Foram avaliadas cerca de 2.500 mulheres da área de Lisboa entre os 10 e os 21 anos, tendo sido estimada uma prevalência de 0,4% para a anorexia e 12,6% para "síndromes parciais", isto é, traços ou sintomas da doença. Outro estudo da mesma autora, realizado três anos depois junto de 2.398 alunas do ensino secundário de Lisboa e Setúbal, revelou uma prevalência de 0,37% (12,6% com sintomas).

Embora não haja dados recentes, "tudo indica que a anorexia é mais frequente hoje em dia”, diz Isabel do Carmo. Deixou o Hospital de Santa Maria em 2013, mas continua a atender doentes com perturbações alimentares, mantendo também a ligação ao grupo que estuda e trata estas doenças no hospital. A médica garante que acompanha atualmente mais pessoas com perturbações alimentares. Outros especialistas ouvidos pelo Expresso disseram o mesmo.

Patrícia Almeida Nunes, que dá consultas de nutrição num hospital privado na zona de Lisboa, refere uma "procura crescente" por parte de utentes com perturbações alimentares, incluindo a anorexia. "Trabalho nesta área há 28 anos e sempre vi muitas situações destas. Mas nos últimos três, quatro anos, tenho atendido muito mais doentes do que o habitual. E os meus colegas da área apontam o mesmo." No serviço de Dietética e Nutrição do Hospital de Santa Maria, de que é coordenadora, a agenda "está sempre cheia". Também na unidade de pedopsiquiatra do Hospital da Estefânia, verifica-se, desde meados de 2021, uma “maior pressão” na consulta.

Os dados enviados pelo Ministério da Saúde mostram que, em 2022, quase 10 mil pessoas com distúrbios alimentares estavam registadas nos centros de saúde, mais 1500 do que em 2018. "O aumento do registo de utentes com diagnóstico de anorexia/bulimia, tanto ao nível dos Cuidados de Saúde Primários como ao nível hospitalar, pode não significar aumento de prevalência", afirmou o ministério, acrescentando que, "através dos serviços competentes, tem promovido junto das instituições e dos profissionais a necessidade de consolidação dos registos clínicos".

CASOS DE ANOREXIA E BULIMIA ATINGEM VALOR MAIS ALTO DOS ÚLTIMOS CINCO ANOS
Número de doentes registados nos centros de saúde com diagnóstico de anorexia/bulimia

FONTE: Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), do Ministério da Saúde

Com base em dados que recolheu para o seu livro mais recente, "Alimentação - Mitos e Factos" (2020), Isabel do Carmo explica que, no Japão, a taxa de prevalência de distúrbios alimentares passou de 1,2% em 1982 para 4,5% em 1992 e para 12,7% em 2002. "É um aumento assustador", que pode estar relacionado com mudanças ocorridas a partir de dentro do país ou ter acontecido por "contaminação" da cultura ocidental dos EUA e da Europa, onde os casos de anorexia são historicamente superiores. 

Segundo a mesma investigação citada pela médica e professora (Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa), a evolução dos casos na Noruega e no México também se traduz numa curva ascendente e, na Austrália, passaram para o dobro entre 1998 e 2008. "São culturas diferentes da nossa, mas creio que se fosse avaliada a realidade em Portugal, seriam obtidos dados semelhantes." A investigação analisou dados de mais países, constando-se um aumento global da prevalência de anorexia de 3,5% para 7,8%, entre 2000-2006 e 2013-2018.

“SUPRIMI TODO O PRAZER DA MINHA EXISTÊNCIA” 

No final de 2019, enquanto lidava com "problemas emocionais" relacionados com o seu percurso académico, Carolina Ferreira Baptista, 26 anos e professora no curso de Ciências da Comunicação na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa, tomou uma decisão: perder muito peso, embora fosse magra. Não sendo essa a solução para os problemas, pelo menos faria com que se sentisse menos aflita, ao proporcionar-lhe uma sensação de controlo sobre um aspeto da sua vida - a alimentação -, quando todos os outros lhe pareciam desequilibrados e incontroláveis. 

Foi cumprindo gradualmente o objetivo da perda de peso, mas em março do ano seguinte, durante o primeiro confinamento da pandemia de covid-19, o seu plano aparentemente inofensivo tornou-se perigoso e lesivo. "Ao estar fechada sobre mim própria em casa, a vontade de emagrecer transformou-se no meu único objetivo realizável. Canalizei todas as minhas frustrações e medos para esse projeto de perda de peso." 

Começou por banir da sua alimentação os hidratos de carbono (pão, massa, arroz e outros alimentos do mesmo grupo) e a fruta, comendo apenas proteína e legumes. Depois, diminuiu as porções desses alimentos no prato, comendo cada vez menos até deixar de comer de todo. "Eu já não queria comer absolutamente nada." Alimentava-se à base de rebuçados porque o sabor doce lhe dava prazer, quando já mais nada tinha essa capacidade. "Eu suprimi todo o prazer da minha existência, mesmo o de estar sentada num sofá." Às vezes, comia bolachas e queijo. De resto, era chá e água. "Cresci a acreditar que uma vida bem vivida era uma vida de autossuperação, com o sofrimento que isso implica. Fui sempre estimulada a fazer exercício físico e o sucesso académico era privilegiado." A certa altura, comer pouco e cada vez menos também se transformou num projeto de superação. "Se posso comer 500 calorias num dia e no dia seguinte apenas 400, já ganhei. É como uma maratona."

Os efeitos físicos da doença não tardaram a aparecer. "Perdi a minha menstruação e isso foi muito doloroso para mim. Há raparigas com anorexia que ao início ficam particularmente felizes com isso, mas eu fiquei muito angustiada. E demorei muito tempo a voltar a menstruar." Carolina também se lembra de passar o verão de 2020 vestida como se fosse inverno, por ter muito frio. E de ter lido dezenas de livros de que agora não se lembra. "Terei de os ler todos novamente."

Quando a sua magreza se tornou visível para as pessoas mais próximas e com quem convivia diariamente, ainda em 2020, a jovem sentiu-se forçada a consultar um psiquiatra. O especialista confirmou que estava doente e apresentou-lhe duas opções: tratar a doença ou não tratar, podendo nesse caso adoecer para sempre ou morrer. Escolheu a primeira hipótese.

Embora a doença só se tenha manifestado nessa altura, havia sinais já desde os 13, 14 anos. Pequenas perdas de peso, "obsessão com uma alimentação saudável", muito exercício físico. Mas quem olhava para ela via apenas uma pessoa "altamente funcional e muito boa aluna" - aspetos que encaixam no "estereótipo da jovem com anorexia".

Perder o prazer, a liberdade, a vida

A perda de menstruação, designada amenorreia, é apenas um dos muitos efeitos que a anorexia tem no organismo, e que podem ir desde a falta de energia, frio e quebras de tensão até à morte. Segundo as estatísticas internacionais, até 10% das pessoas com anorexia morrem, seja porque surgem complicações médicas graves (sobretudo problemas cardiovasculares e insuficiência renal), seja porque se suicidam. Não há dados sobre a mortalidade em Portugal. Esta realidade nunca foi estudada. 

Embora se trate de uma patologia rara, com uma taxa de mortalidade baixa comparativamente a outras causas de morte, a anorexia é a doença psiquiátrica que mais mata. Segundo um dos mais recentes estudos sobre a incidência, prevalência e mortalidade das perturbações alimentares, publicado em 2021 na revista científica "Current Opinion in Psychiatry", o risco de morte em pessoas internadas com anorexia pode ser cinco ou mais vezes superior ao das pessoas sem esta doença, concluíram os investigadores com base na literatura disponível sobre o tema.

“A anorexia tem um impacto devastador a nível orgânico", diz Margarida Marques. Afeta o cérebro, os ossos, o coração, os músculos, o aparelho reprodutor. "O coração bate a 30 ou a 40 e, a certa altura, já nem o cérebro funciona, porque está tão desnutrido quanto o resto do corpo.”

"A anorexia tem um impacto devastador a nível orgânico", diz Margarida Marques. Afeta o cérebro, os ossos, o coração, os músculos, o aparelho reprodutor. "O coração bate a 30 ou a 40 e, a certa altura, já nem o cérebro funciona, porque está tão desnutrido quanto o resto do corpo". Isabel do Carmo acrescenta outros danos físicos, como a atrofia mamária, devido à diminuição da produção de estrogénio, uma das principais hormonas sexuais femininas. Nos rapazes, são os níveis de testosterona que baixam. Pode também acontecer o corpo cobrir-se de pêlos muito curtos, uma espécie de penugem que, à semelhança do que acontece nos recém-nascidos, serve como proteção contra o frio. "É como se fossem crianças outra vez."

Estes são excertos de reflexões escritas por um homem com anorexia e partilhadas com o Expresso

O CASULO

"Anorexia é a projecção de um medo
Um medo que te mantém preso ao chão,
“Incapaz” de traduzir a força motora da razão,
Uma força que te quer impelir a fazer diferente mas....
É o medo, o medo não deixa!
Esse casulo onde "preferes” estar, o casulo da doença.
Casulo frágil esse, mas que de uma forma paradoxal vai com uma força desmedida
nos abraçando e “protegendo”,
Tornando-nos imunes a eventos sociais, ao que os amigos e a família nos podem trazer,
Vai-nos levando pela mão para um caminho onde já não somos nós que definimos a direcção,
mas onde somos guiados para um poço... (...)."

AS PALAVRAS SÃO PESADAS

"(...)
Alguém me dizia um dia que “deixar” a anorexia era como um divórcio de alguém que vivia
agarrada a nós,
Hoje surge-me com a clareza de um dia nublado que a força da anorexia é tal que já se
confunde com a tua identidade, de tal forma que desconheces o que existe para além desse
casulo medonho….
(...)"

SEM TÍTULO

"(...) Bicho pegajoso este que teima em não sair. Porque não encontras tu um outro alguém, um
outro corpo para martirizar? Não tomei já eu suficiente de ti? Vai, perde-te na encruzilhada, e que não haja uma pedra no chão que te guie no caminho de retorno. Apega-te a uma folha, a um ser
não vivo, sai de mim, desinvade-me…. Sim, é isso mesmo desinvade-me, porque como antigos
impérios foram tomados e dominados à boa mercê dos seus líderes, tu tomaste conta de mim
e das minhas vontades, fizeste teus os meus impulsos. Silenciaste-me e roubaste-me a
identidade, fui sendo cada vez mais teu e hoje não sei ser nada além de teu...
(...)
Só queria que fosses embora..."

MAIOR PREOCUPAÇÃO COM A “MASSA MUSCULAR” NOS RAPAZES 

A prevalência da anorexia nos rapazes é apresentada normalmente em termos de proporção: um rapaz por cada dez raparigas. A doença neles manifesta-se de forma relativamente diferente. Se, por um lado, os estudos apontam para uma "menor pressão sobre aspetos relacionados com a alimentação e a magreza", por outro lado, "parece existir uma maior preocupação com a forma corporal no que respeita à massa muscular e capacidades desportivas", explica Sertório Timóteo, psiquiatra ligado às doenças do comportamento alimentar, no Hospital de São João, no Porto.

A ANOREXIA TAMBÉM AFETA OS RAPAZES 

FONTE: Royal College of Psychiatrists, Reino Unido

A investigação mostra que os rapazes têm menos comportamentos purgativos, mas investem mais no exercício físico intenso. Também têm mais sintomas obsessivos. Quem lida com estes casos nota igualmente que há mais dificuldades em reconhecer a doença e pedir ajuda, porque a anorexia continua a ser vista como uma "doença das meninas", diz Patrícia Nunes. Pedopsiquiatra no Hospital de Dona Estefânia, Catarina Santos diz que enquanto nas raparigas a magreza extrema é encarada como uma tentativa de adequação a determinados conceitos de beleza, nos rapazes está associada a "fragilidade", o que dificulta falar abertamente sobre o assunto, mesmo em contexto de terapia. Na prática, isto significa que pode haver muitos mais casos de anorexia em rapazes do que revelam as estatísticas.

"A sociedade aceita muito melhor que uma rapariga controle a alimentação do que um rapaz", conta um jovem que lida com a doença há quase 20 anos e pediu para não ser identificado. Deles espera-se que se sentem à mesa e comam e bebam de forma abundante. "As pessoas à minha volta viam a anorexia como uma questão feminina. Eu era quase um 'outsider' da própria doença." Essas expectativas e dificuldades de aceitação da doença nos rapazes acabam por atrasar ou dificultar a procura de apoio, reforça. "Acho que existe um subdiagnóstico da doença na população masculina."

Considera ainda que os "estímulos" que podem contribuir para desencadear a doença em rapazes e raparigas são diferentes. "Os rapazes são mais afetados por um distúrbio que se chama ortorexia, relacionado com a necessidade de ter um corpo muito musculado. E isso rapidamente precipita um distúrbio alimentar." Quem frequenta ginásios, como é o seu caso, apercebe-se disso com facilidade. As dietas são aí encaradas com alguma leviandade e displicência, predominando uma "cultura muito forte de perfecionismo do corpo", diz.

As modas da alimentação nas redes sociais

A anorexia pode ser causada por vários fatores, uns mais ligados à genética e às características da personalidade, outros ao contexto familiar. É mais frequente em famílias com rendimentos elevados ou em que algum dos elementos tem doença mental, obesidade ou se preocupa excessivamente com a forma física e dietas, explica Sertório Timóteo. 

Não basta, contudo, que algum destes fatores esteja presente para que a doença se desenvolva, normalmente no início da adolescência. São acontecimentos  específicos que muitas vezes levam a isso, como a transição de ano letivo nas crianças e jovens, mudança de escola ou problemas escolares. A mudança de casa também pode desencadear os primeiros sintomas, assim como a doença ou morte de um familiar ou amigo, o divórcio dos pais, ou a saída de um irmão ou irmã de casa para estudar fora. “Vemos que são jovens que têm dificuldades em exprimir e integrar determinadas emoções, como a tristeza e a zanga”, explica Rita Palma, psicomotricista no Hospital Dona Estefânia, na unidade de pedopsiquiatra.

“O último refúgio para uma série de circunstâncias mal resolvidas”. É assim que Margarida Marques descreve a anorexia. Entre essas circunstâncias, estão a saída do mundo da família e a entrada na adolescência, trajeto que nas doentes com anorexia está “profundamente alterado”. “Embatem na adolescência, na transformação do corpo, nas mudanças rápidas que nele se operam e que as expõem ao olhar, à crítica e à interação com os outros, e não conseguem avançar." A médica acrescenta que as raparigas entram cada vez mais cedo na puberdade, o que também poderá influenciar o aparecimento da doença e contribuir para o aumento de casos que se verifica atualmente.

Não é raro as doentes com anorexia terem tido uma infância "muito feliz e protegida", em famílias que favorecem pouco a autonomia dos filhos. "De repente, elas só querem voltar ao que havia antes." Têm dificuldades em crescer, porque isso implica separar-se da família e "assumir responsabilidades", e procuram perpetuar um "estado infantil", que no corpo reflete-se no apagamento das formas e outras marcas da adolescência, através da perda de peso.

A anorexia pode servir também como uma espécie de "falsa identidade", face à incapacidade de construir outra mais ajustada. "É como se fossem anoréticas para não terem de ser outra coisa qualquer muito complicada." Para não terem de fazer escolhas, porque isso implica deixar coisas para trás.

A poeta Louise Glück, vencedora do Prémio Nobel da Literatura em 2020, também ela com um passado de anorexia, escreveu: "A tragédia da anorexia não reside no impulso autrodestrutivo que leva ao seu aparecimento, embora os resultados da doença sejam muitas vezes autodestrutivos. Tem a ver, sim, com facto de se tratar de uma tentativa de construir, da única maneira possível e com meios tão limitados, um eu que seja plausível" (Rachel Aviv, "Strangers to Ourselves - Stories of Unsettled Minds", 2022).

O contexto social e cultural também desempenha um papel relevante no aparecimento da doença. Aliás, pode ser um dos principais responsáveis pelo aumento de casos que se verifica atualmente. Ressalvando que a anorexia não é uma "doença da moda", Isabel do Carmo considera que existe uma "obsessão com a alimentação saudável" que, em pessoas vulneráveis, pode resultar em doença. 

O fenómeno é visível, sobretudo, em jovens raparigas, "mas também os rapazes começam a ser atingidos". Essa obsessão é visível na cada vez maior adesão a "modas alimentares", aponta. "Houve a dieta paleo, que depois desapareceu. Agora há o vegetarianismo, o jejum intermitente e a classificação dos alimentos como saudáveis e não saudáveis, com base em desinformação publicada em revistas e que circula nas redes sociais.” A médica e professora alerta para a necessidade de alargar os canais de divulgação de informação científica, recorrendo-se, por exemplo, aos meios de comunicação social.

Patrícia Nunes concorda que a alimentação "supostamente" saudável se tornou uma tendência. Essa é, aliás, a grande diferença face aos anos 90, em que os padrões de beleza assentavam em corpos muito magros, como os das modelos que popularizaram o estilo "heroin chic". "O que nos preocupa, enquanto médicos, já não são os sites 'Pro-ana' [sites de partilha de truques para emagrecer e esconder a anorexia], mas as redes sociais." São partilhadas imagens de corpos que "claramente não existem" e de receitas alimentares ditas saudáveis, quando o que separa um alimento saudável do seu contrário é uma linha "muito ténue" e fácil de pisar. 

No TikTok, é frequente a partilha de "desafios", como perder peso, beber muita água, fazer jejum ou não comer proteína animal ou doces, alerta Patrícia Almeida Nunes, que trata jovens cuja anorexia foi estimulada por estas práticas, além de todos os outros fatores. 

"Estamos a construir um modo de vida que é muito favorável ao aparecimento desta doença. Há uma predisposição social para a anorexia", resume Margarida Marques. A imagem é dominante hoje em dia e a anorexia é, além de tudo o resto, uma "sensibilidade à imagem corporal". Se não há outras pessoas a servir de espelho, estando as relações sociais confinadas a ecrãs, "acabámos por construir uma imagem frágil e distorcida de nós próprios". Sertório Timóteo acrescenta a existência de “preconceitos relacionados com o estigma da obesidade” à lista de fatores sociais que podem levar à doença.

“CONTROLAVA TUDO O QUE ENTRAVA NO CORPO DO MEU IRMÃO” 

Há cinco anos, numa ida à praia, Marta viu uma rapariga que "não se conseguia mexer" por ter peso a mais. Estava a comer batatas fritas e bolachas de chocolate, conta. Desconfortável com o que viu, acreditou que a única forma de evitar que o seu corpo crescesse assim era deixar de comer. Tinha então 14 anos.

Começou a praticar exercício físico e mudou a alimentação, primeiro retirando determinados alimentos e depois deixando de fazer algumas refeições. Na escola, oferecia o almoço e o lanche aos colegas ou deitava-os ao lixo. Com o passar do tempo, a magreza tornou-se evidente para os pais e Marta foi levada a uma consulta num centro de saúde na zona do Porto, onde vive.

A médica que a atendeu terá desvalorizado a situação, descrevendo-a como "normal" para a idade. A mãe não ficou convencida com a explicação e exigiu que a filha fosse encaminhada para uma consulta hospitalar de psicologia. Mas voltou para casa novamente sem respostas.

Marta continuou a fazer exercício físico, não só fora de casa, na piscina que frequentava todos os dias, mas também dentro. Para evitar que os pais, por esta altura já alarmados, descobrissem o esforço que fazia, esperava que eles se fossem deitar, à noite, e ia para a sala correr, percorrendo o espaço de uma ponta à outra várias vezes. Também dava saltos num trampolim montado noutra divisão e fazia abdominais. Dava início a esta rotina entre a 1h30 e as 2h00 e parava às 6h30, hora a que os pais se levantavam para ir trabalhar e a que Marta finalmente se deitava, fingindo estar a dormir. 

Além de controlar a sua alimentação, também controlava a da família, sobretudo a do irmão, que nascera em 2017 - ano em que começaram as restrições -, e fizera dois anos entretanto. "Não o deixava comer doces nem repetir a refeição. Ao lanche, dava-lhe apenas leite servido numa caneca. Achava que podia ficar gordo. Controlava tudo o que entrava no corpo dele.” Após as refeições, e à semelhança do que impunha a si própria, incentivava o irmão a saltar no trampolim ou tirava-o de casa para irem caminhar, para “gastar calorias”.

Os pais continuaram a alimentar normalmente o irmão, mas a partir de certa altura a criança passou a ter "medo" de comer à frente de Marta, por temer ser repreendido; era o primeiro a recusar a comida. "Foi quem mais sofreu no meio disto tudo", reconhece.

Foi só perto de fazer 18 anos que Marta, já com um peso muito baixo e num estado de grande debilidade física e psicológica, reconheceu que estava doente. Mesmo não tendo idade para exercer influência, foi o irmão que a ajudou a tomar uma decisão. "Fui eu que pedi um irmão aos meus pais. Não seria justo ele ver-me morrer." Pouco tempo depois, a jovem começou a ser acompanhada por uma equipa do Hospital São João.

A culpa dos pais e a luta interna dos filhos

A anorexia também é uma doença da família, desde logo porque se manifesta na alimentação e no ato de comer, que tem lugar quase sempre em casa. Além disso, pode ter origem, embora não exclusiva, em relações e dinâmicas familiares específicas e potencialmente negativas. Isto não quer dizer que as famílias sejam causa da anorexia, mas podem contribuir para o aparecimento e desenvolvimento da doença ou então dificultar o tratamento, mesmo sem estarem conscientes disso.

Por isso, separar temporariamente a pessoa doente da sua família pode fazer a diferença entre um tratamento bem-sucedido ou, pelo contrário, mais demorado e ineficaz. Os benefícios desse afastamento numa fase inicial estão descritos desde o século XIX e a medida continua a ser utilizada hoje em dia. "Algumas famílias de doentes com anorexia têm características que condicionam o tratamento", diz Patrícia Nunes. Há um "sobreenvolvimento" e os limites entre os diferentes membros do agregado, nomeadamente entre os pais e os filhos, estão "pouco definidos". “Ambos devem desempenhar papéis diferentes, mas nestes casos não existe essa separação.”

Na prática, são famílias "muito chegadas", cuja proximidade é notória na forma como os próprios elementos se referem uns aos outros e descrevem as dinâmicas familiares. "Sabem tudo uns sobre os outros e quase não precisam de falar para saber o que cada um está a sentir. Quando um adoece, todos adoecem." Praticamente não há discussões e as únicas ameaças são as que enfrentam lá fora, num mundo considerado "hostil". “Há uma harmonia quase artificial.”

Assim, quando a doença surge, o impacto é devastador. Estas famílias, e também todas as outras que se confrontam com a doença, são apanhadas desprevenidas. Há choque e indignação, alguma incompreensão e muito desconhecimento sobre a doença. Os pais querem ajudar, mas não sabem como agir.

NÃO DEIXAR A DOENÇA ENTRAR EM CASA 

No início, Maria (nome fictício a pedido da própria) tentava que o filho, com 19 anos e acabado de ser diagnosticado com uma anorexia nervosa, se servisse de mais comida às refeições. Dizia-lhe para encher mais o prato, mas depois encontrava comida escondida em casa, embrulhada num guardanapo. Também insistia para fazer menos exercício físico e deixou de lhe pagar as idas ao ginásio, mas depois ele saía de casa para ir correr a cidade toda. A certa altura, desistiu. Em conversas com outros pais de filhos com anorexia, percebeu que não valia a pena tentar controlar a situação. "Há jovens que põem o despertador a tocar de 30 em 30 minutos durante a noite para fazer exercício. Eles arranjam as estratégias todas. Aprendi que nada adianta. A doença é sempre mais forte."

As indicações que tinha do hospital, dadas pela equipa de especialistas que acompanhava o filho no Hospital São João, no Porto, era para que a família agisse como se a doença não existisse, não falando sobre comida e permitindo ao filho comer o que quisesse, mesmo que fosse pouco ou praticamente nada. O controlo e a vigilância, nos casos de anorexia, são quase sempre uma perda de tempo: têm o efeito contrário ao pretendido e geram conflitos. Maria e o marido também não deveriam alterar hábitos e rotinas para se adaptarem às do filho, continuando cada um a cuidar de si. "Não podíamos deixar a doença entrar em casa."

Os médicos explicaram o que é anorexia, porque Maria e o marido não conheciam bem a patologia. "Nós achávamos que só as modelos e as bailarinas, e as raparigas que se olhavam ao espelho e se achavam gordas, poderiam ter isto". Também não esperavam que o problema pudesse tornar-se tão grave. Depois do diagnóstico, feito há cerca de cinco anos, o filho esteve internado duas vezes: primeiro um mês e depois nove.

Está melhor hoje em dia, embora não recuperado. Mantém algumas restrições alimentares e comportamentos típicos da doença. Praticamente só come peixe e bifes de frango, acompanhados de arroz e legumes. No fim das refeições, sobe e desce várias vezes as escadas do prédio onde vivem.

Ao longo dos últimos anos, Maria foi tentando perceber melhor a doença através de leituras e conversas com médicos. Mas há uma questão para a qual ainda não conseguiu encontrar uma resposta: será que algum dia o filho vai ficar curado? "É a minha maior dúvida desde que tudo isto começou." Os médicos garantem-lhe que sim, que a cura é possível, mas a mãe tem dificuldades em acreditar. "Se ele conseguir encontrar um equilíbrio, já será muito bom."

O casal conversa regularmente com outros pais na mesma situação, em reuniões semanais promovidas pelo Hospital São João. A culpa é um sentimento muito comum entre progenitores. Há constantemente um olhar retrospetivo em busca de erros e desatenções, e remorsos que ficam. Maria e o marido, no entanto, nunca se sentiram culpados. 

"Ele sempre foi muito dependente de nós e desde muito pequeno dizia que não queria crescer." Os pais achavam "graça" ao facto de o filho lhes ser tão próximo, mas quando ficou doente os médicos disseram-lhes que essa falta de autonomia era um problema. "Com certeza que falhámos, mas sem saber que estávamos a falhar. Os médicos explicaram-nos que a anorexia é uma doença e que, entre outros fatores, pode haver um causa genética. Nunca nos culpabilizamos um ao outro. Apoiamo-nos."

A que sinais devem estar os pais atentos?

Margarida Marques alerta para alguns sinais da doença a que os pais devem estar atentos para evitar que o problema se instale. Uma perda de peso abrupta é o sinal mais óbvio, mas os pais nem sempre se apercebem porque é escondida atrás de várias camadas de roupa.

Dar início a uma dieta a que, a partir de determinada altura, não se consegue pôr fim, a preocupação "excessiva" com a alimentação, a pesagem dos alimentos, a leitura constante dos rótulos para verificar o número de calorias, o "exercício compulsivo", e a necessidade de estar sempre em movimento e a fazer alguma coisa que implique esforço físico, mesmo que mínimo, são outros sinais. "Tenho doentes que fazem questão de pôr a mesa em casa e colocam apenas um utensílio de cada vez, para darem mais passos. "

Psicóloga no Hospital Dona Estefânia, onde apoia crianças e jovens internadas com anorexia, Joana Pombo acompanhou em tempos um rapaz que não conseguia permanecer sentado durante as consultas, estando continuamente às voltas na sala. A psicóloga não costuma permitir aos doentes que estejam de pé durante as sessões, mas daquela vez teve de ceder. Percebeu que, de outra maneira, não iria conseguir conversar com ele.

A psicomotricista Rita Palma, que trabalha aspectos como a distorção da imagem corporal, muito presente em pessoas com anorexia, constituindo inclusive um dos critérios para o diagnóstico da doença, conta uma história parecida. Também aquela jovem tinha muita dificuldade em estar parada e, quando conseguia parar, mantinha uma das pernas levantadas, fazendo uma espécie de "pé-coxinho". "Tinha de estar sempre em tensão." Enquadrava-se naquilo que se designa como "perfil hipertónico", que em pessoas com anorexia se caracteriza por uma elevada rigidez muscular, como se estivessem em estado de alerta permanente. "Para estas doentes relaxar pode ser muito angustiante. Ao fazê-lo, sentem os músculos moles, o que avaliam como gordura. Então não relaxam."

Sendo o relaxamento um dos objetivos das sessões de psicomotricidade, foi necessário encontrar uma solução. Rita Palma pediu à jovem para subir às suas costas, colocando-a "às cavalitas", e as duas começaram a percorrer o espaço onde decorria a terapia. Só assim, com o corpo da jovem envolvendo o seu e garantindo a sensação de movimento, conseguiu que ela finalmente relaxasse.

EVITAR REFEIÇÕES EM FAMÍLIA E OUTROS SINAIS 

De volta aos sinais de alerta. Margarida Marques explica que durante as refeições podem ser utilizadas estratégias para não ingerir determinados alimentos sem que os pais se apercebam: idas frequentes à casa de banho ou a outras divisões da casa, pôr comida no lixo, espalhá-la pelo prato para dar uma impressão de maior quantidade. Encontrar comida escondida no quarto, debaixo da cama ou dentro de gavetas, ou na mochila, também são situações a que os pais devem estar atentos. Se, de repente, o filho ou a filha começam a evitar as refeições em família, justificando essa ausência com os mais diversos motivos, é porque alguma coisa também pode não estar bem.

"Estes comportamentos não devem ser normalizados, ritualizados", diz Manuel Gonçalves Pinho, investigador no CINTESIS - Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde, sediado na Universidade do Porto, e coautor de um estudo recente sobre as hospitalizações por anorexia em Portugal. O psiquiatra defende que, além dos pais, também professores e auxiliares educativos devem estar conscientes desta problemática, seja abordando-a na sala de aula, numa lógica de prevenção e educação para a saúde, no caso dos primeiros, seja estando atento a comportamentos pouco habituais durante as refeições, no caso dos auxiliares. "A alimentação é muitas vezes feita na escola."

Para "Maria", a mãe do jovem com anorexia, o principal sinal de alerta é outro: o sofrimento. É muitas vezes a partir daí que tudo começa. Foi quando o filho, aos 16 anos, garantiu a um pediatra que tinha um "monstrinho" na cabeça que lhe dizia que não se dedicava o suficiente às várias atividades que praticava, como o ténis e as aulas de música, e que teria de se esforçar mais, que percebeu que havia um problema.

"Ele deixou inclusive de tocar guitarra e começou a aprender a tocar bateria, porque isso, acredito agora quando olho para trás, implicaria um esforço físico maior." Também notou o filho muito ansioso nessa altura, querendo desesperadamente ter bons resultados na escola. "A pressão exagerada para o sucesso e o perfecionismo que os jovens colocam sobre eles próprios deve ser encarada como um sinal de alerta."

Pais de crianças e jovens com anorexia têm "muita dificuldade" em compreender a doença, sobretudo a "luta interna" destas doentes, aponta Margarida Marques, que lida com casos de anorexia há décadas. "Elas querem sair da doença, mas têm imenso medo de perder o controlo sobre o corpo e engordar, de perder o controlo sobre a vida. É uma luta interna devastadora."

Paradoxalmente, há um desligamento em relação ao próprio corpo. Acontece antes de surgir a doença, mas sobretudo quando o problema já está instalado. "Elas têm mesmo de desconectar-se do corpo. Têm de eliminar a sensação de fome, de frio e de cansaço. Caso contrário, não conseguiriam não comer", diz Rita Palma, psicomotricista. Num tom mais apreensivo do que jocoso, Margarida Marques diz: "Não é anorético quem quer, mas sim quem pode, quem tem uma força interior suficiente" para aguentar privações que quase nenhum outro ser humano seria capaz de suportar.

Este desligamento também se manifesta em comportamentos específicos. Segundo Joana Pombo, que trabalha como psicóloga no mesmo hospital (Dona Estefânia) e participa na conversa, "há meninas que não tomam banho ou não se esfregam durante o banho para não terem de tocar no corpo". Uma jovem que acompanhou no passado não se tocava em momento algum e estava sempre às escuras em casa, de cortinas corridas e luzes apagadas. Usava apenas duas peças de roupa, ambas muito largas, que ia alternando entre si." Ela não conseguia sequer olhar para o corpo."

É necessário que os pais percebam a dimensão e gravidade destes conflitos interiores e "ajudem a lutar contra a doença", não culpabilizando os filhos por não comerem ou terem comportamentos invulgares, retoma Margarida Marques. "Envolver as famílias no tratamento, preparando-as nomeadamente para o regresso a casa dos filhos após o internamento, é fundamental. Sem essa aliança terapêutica, não se conseguem bons resultados."

Nojo e preconceito

À primeira vista, o corpo anorético choca, suscita até alguma "aversão". É "abjeto", e como tal "deve ser retirado do espaço público, tal como o corpo obeso". Carolina está a fazer uma tese de doutoramento em Ciências da Comunicação sobre a anorexia nervosa e as práticas discursivas de quem tem ou teve a doença. Dessas conversas e da sua própria experiência retirou uma certeza: o estigma sobre a doença ainda existe e tem efeitos prejudiciais.

Manifesta-se no "olhar dos outros" sobre um corpo que se tornou "assustador" para quem o observa, mas também no olhar do próprio. "Conversei com muitas mulheres que nunca tinham falado com ninguém sobre a doença até serem entrevistadas por mim. Se alguém vive assim, absolutamente solitário com a doença, é porque sente estigma por si e pela própria doença."

“AS PESSOAS TÊM NOJO DE NÓS” 

Na pior fase da doença, quando estava com um peso muito baixo, Marta Carvalho ouviu comentários desagradáveis. Numa das vezes em que isso aconteceu, estava sentada numa carruagem de metro. O veículo pára numa estação e entram vários passageiros, mas nenhum se senta perto dela. “Ouvi um deles a dizer que não queria sentar-se à minha beira porque eu era ‘só ossos’.”

Também havia pessoas, algumas delas próximas, que lhe chamavam “esqueleto andante” ou diziam que, com um corpo assim tão magro, quase conseguiam ver o que estava atrás dela, ver através dela, reduzindo-a, assim, a nada. “As pessoas têm ‘nojo’ de nós por sermos demasiado magras.”

A anorexia continua a sendo encarada como uma “mania”, diz. A falta de reconhecimento da doença mantém-se até ao fim, com todas as implicações que isso tem: "Dizem-nos que nós é que tivemos a ideia de fazer uma dieta, logo temos de ser nós, sozinhas, a sofrer as consequências."

Para Marta é muito claro que, “tal como não se devem discriminar as pessoas mais fortes, também não se deve fazê-lo em relação às pessoas muito magras”. “Continuamos a ser pessoas.”

Patrícia Nunes, psiquiatra, concorda que existe estigma. Nas consultas, há jovens que negam a doença, argumentando não ser “como essas meninas que querem ser magras e manequins”. “Ainda há muito a ideia de que a anorexia é uma doença de meninas mimadas, que não comem porque não querem.” 

A doença também é estigmatizada dentro da própria psiquiatria, diz. "Ainda é vista pelo canto do olho. São doentes com um tratamento muito difícil e prolongado, não captando o interesse da maioria dos médicos.” Por outro lado, não é tratada com medicamentos, o que a torna pouco atraente para a indústria farmacêutica e o financiamento de estudos clínicos. "O desinvestimento é muito grande."

Embora haja mais informação sobre a anorexia hoje em dia, a doença ainda não é inteiramente compreendida pela sociedade. É encarada como uma escolha, um desejo, uma vaidade. Ao mesmo tempo, prevalecem vários estereótipos, diz Carolina. "É apresentada como um problema de meninas jovens, brancas, ricas e inseguras, mas na realidade extravasa a proveniência social e económica das pessoas afetadas”. As 30 mulheres que entrevistou são de faixas etárias diferentes, desde a adolescência até à idade adulta. Uma das entrevistadas, descreve, tem cerca de 60 anos e baixos rendimentos, tendo a anorexia surgido como resposta a uma separação na vida adulta.

Também nos meios de comunicação, é reproduzida uma imagem da pessoa com anorexia que não corresponde à realidade, sendo realçado o seu "aspecto cadavérico",  quando hoje em dia são poucas as doentes que chegam a esse estado, por procurarem ajuda mais cedo e os diagnósticos serem mais atempados. Carolina alerta para os perigos destes estereótipos. "Há pessoas que não vão ao médico por acharem que não estão suficientemente magras ou suficientemente doentes."

Recuperar e reaprender a ser

Segundo as estatísticas internacionais, cerca de metade das pessoas com anorexia ficam curadas. As restantes evoluem por períodos de melhoria e recaída (20% a 30%) , mantêm a doença de forma crónica (10% a 20%) ou morrem (entre 5% a 10%), explica o psiquiatra Sertório Timóteo. Quando comparadas com outras perturbações psiquiátricas, as doenças do comportamento alimentar têm um prognóstico pior. "Poucos pacientes recuperam após um ano." Mas todos estes números e dados pouco dizem sobre o que pensam realmente as pessoas com anorexia sobre a recuperação e a cura. 

Telma Bicho, de 36 anos, esteve internada dez vezes. Agora acredita que está finalmente curada.

A última estadia no hospital, em 2020, foi diferente das outras. Há um momento que não esquece. Estava deitada na cama, a receber soro e medicação, e percebeu que estava prestes a chegar ao fim de qualquer coisa. Sentia-se cansada da vida que tinha, de tantos anos de controlo, privações, melhorias artificiais, recaídas brutais. "Se é para isto, prefiro morrer." Levantou-se, dirigiu-se à casa de banho e olhou-se ao espelho. "Eu pensei: não sei que corpo é este que estou a ver, mas sei que não é compatível com a vida". Também se sentia culpada por ter "tudo" - família, amigos e um trabalho de guionista em televisão de que gostava - e "não dar nada em troca". "Percebi que tinha sido eu a trancar-me nesta prisão, logo cabia-me a mim rodar a chave para sair. Assumi-me como única responsável pelo final desta história."

Pediu à equipa médica que a acompanhava, no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, para reforçar o plano alimentar e acelerar o processo de ganho de peso. Reconhece que foi difícil. "Eu chorava a comer e depois de comer. Odiava-me pelo que estava a fazer, mas sabia que tinha de ser e que não podia vacilar nem um segundo."

Os primeiros sinais da doença surgiram quando tinha cerca de 12 anos, sob a forma de restrições alimentares, não para perder peso, mas como uma "punição", para se castigar por alguma coisa que ainda hoje não consegue identificar. "Dava-me uma sensação de controlo. De alguma forma, eu sentia prazer na fome." 

Telma pensava que não era uma aluna "suficientemente boa", uma amiga "suficientemente boa", uma filha "suficientemente boa". "Eu não gostava muito de mim. Aliás, eu odiava-me." Sentia-se triste e diferente dos amigos com quem convivia diariamente.

Os professores aperceberam-se da mudança de comportamento, os pais também, e Telma foi tendo consultas de psicologia. No entanto, sempre que se tocava no assunto da alimentação, abandonava o tratamento. Negou a existência da doença durante muito tempo, como muitas vezes acontece nas situações de anorexia, mas depois de terminar a faculdade, quando estava já a trabalhar, a psiquiatra que a acompanhava decidiu que teria de ser internada. Já não conseguia alimentar-se corretamente sozinha - ou não comia de todo ou comia de forma compulsiva, por ter muita fome, e depois tinha comportamentos purgativos.

O internamento mais recente foi em 2020. Saiu com um peso saudável, que é o principal critério para se ter alta clínica, mas não curada. "O internamento não cura ninguém." É necessário continuar a ter acompanhamento e trabalhar os medos que quase sempre se mantêm. Telma teve de avançar mais profundamente, quase construindo uma nova identidade. "Eu não sabia se gostava do campo, de praia, de gelado ou de pizza, porque todas as minhas escolhas e decisões tinham sido influenciadas pela anorexia. Eu não me conhecia."

Além das consultas no hospital, começou a ter sessões individuais que combinam diferentes abordagens terapêuticas com saberes e conhecimentos herdados de tribos indígenas e meditação. Na sequência dessas sessões, participou e organizou retiros na Amazónia peruana, onde são realizadas cerimónias de ayahuasca, uma bebida com propriedades psicoativas. "Naquelas cerimónias, eu pude sentir aquilo que provoquei ao meu corpo e perceber melhor a dor enorme que sempre esteve cá dentro. " Foi depois de ter ido para a "selva" que os pensamentos obsessivos com o corpo e a comida desapareceram, diz, ressalvando que "não há um caminho ideal", devendo cada pessoa pesquisar e perceber que ferramentas são melhores para si. Não foram os psicadélicos que a curaram, mas deram uma ajuda.

UMA META POSSÍVEL

Telma continua envolvida nestas atividades e criou uma conta no Instagram onde partilha a sua experiência e entrevista pessoas que tiveram anorexia e especialistas na área das doenças do comportamento alimentar. Teve alta clínica e já não é seguida no hospital. Não faz restrições alimentares e não utiliza o exercício físico para compensar excessos alimentares, diz. A relação com o corpo também mudou. "Foi há pouco tempo que comecei a ver-me como sou. Antes, acontecia muitas vezes eu ver um corpo no espelho de manhã e nesse mesmo dia, à noite, ver outro."

A anorexia não é uma doença do corpo, apesar de tudo. Manifesta-se através dele e, a partir de certa altura, é como se ganhasse vida, existindo independentemente das mudanças físicas que ocorram. "Eu tive diferentes pesos. Já estive muito magra, menos magra e com mais quilos, e nada mudou. Não estamos bem com nenhum corpo."

Aprendeu, no entanto, a aceitar o seu. "Não estou apaixonada pelo meu corpo, mas também não estou em guerra. Vou tentar cuidar dele o melhor possível.”

Um dos paradoxos da doença é a sensação de conforto que proporciona, pela repetição exaustiva de rotinas e gestos conhecidos e previsíveis. Não é preciso fazer escolhas. A recuperação, no entanto, implica obrigatoriamente uma mudança. É necessária uma reaprendizagem do ser, surgindo o receio de se estar a abdicar de uma parte considerável da existência e das convicções pessoais. Para algumas pessoas, recuperar de uma anorexia é muito mais doloroso do que ficar doente. "A recuperação é uma escolha ativa que tem de ser feita todos os dias, em vários momentos, sobretudo às refeições. Mas é possível", assegura Carolina Ferreira Baptista. "É um trajeto de muita alegria e sofrimento. É o paradoxo da anorexia."

No dia em que conversámos com Marta, no final de 2022, no Hospital de São João, ela estava prestes a ter alta clínica. Recuperou o peso que tinha perdido, os únicos alimentos que não come são bolos e outros doces, e tem as "ferramentas" de que precisa para avançar sozinha. Mas não acredita que possa ficar curada. "A anorexia não tem um tratamento definitivo. Não há cura para estes pensamentos que ainda tenho. Vão estar sempre comigo, passem 20 ou 30 anos. Mas sei que vou ter força para não deixar que a doença me domine e me atire novamente para aquele buraco sem fundo."

À medida que se vai recuperando o peso, o pensamento abranda. Repara-se em objetos vulgares e detalhes banais a que, estranhamente, nunca se prestou atenção. Ganha-se lucidez. Joana percebeu isso recentemente. “A anorexia domina o cérebro, mas agora sinto-me mais livre para pensar noutras coisas.” A recuperação torna-se uma meta possível. “Há pessoas que conseguem ficar totalmente curadas, sem pensar na comida como um demónio. Eu não sou nem mais nem menos do que ninguém, portanto acredito que também vou conseguir. É por isso que estou aqui agora.”

Créditos

Texto Helena Bento
Fotografias Tiago Miranda
Vídeos e webdesign Tiago Pereira Santos
Ilustrações João Carlos Santos
Grafismo animado Carlos Paes
Infografia Jaime Figueiredo
Apoio web João Melancia
Coordenação Pedro Candeias, Marta Gonçalves e Joana Beleza
Direção João Vieira Pereira

Expresso 2023